CRÔNICAS

Pluft em Coari e o mel da inteligência

Em: 17 de Julho de 2022 Visualizações: 5060
Pluft em Coari e o mel da inteligência

Vem, minha amiga, vem comigo a Coari (AM), cidadezinha às margens do rio Solimões, onde atores amadores encenaram, em 1960, Pluf, o Fantasminha. Ouçamos o que naquela ocasião disse dona Higina sobre as abelhas. Quem sabe poderemos assim confrontar a peça montada no passado com o filme de agora, que será exibido a partir desta quinta-feira (21) nos principais cinemas das capitais brasileiras. Comecemos pela reação das crianças.  

Vitória, de 8 anos, queria ser enfermeira, mas fascinada pela tia Renata, de quem é aluna, escolheu ser professora. Descobriu que pode também ser atriz, depois da pré-estreia do Pluft no domingo (3), em 15 salas do Rio, para duas mil pessoas, entre elas este avô que vos fala e suas três netas de 5, 8 e 11 anos e alguns sobrinhos-netos. “Esse foi o melhor filme da minha vida” – desembuchou do alto dos seus 7 anos o Gui, futuro astrônomo, curioso pelos mistérios do céu. “Foi o melhor dia da minha existência”, disse o longevo Davi, de 11 anos.

As três crianças sobrinhas da amazonense Clélia Bessa, produtora da Raccord Filmes, foram convidadas por ela e sua sócia Rosane Svartman, a diretora, para verem em 3D a história escrita por Maria Clara Machado (1921-2001), autora de dezenas de peças infantis, incluindo Pluft, que estreou pela primeira vez, em 1955, no Teatro Tablado, no Rio, e cinco anos depois era encenado na remota Coari, sob a direção de uma freira, a irmã Matilde, “noviça rebelde” da Congregação do Preciosíssimo Sangue.  

Agora, na adaptação para o cinema, contou com elenco supimpa: Juliano Cazarré - o pirata Perna-de-Pau, Fabiula Nascimento - a mãe fantasma e os jovens atores Nicolas Cruz (Pluft) e Lola Belli (Maribel), entre outros, com participação especial de Gregório Duvivier e homenagem póstuma a Hugo Carvana que, numa pintura no sótão da casa de Pluft, representa o capitão Bonança Arco-íris. Tudo repleto de magia.

O poder de um filme

Um dos cenários do filme é Sibaúma, Praia da Pipa, no Rio Grande do Norte, dotada de fenomenais falésias e penhascos. Mas o universo fantástico dos fantasmas foi filmado dentro de uma piscina, com falas de textos curtos para evitar as bolhas e com caixas submersas para obter boa iluminação, segundo a Assessoria de Imprensa Palavra.  

- Adorei fazer o Pluft embaixo d´água, encantado por estar livre da gravidade. Submerso na piscina, consegui voar, dançar, brincar, naquele ritmo natural de fantasma, sem o efeito “fake” de cabos de aço - disse Nicolas Cruz, o Pluft. Sobre o conteúdo, ele manifesta que “as diferenças causam divisões, preconceitos e medo de gostar do diferente, as pessoas se fecham dentro de suas próprias bolhas e ideias, mas o filme enfrenta o medo, que aprisiona, e se abre para o novo e o inesperado, que liberta”.  

Ele reforça assim a fala da diretora Rosane, para quem o filme é dirigido também aos adultos: “Pluft é uma obra que atravessa gerações, com mensagem linda sobre o medo do diferente e que nos ensina como o afeto pode vencer o medo” - noção cada vez mais necessária no Brasil de hoje. Ela encomendou o roteiro a José Lavigne e Cacá Mourthé, sobrinha de Maria Clara Machado.

A trilha sonora original é de Tim Rescala, que regravou canções originais da peça, uma delas na voz do cantor Frejat e do coral infantil da UFRJ, que antes do início da projeção, tocou “ao infinito”, segundo Maia, 5 anos, ou 893 vezes na contagem de Ana, 11 anos. A repetição quase exaustiva acabou contagiando as crianças, que quando foram tirar fotos com os atores, cantarolavam:

- Pluft e Maribel, são diferentes, mas são amigos feito o mar e o céu. Pluft e Maribel, fantasma e gente que se completam feito tinta e papel.

