“Sou caboclo, sou amazônida! Não nego não. Eu sou rio,
Sou floresta. Eu sou a natureza, a cultura e a história”.
(Josias e Gláucio Matos - Ethos Caboclo – 2018)
Setembro de 1992. O movimento dos cara-pintadas ocupava ruas e avenidas de todo o país exigindo o impeachment do presidente Collor de Mello, mas na cidadezinha de Barcelos, no Amazonas, seus vinte mil moradores permaneciam inertes, salvo três pessoas que desfilaram solitariamente com um cartaz “Fora Collor” pela avenida Ajuricaba, cruzaram a Lobo D’Almada e dispersaram na Dom Bosco. Esses três eram “os agentes da História”.
Foi aí que o então prefeito Elias Ribeiro Teixeira aproveitou a desmobilização local para mandar imprimir, com recursos da prefeitura, os calendários de bolso de 1993. Uma obra prima. Ninguém reagiu, somente os três “agentes da história” protestaram: uma jovem, seu irmão e um vizinho. Isolados, os três protagonistas acabaram abandonando a cidade.
Naquele momento, os três manifestantes não suspeitavam que vinte e cinco anos depois o Brasil inteiro caberia dentro de Barcelos, de onde eles se pirulitaram.
Nem o prefeito com seu vistoso calendário podia imaginar que em 2017 o presidente da República seria acusado pela Polícia Federal e pela Procuradoria Geral da República de ser chefe de uma quadrilha composta, entre outros, por alguns ministros seus. Que compraria votos dos deputados para impedir que suas falcatruas fossem investigadas e que – inacreditável! - a população, apalermada, assistiria tudo, sem mover uma palhinha, como os barcelenses. Cadê os três manifestantes de Barcelos?
Batendo caneco
Se em 1992 fosse dito aos manifestantes que um senador, candidato derrotado a presidente da República, presidente de um grande partido, seria flagrado com propina de 2 milhões de reais, que em gravações ameaçaria matar e esfolar quem o delatasse, que o juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) relator de quatro inquéritos que investigavam o senador, seu amigo, manteve com ele 46 ligações telefônicas, que o fato foi noticiado pela mídia, quem poderia explicar por que ninguém bateu uma panela, sequer um caneco?
Quem, no Brasil, que manifestava contra o governo corrupto de Collor, podia acreditar que o senador Aécio Neves, flagrado com 2 milhões de propina, em dinheiro vivo, alegaria se tratar de um “empréstimo” para o qual não tem qualquer recibo, nem garantia, nem duplicata, nem data para pagar, nem avalista, tudo isso sem que a população saísse às ruas, passando assim um recibo de que somos todos otários? Quem imaginaria que o próprio Collor, em 2017, com outros senadores investigados pela Polícia Federal, protegeria o colega propineiro, votando por seu retorno ao Senado, desmoralizando o Judiciário? Cadê os três manifestantes de Barcelos?
Juro que em 1992 ninguém, mas ninguém mesmo, sonharia que em 2017 vários ministros, com fartas evidências, seriam acusados de corrupção, e que se manteriam no cargo para adquirir foro privilegiado. Que um deles, forçado a pedir demissão, foi preso, solto, e novamente preso com malas contendo 51 milhões de reais, num episódio até hoje não esclarecido, embora esteja tudo documentado, filmado, gravado. Não se ouviu nas ruas um manifestante sequer gritar: “Ai, está doendo”.
Os três manifestantes de Barcelos não acreditariam que, em 2017, o presidente, acusado de ser chefe de quadrilha, assinaria portaria mudando normas para definir o que é ou não trabalho escravo e que essa revogação da Lei Áurea seria feita para comprar a bancada ruralista no Congresso na votação da segunda denúncia contra o presidente. Pior ainda: que não haveria manifestações de protesto nas ruas contra a medida. Nem o calendário de Barcelos de 1993 seria tão radical.
Estouro da boiada
Os calendários-de-bolso de 1993 foram a maior realização cultural de Barcelos na administração Elias Teixeira. Apresenta fotos deslumbrantes de paisagens e monumentos que indignaram os três “agentes da História”. Por que alguém ficaria furioso com fotos lindas? Por acaso eram fotos de mulher nua, como naqueles calendários grandes de oficina de mecânico, que alegram a uns, mas para outros constituem atentado ao pudor, à moral, visando destruir a família? Não! Nada disso!
As fotos exibem monumentos e paisagens da Europa. Os recursos da Prefeitura foram usados para reproduzir uma cidadezinha da Áustria, encravada nos Alpes, coberta de neve, duas catedrais europeias – a de Notre Dame, em Paris, e a de Colônia, na Alemanha, a ponte de aço e concreto de Nova York, a Brooklyn Bridge, museus, castelos e vinhedos.
Os calendários, mais de vinte mil, foram distribuídos aos moradores de Barcelos, o que foi considerado um desperdício de recursos numa cidade com graves problemas no campo da saúde, da educação, do saneamento básico. Por isso mesmo – justificou o prefeito – diante de realidade tão dura, suja e insuportável, é preferível ignorá-la. Ele decidiu usar a fantasia e a imaginação para dourar a pílula. A verdade é que a alienação, quando ultrapassa certos limites, atinge o nível do sublime.
Um ano depois, Barcelos - onde abundam tucunarés, aracus e piabas - reagiu de forma altaneira. Rasgou os calendários e criou, em julho de 1994, o Festival do Peixe Ornamental, construiu o Piabódromo e lá, anualmente apresenta um grandioso espetáculo de música e dança caboca e indígena. Já foi até escolhido o tema de 2018 – Ethos Caboclo - com música e letra de Josias Benfica e Gláucio Matos.
O Brasil precisa, como Barcelos, encontrar seu ethos e reagir contra a lama putrefata e fétida exalada no noticiário. Ou isso, ou se realizará a profecia de João do Vale, em música censurada na época da ditadura militar. A letra diz:
“Se acorda, meu Brasil, é hora, é hora, é hora,
É hora de resistir, todo mundo está de pé, só tu estás a dormir.
Pessoal dê um jeito nisso, ou então, senão, senão,
Vem o estouro da boiada, que não é brinquedo não”.