CRÔNICAS

A gramática pode matar?

Em: 27 de Março de 2022 Visualizações: 4822
A gramática pode matar?

Noite de sábado (05/02). Duas vizinhas bebiam umas cachacinhas num boteco do bairro Cidade Nova, Zona Norte de Manaus, batendo um animado e escorregadio papo “baba-de-quiabo”. Eis que por volta das 23h30, já cheias do aço, como se diz em amazonês, começaram a berrar e a trocar palavrões. Auxiliadora Vasconcelos dos Santos, 38 anos, se levantou e, chirrada, caminhou cercando frango até a sua casa ali perto. Retornou com uma faca e enfiou-a no tórax de Deborah Lima Senna, 40 anos, que morreu.

Motivo do crime: a vítima teria corrigido o “português errado” da assassina, segundo o delegado Cícero Túlio. Pedi a dois sobrinhos jornalistas que moram em Manaus para apurarem qual foi o “erro”. O veterano Fábio, ex-reporter de jornal e TV, me sacaneou: “Não faço a menor ideia, mas preciso descobrir, porque minha vida pode estar em risco e eu nem sei”. O iniciante Gabriel Kokai me disse que o Boletim de Ocorrência feito no 19º Distrito Integrado da Polícia (DIP) não registrou qual foi esse “erro de português”.

Segui a dica do Gabriel e acionei a Assessoria de Comunicação da PM que, após consultar o delegado Ricardo Cunha, titular da Delegacia de Homicídios (DEHS), me respondeu por e-mail (09/02), informando a apreensão pela polícia de “duas facas na residência da infratora”:

- “Mais informações não podem ser repassadas para não atrapalhar as investigações em andamento”.

Depois de sete semanas, desconheço se as investigações já foram concluídas.  Sem resposta à minha pergunta, me permito fazer um exercício de imaginação com base nas variadas formas de falar do amazonense e no ensino da gramática, chamada de “dramática” com muita propriedade pela minha sobrinha neta Heleninha, que inicia agora sua escolaridade.

Pupa da canua

Mas afinal o que a Auxiliadora falou que mereceu a correção? Talvez Déborah tenha estudado em uma das quatro escolas estaduais próximas ao bar, o local do crime, onde pode ter aprendido a “dramática” normativa, que determina como deve ser falada uma língua, com base na norma-padrão ensinada nas escolas junto com preconceitos. É essa “dramática” que caga regras, estabelecendo o que é certo ou errado, com critérios ideológicos e moralistas, que acabam servindo para ostentar poder e prestígio.

Imaginemos que Auxiliadora, antes de morar em Manaus, viveu em Borba, no rio Madeira, que seria sua terra natal. Nas falas do interior do Amazonas costuma ocorrer a passagem de um som linguístico para outro, o chamado alçamento vocálico, caracterizado pela migração de uma vogal média (/e/, /o/) para uma vogal alta (/i/, /u/) num processo fonológico estudado por Maria Sandra Campos em sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Ulha já esse minino sentado na pupa da canua”.

Supunhetemos que Auxiliadora disse: “eu cumpro se tu me vender”. Deborah, então, debochou publicamente da vizinha, chamando-a de burra. Exerceu o insuportável papel de xerife da língua que lhe ensinaram na escola, ignorando o que disse Saramago, prêmio Nobel da Literatura: “Existem várias línguas faladas em português”, nenhuma melhor que a outra. A “dramática” normativa erra ao julgar “errado” tudo o que contraria a norma padrão e ao discriminar as legítimas variedades populares, que têm suas regras e não prejudicam a compreensão.

Milhões de brasileiros, que chegam à escola falando conforme as regras da variedade popular, são humilhados, ridicularizados e reprimidos. Na sala de aula, aprendem a se envergonhar do seu jeito de falar e nem sempre se apropriam, em tais condições adversas, da norma padrão necessária para uso em espaços públicos e para o exercício da cidadania. É claro que o deboche da vítima motivado por sua santa ignorância não justifica o seu assassinato. Por que matar alguém por um motivo aparentemente tão banal?

Tesão de matar

No artigo “O tesão de matar” (FSP-08/02/2022), Álvaro Costa e Silva constata que “O Brasil se destaca como campeão de homicídios no mundo. Mais do que fazer justiça com as próprias mãos, instalou-se o desejo de eliminar o outro. O tesão de matar virou estilo de vida. Ricos colecionam fuzis e fazem terapia em clubes de tiro. A classe média usa pistola. Pobres vão de faca, paus e pedras e são ao mesmo tempo algozes e vítimas do linchamento geral”.

Quando o MEC adotou em 2011 o livro “Por uma vida melhor”, da coleção VIVER, APRENDER,  sua autora Heloísa Ramos esclareceu as diferenças entre fala e escrita, destacando a variação como uma das características da fala. Ela foi linchada publicamente por defender o respeito que a escola deve ter ao jeito de falar do aluno, que varia de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. Esse ambiente acolhedor é pré-condição para aprender a norma padrão impropriamente denominada de norma culta, posto que todas normas refletem cultura.