Esse é o poder de um filme excepcional: sacudir a vida das pessoas, abrir-lhes novos horizontes. Rosane e Maria Clara Machado penetraram no coração da Vivi e das crianças, da mesma forma que há mais de 60 anos Pluft tocou a alma do avô delas, quando viu a peça encenada em Coari, município produtor de banana e goiaba, então com 8.800 habitantes.

O interior do Brasil

Como é que os marinheiros do barco Maria Clara, que aparecem remando no último plano filmado em Sibaúma, navegaram 60 anos antes até o lago Mamiá, distante 370 km de Manaus? Peço ajuda ao Chicó, no Auto da Compadecida, para dizer que “não sei como foi, só sei que foi assim”. Quem me socorre também é “Exu, que matou um pássaro ontem com uma pedra que atirou hoje”, oriki citado por Pierre Verger em Orixás.

Tudo aconteceu quando a irrequieta irmã Matilde, nascida em Manaus com o nome leigo de Glória Bezerra, foi transferida pela madre Superiora para dar aulas na Escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Coari, antigo território dos povos Yurimagua e Miranha. Ela levava em sua bagagem cópia mimeografada da peça Pluft, o Fantasminha e um exemplar da revista Cadernos de Teatro, editado em 1956 por Maria Clara Machado, que já na apresentação do primeiro número lança um brado a quem fazia teatro:

- Não se esqueçam do interior do Brasil.

Era uma espécie de cartilha de como fazer um espetáculo, de como “chegar àquele rapaz ou àquela moça do interior que deseja fazer teatro e não sabe como fazê-lo”, com orientações para a descoberta de “peças fáceis e boas de serem montadas por um grupo inexperiente”. Os Cadernos, com apoio da UNESCO, tinham uma seção de repertório, disponibilizando para todo o Brasil textos sobre as artes cênicas, além de material para grupos amadores e atores iniciantes, “principalmente aqueles distantes das capitais”.

Com esse material na mão, a irmã Matilde lavou a égua. Formou um grupo de teatro amador com alunos adolescentes e mostrou aos coarienses o Fantasminha, numa versão que não tinha o personagem do senhor Flatus, peidando em 3D, mas fazia referência ao pescador no barco do Perna-de-Pau, atravessando o igarapé Chagas Aguiar até o castanhal na outra margem. Não lembro do personagem do tio Gerúndio. 

Alvíssaras, dona Higina

Meninas, eu tinha 12 ou 13 anos na estreia da peça abrilhantada com a presença do prefeito Alexandre Montoril. Creio que foi no 26 de julho, festa de Sant`Ana, pois no final os atores cantaram não Pluft e Maribel, mas o hino da padroeira de Coari(Clique aqui para ouvir)   

- Sant´Ana é a maior santa que no céu já temos oh visto, é a mãe da mãe, é a mãe da mãe, é a mãe e avó de oh Cristo

Nós, os seminaristas redentoristas, assistimos várias vezes o espetáculo, único divertimento local, sempre aberto por dona Higina, poeta, dona de castanhais e intelectual orgânica de igarapé, que nunca falava, declamava. Nem dava bom dia, irradiava alvíssaras. Com a voz tremelicando e lambendo os beiços, ela repetia nas solenidades e eventos a mesma frase, que ouvi pela primeira vez na inauguração da biblioteca do seminário e foi tão martelada, que ficou gravada para sempre em minha memória:

- Oh, é aqui neste recinto que vós vindes sorver, qual sagazes abelhas, o mel da inteligência.

Bendita e abençoada Maria Clara Machado, que foi professora no Conservatório de Teatro (hoje Unirio). Confesso que quando vi Pluft, tomei no passado a mesma decisão sonhada agora por Vivi, minha neta:

 - Vou ser ator.

Sou, embora canhestro e mambembe. Meu palco é a sala de aula, onde qual abelha tento me lambuzar com o mel da inteligência.

