CRÔNICAS

Na posse do Jabuti, cantando em tom maior

Em: 01 de Janeiro de 2023 Visualizações: 4909
Na posse do Jabuti, cantando em tom maior

“Vai ter que amar a liberdade / Só vai cantar em tom maior

Vai ter a felicidade de ver um Brasil melhor”

 (Martinho da Vila. Tom Maior. 1968)

Rei morto, rei posto. Chega, enfim, o dia tão esperado em que o Jabuti toma posse como “Cuidador da Floresta”, com a realização de um festival de cantoria dos pássaros que foram silenciados no reinado da Onça, agora destronada. Apoiada pelo Grupo Sentinelas de Igarapé, a Onça se fingiu de morta para envenenar a festa. Essa é a história que vai aqui contada. Foi assim.

Inconformada com sua derrota, a Onça Biroliro acampou seus seguidores à beira do Igarapé da Caserna, que ficou infestado de jacarés e piranhas com os dentes engatilhados, poraquês de dois metros que torturavam com choque elétrico e o pequeno candiru que – dizem – invade a uretra humana.

A Onça sanguinária bolou o plano do silêncio para dar o golpe. Ordenou à Raposa Biro-Lira:

- Avise à floresta inteira que eu fui esfaqueada e morri. Convide todos bichos para o funeral. Vou me fingir de morta aqui na beira do igarapé, talkey? Quando o Jabuti-Piranga da Selva chegar perto, dou um bote e o estraçalho. Enquanto isso, os amigos da Onça acampados no igarapé, depois de tocarem o terror, me entronizam outra vez como "Rei da Floresta".

Dito e feito. Se colar, colou.

O velório

- A Onça morreu! A Onça morreu! Estão todos convidados para as exéquias. No velório tem bolacha, cachaça, cafezinho e muita regalia secreta – gritava a Raposa Biro-Lira, com um megafone na mão, arreganhando os dentes.  

Os animais, que se aproximavam do falso cadáver, lubrificavam os olhos com lágrimas de crocodilo. Destoando, o Pato vinha cantando alegremente “kuen kuen”, mas Paca, Tatu, Cotia não. Atrás deles, Cavalo, Burro e Jumento, que não era o grande malandro da praça. Macaco, Gato Maracajá. Anta, Jararaca, Sucuriju e outras cobras desfilavam no meio do gado que mugia. Junto a eles Coelho, Porco, Bode e a dócil Ovelha.

Na fila dos pêsames, Lobo-Guará, Sapo, Marreco de Maringá, Caititu, Tamanduá, Bicho Preguiça e insetos: Formiga, Besouro, Vespa e a Dona Baratinha com fita no cabelo e dinheiro na caixinha 2. Vieram bichos de outras florestas: Leão, Urso, Elefante, Girafa, Hipopótamo, Rinoceronte, Canguru e Zebra.

A Onça, nem seu Souza. Com a respiração presa, as canelas esticadas e o olho de peixe de geladeira, esperava imóvel a chegada do Jabuti, que na verdade era um Cágado de sorte. Astuto, cheio de artimanhas, o sofrimento lhe deu sabedoria. Ele olhou de longe.

- Pode se aproximar, compadre – disse a Raposa.

Desconfiado, o Jabuti preferiu manter a distância:  

- Ela está morta?

- Mortinha da silva – mentiu a Raposa Biro-Lira.

- Ela já peidou e arrotou? – perguntou o Jabuti em alta voz.

- E precisa?  - retrucou a Raposa.

- Claro. Meu avô morreu na semana passada e a Coruja só assinou o atestado de óbito depois que ele deu três peidos e três arrotos.

A Onça Biroliro ouviu tudo e, com a inteligência, a delicadeza e o recato que a caracterizam, trovejou e eructou três vezes com grande estrondo.

- Morto não arrota, nem bufa – sentenciou o Jabuti, que se picou. Na verdade, “deu às de vila-diogo”, conhecedor que era da vida misteriosa das expressões usadas na beira do rio Tejo. Saiu dali para subir a rampa. Se o golpe colasse, colava. Não colou. A Onça, que se gabava de ser imbrochável, brochou.

A festança

Vai daí que, desmontado o golpe, a Onça mal-amada fugiu com sua familícia para “Me Ame”, na terra florida, onde foi lavar seu sujo tcherembó no Blue Lagoon, com despesas de viagem e hospedagem pagas pela bicharada. Decepcionada por não haver ninguém para recebê-la no cercadinho, lamentou:

- “As aves que gorjeiam aqui em ‘Me Ame’, não gorjeiam como lá na Floresta”.

Efetivamente, “a bandeira de ‘Me Ame’ nunca será verde-amarela”, constataram os amigos da onça, abandonados, que não puderam segui-la e ficaram a ver navios e emas no lago Paranoá.