Na época, em 2011, o jornalista Merval Pereira, que acabava de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, reagiu como Deborah, condenou o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo MEC com alegações preconceituosas:

 “Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”.

Lula, felizmente, não tem tesão de matar. Merval não foi esfaqueado, apesar de sua santa ignorância ser grave pelo lugar que ocupa hoje como presidente da ABL e que reforça preconceitos. Mas ele fez escola em favor da “dramática” normativa. Sua colega na GloboNews, Cecília Flesch, zombou da fala de Lula por ter ele falado “adevogado”, recebendo resposta demolidora do jornalista Benedito Costa em carta a ela endereçada, que viralizou:

- “Grande parte dos falantes do Sul usam a epêntese no caso de “advogado”, assim como em grande parte do país se fala “peneu”. Incluindo você”.

Dramática Normativa

Epêntese é o acréscimo de um ou mais fonemas ao interior de um vocábulo, como na fala de Bolsonaro, o rei das “rachadinhas”, quando diz que no Brasil não há corrupição. Ele põe aquilo que seu ex-ministro Sérgio Moro retira, ao se referir ao “cônjuge” num processo inverso denominado de síncope. Nem Moro, nem seu ex-chefe podem ser chamados de “burros”, não por causa disso. Não seria problema falar assim no recesso do lar ou num bar. A mancada foi uma autoridade, que deve conhecer o registro formal da língua, repetir três vezes “conge” numa fala oficial no Congresso Nacional.

No seu livro “Preconceito Linguístico”, que é hoje uma referência, Marcos Bagno mostra como a linguagem popular, por razões ideológicas e políticas, foi sempre estigmatizada como sendo uma “mutilação” da “verdadeira língua”, quando podemos ser multilíngues nas “várias línguas faladas em português”.  O curioso é que quem discrimina ignora muitas vezes o registro formal que diz defender. Afinal, o importante é combater a “corrupição”, respeitar o “conge”, verificar se o “adevogado” tem inscrição na OAB.  É preciso desarmar a “dramática” normativa, para que ela não continue humilhando e matando.

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19 Comentário(s)