P.S. Pessoas, levem filh@s e net@s para ver o filme. Isso não é um comercial, apenas um convite para que as crianças possam sorver o mel da inteligência. Dona Higina dixit.  

FOTOS: Acervo O Tablado, PALAVRA - Assessoria em Comunicação e Renata Respeita

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24 Comentário(s)

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Maria Alice Pedotti comentou:
21/08/2022
Lindo e emocionante texto. Hoje, avó de 4 netos, ouvi, com meus 3 filhos, centenas de vezes, o disco gravado com a peça....... todos sabiam todas as falas. E o mais novo, sempre tremendo com os passos de toc toc toc da perna de pau..... Precisamos ir em bando..... rsrsrs..... assistir ao filme. Obrigada por nos contar a origem e história desde seu princípio..... que importante memória!!!
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Beth Formaggini comentou:
10/08/2022
Levei as netas e elas adoraram, lindo filme!
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Raimundo Peres comentou:
10/08/2022
Fizemos o mesmo . Reveria se conseguisse levar netos emprestados . Beijo grande , rai
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Marly Cuesta comentou:
22/07/2022
Massss, que riqueza, meu especial mestre e Prof.@José Bessa!Como sempre aprendendo com seus saberes!Não sabia que a peça foi encenada em Coari no nosso Amazonas! Concordo que “Pluft é uma obra que atravessa gerações, com mensagem linda sobre o medo do diferente e que nos ensina como o afeto pode vencer o medo” - noção cada vez mais necessária no Brasil de hoje. Esse filme deve estar uma riqueza imperdível ! Vamos valorizar os esforços para ter o RN como parte de seu cenário especial! Parabéns pelos netinh@s sortud@s e gratidão por compartilhar conosco,
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Beth Formaggini comentou:
21/07/2022
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Mailsa Passos comentou:
21/07/2022
Fiquei com mais vontade ainda de ver o filme. Eu estava tentando usar a Dora como álibi, e "levar ela". Como ela anda dizendo que o filme é pra criancinha, coisa que ela diz que não é mais (hahahaha) vou sozinha mesmo. Sabe que eu sempre brinco com meus alunos dizendo que a sala de aula é palco. hahahaha
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Adeice Torreias comentou:
19/07/2022
Olha que maravilhoso, José Bessa . Tomara que chegue aos bons cinemas de Boa Vista., Roraima,. Com certeza aqui será sucesso também. Abçs.
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Ligia Aquino comentou:
19/07/2022
Eu vou levar minhas meninas - um tanto sobrinhas, um tanto netas, muito amigas - que chegam amanhã pra passar uns dias de férias.
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Rosa Helena Mendonça comentou:
18/07/2022
Já marquei com os netinhos. Pluft atravessa gerações… Eu me lembro de ter visto com meu pai e de ter levado as filhas ao teatro. Agora vou ao cinema com os netos…
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Jaqueline Moll comentou:
18/07/2022
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Urda Alice Klueger comentou:
17/07/2022
Quantas lembranças! Pluft andava pela minha escola primária, sob a direção da Irmã Maria Josélia, professora do terceiro ano! Obrigada!
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Notícias do Municipio de Castanhal (PA) comentou:
17/07/2022
PUBLICADO NO BLOG CIDADES DO MEU BRASIL https://www.cidadesdomeubrasil.com.br/
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Tania Pacheco comentou:
17/07/2022
Publicado no Blog COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2022/07/17/pluft-em-coari-e-o-mel-da-inteligencia-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Roberto Zwetsch comentou:
17/07/2022
Roberto Zwetsch Belíssimo e estimulante texto, Bessa. Vou levar minha neta e meu neto para assistir o filme, sem dúvida. Eu estou curioso demais para assistir. Assim tenho um bom ÁLIBI. Abraço. Roberto Z. Roberto Zwetsch
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Tenório Telles comentou:
17/07/2022
Professor, Que bela crônica. O teatro é uma magia. E lembrar Maria Clara é um justo tributo
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Maria do Carmo Cardoso comentou:
17/07/2022