O Jabuti, já com a faixa de “Cuidador da Floresta”, organizou uma festança do arromba no chamado Festival do Futuro. Foram montados dois palcos à beira do lago, cada um com o nome de passarinhas sem asa: ‘Mingal’ e ‘Trinado do Fim do Mundo’, que costumavam “cantar como um passarinho / de manhã cedinho / lá no galho do arvoredo / na beira do rio”.  

Posto que uma andorinha sozinha não faz verão, o Jabuti a todo mundo deu psiu psiu, psiu e convidou mais de 60 pássaros para cantarem a alegria. O Sabiá que andava pelo mundo e que tanto já voou, atendeu ao psiu psiu psiu e veio aliviar a nossa dor. Lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, fugiu do terreiro e foi cantar no abacateiro, assim como o Tico-tico no fubá.

De repente, a mata inteira ficou muda para ouvir o canto de ébano do Uirapuru, seresteiro cantador do meu sertão, que dialogava com o sagrado. Sua canção subiu ao céu em sentida melodia, em forma de oração. Ouviu-se o canto melodioso da negra Graúna, a voz flauteada do Bicudo, o sotaque nordestino do Curió, a vocalização do Azulão, o trinado do Canário-do-mato e o gorjeio baixinho do Cricrió e do Corrupião de plumagem laranja.

Pingando mel

“Amanhã vai ser outro dia”, “Futuro Ancestral” e “Outra vez Cantar” são três dos dez shows da cerimônia oficial na Esplanada do Bosque. Muitas Jabutizinhas, Tartaruguinhas, Tracajazinhos e Cágadozinhos se divertirão no Espaço Curumim, organizado para celebrarem, elas também, a esperança e a alegria, ouvindo o Martim Pescador cantar para as quelônias grávidas:

- Está em você / O que o amor gerou / Ele vai nascer / e há de ser sem dor / Ah! Eu hei de ver / Você ninar e ele dormir / fazê-lo andar / Falar, cantar sorrir. / E então quando ele crescer / Vai ser um quelônio de bem / Vou ensiná-lo a viver / Onde ninguém é de ninguém / Vai ter que amar a liberdade / Só vai cantar em Tom Maior / Vai ter a felicidade de / ver uma Floresta melhor.

Depois que o Jabuti subir a rampa pela terceira vez, pratos típicos da culinária da Floresta, sem agrotóxicos, poderão ser saboreados na feira gastronômica montada para o evento.

A boca do Bem-te-vi, que “pinga mel”, anunciará um novo tempo, do amor e não do ódio, do livro e não da arma, da vacina e não da cloroquina, de Deus ao lado de todos e não “above all”. Agora, empossado o Jabuti, quem quiser falar com Deus, não precisará mais subir em goiabeira. Basta “ficar a sós, apagar a luz, calar a voz, encontrar a paz, folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios” como cantou Giló.

Foi assim que a floresta se salvou da destruição total. Não vai ser fácil pro Jabuti reconstruir tudo o que foi destruído na Floresta e fazer com que nossas várzeas fiquem com mais flores, nossos bosques com mais vida e nossa vida com mais amores. Mas só pelo fato de nos ter livrado da Onça sanguinária, já lhe somos eternamente gratos.

Acabou, porra!

P.S. Recriação a partir da literatura oral indígena em Nheengatu recolhida por Couto de Magalhães no Pará em 1875. O referido é verdade e dou fé, eu, o La Fontaine de igarapé, “passarim sem asa, eu sou tudo e nada, sou um sonhador” como quer Paulinho Pedra Azul em sua Cantiga de Tropeiro.

