.Há 15 anos, em 1980, tive o privilégio de entrevistar o jovem líder do povo Shuar, Ampan Kracas, para o Porantim, um jornal mensal então editado em Manaus e dedicado exclusivamente às questões indígenas.
Os Shuar, da família dos Jíbaros, são aproximadamente 50 mil pessoas, que vivem na floresta da Amazônia. No período colonial lutaram bravamente contra os conquistadores espanhóis e resistiram aos missionários que satanizavam sua religião.
Com a independência política do Equador, no séc. XIX e a formação dos estados hispano-americanos, o povo Shuar teve seu território decepado ao meio. Uma parte ficou do lado do Equador e a outra parte, do Peru.
Hoje os Shuar continuam gostando de se enfeitar com luxuosas coroas de plumas e de se tatuar com pinturas. Possuem uma emissora de rádio que transmite programas musicais e noticiário jornalístico em língua Shuar, alternando com o castelhano.
O nosso entrevistado Ampan Kracas é líder Shuar do lado equatoriano. Fala, lê e escreve nas duas línguas. Maneja os dois idiomas, ambos como língua materna, numa situação classificada pelos socio-linguistas como bilinguismo coordenado.
Na entrevista, usei um portunhol tão perfeito quanto o falado pelo Sarney, que bebe “cueca cuela” e pelo Collor de Mello, autor da frase “duela a quien duela”. Preocupado com a questão da identidade coletiva, a primeira pergunta que fiz a Ampan Kracas, fo:
- Cuál es tu Pátria?
O líder indígena não duvidou e respondeu em cima da bucha:
- Mi Pátria grande es el Ecuador. Mi Pátria chica es el Shuar.
O “grande” e o “chica” não se referem ao valor de ambas, que contribuem para o patrimônio cultura e linguístico da humanidade, mas ao tamanho do território e à demografia de cada uma das duas pátrias.
Lembrei-me dessa entrevista ao ler o discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, no encerramento do encontro com os governadores da Amazônia, quase todos eles com uma folha de serviços prestados contra os povos indígenas.
- Os direitos indígenas, a cultura e a tradição indígenas têm que ser respeitados – falou FHC, com a voz da primeira-dama, a antropóloga Ruth Cardoso. Ele lembrou que foi signatário, junto com Severo Gomes, do documento em defesa da criação do Parque Yanomami e acrescentou:
- Hoje mantenho o meu ponto de vista. Uma cultura como a Yanomami é uma preciosidade histórica para a civilização, para nós e para o mundo. Viva dona Ruth mais uma vez!
Ao longo de todo o período colonial, os portugueses achavam que deviam “civilizar”, “cristianizar” e “portugalizar” os índios. O Estado neo-brasileiro, durante o Império e a República, tentou catequizar os índios, acabar com suas culturas, para transformá-los em “brasileiros”. Agora, pela primeira vez na história do País, um presidente da República, casado com dona Ruth, reconhece publicamente que os índios têm o direito de manter sua pátria “chica”.
Ao contrário do que apregoam os ignorantes, os espertalhões e os “patriotas”, esse reconhecimento não afeta em nada a segurança e a integridade do território nacional. É bom para o Brasil e enriquecedor do seu patrimônio cultural que os índios preservem suas línguas, suas culturas e seus saberes, O Brasil fica, assim, mas rico e plural.
Ao agir desta forma, FHC, além de ouvir os conselhos da dona Ruth, cumpre o seu dever de zelar pela atual Constituição Brasileira, a qual jurou fidelidade, que reconhece aos povos indígenas o direito à diferença, assegura-lhes o uso de suas línguas maternas e de usá-las nas escolas, assim como os seus processos próprios de aprendizagem. E determina ao Estado proteger as culturas indígenas, garantir a posse e o usufruto de suas terras e de defendê-las das invasões de grileiros e de outros usurpadores.
O reconhecimento da “pátria pequena” pela Constituição e pelo próprio presidente da República constitui um notável avanço que deve ter suas consequências práticas, inibindo a ação dos ladrões das terras indígenas, de garimpeiros, mineradoras, petroleiras e agro negociantes.