Essa foi a primeira obra de teatro a que assisti, levada por nossa professora de português. Foi muito importante! Daí não parei mais! Depois voltei ao Tablado levando o meu filho. Muitas lembranças!
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Diário do Amazonas d24 comentou:
17/07/2022
Publicado em D24 Diário do Amazonas https://d24am.com/colunas/taquiprati/pluft-em-coari-e-o-mel-da-inteligencia/
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Flavia Respeita comentou:
17/07/2022
E eu aqui achando que Pluft a minha geração era umas das primeiras que teve o prazer de ver peças do pluft na infância, cheia de saudosismo. Magnífico, tio. A Maria Clara Machado era encantadora, com um talento de tocar, de forma tão simples…e o filme fez uma belíssima homenagem. Tive o prazer de conhece-la já bastante velhinha na época em que frequentava as aulas do Tablado. Parabéns, tio. Parabens, Clelia Bessa e cada um que contribuiu para que o filme ficasse tão maravilhoso. Acho que a Ana errou a contagem por 2 ou 3…por isso que acho que a Maia ganhou a aposta.
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Rodrigo comentou:
17/07/2022
O pluft com certeza é uma programação para toda a família e após os relatos do David e do Gui eu não tenho mais dúvidas disso. Por falar em infância eu tenho duas observações: 1° Eu reconheci o homem das cem bancas com extrema facilidade na fotografia do 4° ano, nem precisei "colar" olhando a legenda 2° Quando vi o nome Tim Rescala me lembrei automaticamente de quando era criança e assistia a saudosa escolinha do professor Raimundo, ele fazia o Capilé Sorriso, gostava desse personagem.Capilé, por você ter feito a trilha sonora original com seu talento e maestria para o filme, o professor Raimundo mandou avisar que está te dando nota 10, para redimir os zeros que ele te deu nas edições da escolinha, combinado? Que todos possam assistir o filme pluft, não percam! Um abraço querido professor.
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Valter Xeu comentou:
16/07/2022
Publicado em PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/pluft-em-coari-e-o-mel-da-inteligencia/
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Carmen Goulart comentou:
16/07/2022
Avô e netos juntos na diversão, que lindeza!
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
16/07/2022
Babá, que beleza. Assisti o Pluft no Teatro Amazonas, em uma encenação de um grupo de teatro universitário. Na bruma da memória não lembro de tudo, mas lembro (ou será que me engano?) que o poeta Elson Farias fazia o papel do Pirata da Perna de Pau. Houve também uma montagem (ou pelo menos uma tentativa de) de uma adaptação do Pequeno Príncipe, essa obra prima vilipendiada como "livro de miss", e que também é uma ode de respeito à diferença, ao cultivo da amizade (És responsável por quem cativas???). Poxa, na nossa infância Coari e Manaus eram muitomelhores.... ou não?
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Dodora Bessa Farias comentou:
16/07/2022
Lamentei muito não está aqui no Rio para participar da alegria da criançada, de corpo e alma (crianças e adultos), deste grande evento, cultural e familiar! Mas, com certeza, assistirei o filme, nem que seja já na minha acostumada solidão familiar, após tantas perdas dos irmãos e alguns afastamentos involuntários...ADOREI essa crônica, Babá, que só merece um comentário: perfeitíssima, eterna, criadora de lembranças nos mais velhos e sonhos nas novas gerações.
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Celeste Correa comentou:
16/07/2022
Que lindo, mano. É arte seguindo através dos tempos salvando a gente das loucuras desse mundo,né! ao ler a crônica também viajei no tempo e fiquei admirando a beleza da imaginação infantil diante de um bom texto, imaginação que independe do tempo, do local, das condições logísticas... elas têm o poder de criar o seu próprio encantamento e nos ensinar tanta coisa, inclusive a enfrentar os nossos medos com mais leveza e lidar melhor com o diferente. E esse exercício requer de nós o malabarismo do artista.rs Parabéns para a Clélia pelo lindo trabalho! Parabéns pela sua coragem, pois fazer arte neste contexto tão adverso é um sinal de resistência.
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