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Márcio Pucu comentou:
31/03/2022
Muito boa a crônica professor Bessa, a palavra dita sempre foi e será um complicador ou o inverso, nesse caso em tela foi mortal. O tema é vasto em nosso país continental e fora dele, como bem lembrado nos dizeres do escritor Saramago, apenas consignar que em São Paulo é muito comum responder um obrigado com a palavra imagina, e o nosso caboco fala com sotaque frances já me vou. Obrigado pela crônica e não precisa responder com IMAGINA.
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Ligia Aquino (via FB) comentou:
31/03/2022
Mais um texto preciso. Muitas aulas e sabedoria num texto só. Grata!
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Nilda Alves comentou:
28/03/2022
Querido amigo Bessa, bom dia Como sempre, temática importante e trabalhada como só você sabe fazer. Já espalhada. Grande abraço Nilda
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Nizaldo Costa comentou:
28/03/2022
Delicioso texto. Só uma peeguntinha ou provocaç?o: o CONGE do juizeco nã poderia ser uma síncope?
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Paulo Cesar comentou:
27/03/2022
Enquanto tivermos Babás e Beniditos (apareceu um traço vermelho embaixo da palavra, não sei porque) riremos da mediocridade.
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mari weigert comentou:
27/03/2022
Excelente artigo.Meus ancestrais imigrantes eram os próprios precursores de muitas línguas dentro português que respingou em mim. Tudo junto misturado
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Marcos Bagno comentou:
27/03/2022
Oi, Bessa. A história é terrível, mas acho injusto colocar uma gramática na ilustração, como se o autor tivesse alguma coisa a ver com o crime. Na verdade, quem apregoa essas bobagens sobre a língua não são os gramáticos profissionais, como Rocha Lima, mas gente que ouviu o galo cantar e achou que era cotovia. Um abraço.
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Taquiprati comentou:
27/03/2022
Oi Marcos, vc, tem razão. Alguém fez comentário semelhante ao seu. .O Rocha Lima é o pai da Valentina, historiadora, que foi minha querida professora na UFRJ. A ideia não era expô-lo, nem vincular a gramática dele ao crime, mas aproveitar as duas imagens da capa que simbolizam o poder responsável pela imposição da norma dramática..
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Lucila Silva Telles comentou:
27/03/2022
Muito bom, muito mesmo, José Bessa obrigada por me mostrar. Eu me lembro dessas nojeiras todas, do merdal e daquelazinha que o Benedito enquadrou. É uma sociedade desprezível mesmo ... E o nome dado pela sua sobrinha-neta é perfeito. Outra possibilidade é traumática normativa... Um abração!
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Beto Vianna comentou:
27/03/2022
muito bom, bessa, como sempre. e bem sabemos que até quando pobre acerta na concordência (coube/cube, trouxe/truxe, distinguindo a 3a. e a 1a. pessoas) a gramática (e por servir a corte, o merval) teima em discordar.
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SILVIA comentou:
27/03/2022
Excelente explicação do preconceito linguístico e da estigmatização de um grupo social pelo modo de falar, engraçado e sério ao mesmo tempo.
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Joaquim Barbosa (via FB) comentou:
27/03/2022
Texto muito bom. Boa reflexão, professor. A propósito, se Merval fosse avaliado pelos "erros" gramaticais que comete quase sempre, não estaria na ABL, nem dando pitacos em jornais da Grobo.
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Mailsa comentou:
27/03/2022
Bessa querido, você brilhantemente poetisa a prosa com suas crônicas. E é maravilhoso como você passeia por questões contemporâneas tão importantes e dá verdadeiras aulas de ética e política. Muito orgulho de ser sua amiga! Obrigada.
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Decio Adams comentou:
27/03/2022
Ótimo esse seu texto José Ribamar. Esses pequenos "erros" que muitos cometem já fazem parte da língua falada em diferentes regiões. A norma culta deve ser respeitada, como você bem destaca, no uso em público, eventos oficiais e jurídicos.
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Astrid Lima comentou:
27/03/2022
Seriam necessário muitos livros para interpretar a monarquia brasileira e as declinações do poder e da violência que ela emana. O vossa mercê contraiu-se no mais moderno você, mas continua perpetuando a distância entre nobres e plebeus. E como a água descendo a escada social até os degraus mais baixos, o pronome de tratamento real alcança o popular tu e nos arrasta nesse turbilhão de ódio.
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Valter Xeu comentou:
27/03/2022
Publicado no Blog PATRIA LATINA https://patrialatina.com.br/a-gramatica-pode-matar/
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Mario Dandão comentou:
27/03/2022
Só não sei se lamento ou acho graça na tragédia.
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Astrid Lima comentou:
27/03/2022
Oi Ribamar, eu li, en passant, esse mais recente episódio de discriminação ao Lula. Queria o que em um país que condenou o "tu" preferindo o recatado e muito do lar "você" ? Penso sempre na falta de sentido de ter renunciado ao pronome pessoal mais íntimo, aconchegante e fraternal pelo outro, de origens tão servis e urbanas. Penso nas traduções mancas, na poesia pobre, na literatura pasteurizada e “pastorizada” que nasce dessa escolha de "classe". O Brasil é um país violento, ele arrasta consigo, como se fosse agora, o momento mesmo da invasão e da sua formação como Estado, da eliminação indígena, da escravidão africana. Talvez nenhum país da América do Sul sinta tanto a necessidade de exibir e exercer o poder em todos os âmbitos como nós. E esse poder não é apenas econômico, é social, é cultural, é politico. É um poder monárquico que pretende a total servidão, a incondicionada submissão, exigindo adoração e obediência. Um poder que necessita da hierarquia e de súditos para preservar a própria identidade. E eis que a língua transforma-se numa das declinações do absolutismo, em arma que protege a corte sitiada pelos plebeus. Aos olhos do mundo essa dinastia de tailleur aparece pelo que é: inadequada, ignorante e desesperada no seu terror até por uma tão republicana social-democracia. E quanto vexame nos faz passar.
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
27/03/2022
Bessa, para além das epênteses e das síncopes - e dos outros fenômenos linguísticos com os quais o Benedito Costa chamou nas chinchas a globete Flesh, recentemente li - e tenho na mesa para consulta - o quinto livro de uma série interessante dos professores Francisco Eduardo Vieira e Carlos Alberto Faraco, A série pe "Escrever na Universidade" é o livro é intitulado Gramática da Norma de Referência. A tal norma de referência, ou norma-padrão brasileira, desdramatiza a dramática da sua netinha, "legitimando usos linguísticos correntes na escrita acadêmica e jornalística". Afinal, para além do falar - e o falar popular tem que ser legitimado, como o Marcos Bagno e vários outros linguistas já vêm defendendo há tempos, o livro mostra como a escrita - supostamente atenta às normas de referência - e f***-** a dita "normal culta" - o caso é que escrever é distinto do falar. Como, aliás, você chama a atenção. E o livro ajuda pacas no entendimento e uso corrente na escrita acadêmica e jornalística brasileira. Afinal, não só na fala, como na escrita, como dia o poeta, nossa língua "é brasileira, já passou do português". O triste mesmo é a tragédia ter que se tornar cômica para que possamos até mesmo entender que o "minino sentado na pupa da canua" é fala legítima, e os ignorantões tipo Flesh e Merval muitas vezes nem atentem para os erros que cometem na escrita da norma-padrão. E a canua da inguinorança sabichona vai que nem merda boiando no remanso... Os dois professores, aliás, volta e meia frisam que não devemos nos preocupar em memorizar as regras, e que "basta ativar a nossa consciência sintática" para escrever bem em português brasileiro.
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