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

17 Comentário(s)

Avatar
Zezé Weiss comentou:
18/01/2023
Publicado na Revista Xapuri https://xapuri.info/wp-content/uploads/2022/12/Revista-Xapuri-Socioambiental-Janeiro-de-2023-Edicao-99.pdf
Comentar em resposta a Zezé Weiss
Avatar
Adeice Torreias comentou:
06/01/2023
Kkkk. Só tu mesmo mestre Bessa ????Ficaram a ver navios e emas no Paranoá rsrs. Mas aqui nessas bandas de floresta densa, com muito descampado e relva bonita , ainda tão esperando...Acredita-se que a onça vem beber água. Ela passa por aqui na volta de mi ame. Avisa esse jabuti tinga kkkk .
Comentar em resposta a Adeice Torreias
Avatar
Ana Silva comentou:
06/01/2023
Na mosca! Super, afinado, divertido e satírico. Grande Bessa!
Comentar em resposta a Ana Silva
Avatar
Isabella Thiago de Mello comentou:
03/01/2023
Se disséssemos que seu Jornalismo flerta com a Literatura estaríamos corretos. O poeta Thiago de Mello já declarou, emocionado, o poder literário da sua escrita na Apresentação do livro ESSA MANAUS QUE SE VAI, coletânea de crônicas suas. Porém esta, com a metáfora da vitória do JABUTI CUIDADOR DA FLORESTA, dos pássaros comemorando a vitória do Lula, entoando canções da música popular brasileira, realmente é um primor de imagens, sentimentos únicos, nesta virada da Democracia Brasileira. A onça pintada, verdadeira da mata, perdoa-nos a licença da lenda, da brincadeira. Na vida real a onça é linda, ameaçada de extinção e também protege a Mata. Neste instante estamos todos tocando os tambores, em festa.
Comentar em resposta a Isabella Thiago de Mello
Avatar
Araci Labiak comentou:
03/01/2023
A tartaruga, a Mãe Terra. Será o jabuti também, em tempos de inclusão natural!
Comentar em resposta a Araci Labiak
Avatar
Marcia Paraquett comentou:
03/01/2023
Acabou, porra! Brigadão por essa crônica libertadora.
Comentar em resposta a Marcia Paraquett
Avatar
Vera Lucia Teixeira Kauss comentou:
02/01/2023
Avatar
Mairise Souza comentou:
02/01/2023
José Bessa gratidão pelo excelente texto, você aqui disse tudo sobre a posse de Lula e Alckmin, ontem em Brasília! A subida da rampa com pessoas que representaram a nossa diversidade. Recomendo a leitura e divulgação.
Comentar em resposta a Mairise Souza
Avatar
Rodrigo comentou:
01/01/2023
Francisco, Aline Sousa, Weslley Rocha, Murilo, Jucimara, Ian Baron e Flávio Pereira, Cacique Raoni e a cachorrinha Resistência! Que time , foi emocionante a posse do presidente Lula, uma festa linda com muita paz e alegria.O único presidente do país que foi eleito três vezes de forma democrática (e será eleito pela 4a vez para aumentar ainda mais o recorde)e será reeleito, não tenho dúvidas. Boa sorte presidente, estamos com você, o Brasil será feliz de novo! Um abraço querido professor! Feliz 2023 a todos!
Comentar em resposta a Rodrigo
Avatar
Ladislau Rodrigues comentou:
01/01/2023
O Jabuti subiu a rampa nos braços do povo, dos deserdados,
Comentar em resposta a Ladislau Rodrigues
Avatar
Fernanda Cougo comentou:
01/01/2023
Eternamente gratos ao Jabuti! Viva a festa na floresta!!
Comentar em resposta a Fernanda Cougo
Avatar
Luiz Pucú comentou:
01/01/2023
Professor...gargalhei paca e como bom tatu não sou amigo da onça. Abração
Comentar em resposta a Luiz Pucú
Avatar
Roberto Zwetsche comentou:
31/12/2022
Vamos cantar, dançar e encher nossos ambientes, territórios e comunidade com louvações, como dizem os nordestinos. Viva a DEMOCRACIA! ELA VENCEU O MEDO, O ÓDIO E O DESAMOR!
Comentar em resposta a Roberto Zwetsche
Avatar
Valter Xeu comentou:
31/12/2022
PUBLICADO EM PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/na-posse-do-jabuti-cantando-em-tom-maior/
Comentar em resposta a Valter Xeu
Avatar
JOSÉ da Silva SERÁFICO de Assis Carvalho comentou:
31/12/2022
Babá, querido amigo, sempre depois da tempestade vem a bonança. Quando ela chega e estamos dispostos a desfazer ilusões e fincar bem os pés à terra, enquanto a cabeça passeia pelo espaço, a bonança pode ser feita. Por isso, do tamanho do alívio e da alegria que esse ano trará e já se insinua nas dobras da escuridão, será nosso compromisso, seguidores do jabuti, o de ajudar a fazer pagar o mico pelos micos mistificadores. Para todos, você, sua família, seus amigos, os que você tem defendido mesmo sem os conhecer, FELIZ ANO NOVO!!!
Comentar em resposta a JOSÉ da Silva SERÁFICO de Assis Carvalho
Avatar
Marlene Silva comentou:
31/12/2022
Bom dia ! Vc falou tudo, esse jabuti é muito inteligente, retratou o momento que estamos vivendo. ???????? Eu conheço esse samba de Martinho da Vila.
Comentar em resposta a Marlene Silva
Avatar
Celeste Correa comentou:
30/12/2022
Maravilha de crônica, mano! Ao ler o Taquiprati eu fiquei tão feliz que por um momento até esqueci as cenas da onça fugindo, cenas que me fizeram lembrar muito da novela " Vale Tudo" onde o vilão, o Reginaldo Faria, fugia do país com toda a grana. Sim, senti a impunidade pairando no ar. Mas logo depois pensei: essa onça maldita sugou tanta coisa dos habitantes da floresta, nesses quatro anos, que não dá para permitir que, agora longe da floresta, ela ainda roube a alegria, o entusiasmo e a esperança que paira no ar. O pesadelo acabou, porra! Hoje o momento é de MUITA celebração. Que soem os tambores dos animais originários que agora serão protagonistas de sua própria história. Amanhã será realmente outro dia.
Comentar em resposta a Celeste Correa