Estamos em 1808. D.João VI chega ao Brasil. No Paço, o cavalo do rei dá um coice nos testículos do Manuel português, que desmaia. A ‘coisa’ incha, fica do tamanho de uma bola de basquete. Sem saber como tratá-lo, médicos congelam o paciente, com a esperança de que no futuro possa ser curado. Duzentos anos depois, em 2008, o futuro chegou. Despertam o Manuel. Ele olha prum lado, pro outro e, confuso, pergunta:
- Ora pois-pois, onde é que estou?.
Uma enfermeira responde:
- Dentro de um hospital.
Manoel, surpreso:
– Um hospital? Isso cá é um hospital?
A enfermeira:
- É. É sim. Mudou muito nesses dois séculos. Por isso, você não reconhece.
Não é só num hospital. Dentro de qualquer instituição onde acordasse – shopping, quartel, igreja, museu, fábrica - Manuel ficaria igualmente leso e despirocado, não reconheceria nada, porque de D. João VI pra cá tudo mudou radicalmente. Só tem uma exceção: a sala de aula. Nesse caso, ele não precisaria de qualquer explicação. É que a sala de aula permanece igualzinha: professor, alunos, carteira, quadro, giz, apagador. Nesses duzentos anos, a escola não mudou. Esse é um dado inquietante, sobretudo para nós professores: a escola não acompanhou, como devia, as mudanças da sociedade.
Nesses dois séculos, a única coisa NOVA que surgiu na educação brasileira foi o tratamento dado a quem é diferente. Se em vez de uma escola qualquer, Manuel despertasse, por exemplo, dentro da Escola André Vidal, em Manaus, onde estudam 503 alunos deficientes, aí sim, ele estranharia: - “Onde estou?”. Ficaria impactado com os alunos (na sua época, deficiente não ia pra escola) e se surpreenderia com as salas, amplas e climatizadas, com espelhos, tv, vídeo, mesas e cadeiras adaptadas, atendimento individualizado, equipe clínica atuando em horário de aula, com psicólogo, fonoaudiólogo e fisioterapeuta.
Fofoca de tacacazeira
Essa escola já é feliz na própria escolha do nome: André Vidal de Araújo, um grande educador que pensou os nossos problemas, autor de vários livros, entre os quais “Introdução à Sociologia da Amazônia”, que incorpora em suas análises até mesmo conversas nas bancas de tacacá e fofocas de tacacazeiras. Saudades do doutor André! Ele foi o primeiro intelectual amazonense a lutar, nos anos 1950-60, contra a discriminação e exclusão dos deficientes, que deveriam ter – segundo ele – os mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. De lá pra cá, muita coisa mudou.
O Brasil inteiro, até pouco tempo, era extremamente cruel com os deficientes visuais, auditivos ou mentais, que não eram considerados cidadãos. Manaus, então, nem contar. Não havia lugar em nossa cidade para quem tinha qualquer tipo de deficiência. Lembro que nessa época a molecada jogava pedra no Jaú, no Zé Dilau e em tantos outros, aperreando-os, molestando-os. O Jaú era apenas surdo, não ouvia o que os outros diziam e vivia gritando sons desconexos. O Zé Dilau usava muleta. Não havia uma escola especial para pessoas como eles. Eram cuspidos pra fora da cidade, do convívio social.
Mas hoje existe. O Complexo Municipal de Educação Especial (CMEE) do qual a mencionada escola faz parte, foi criado em maio do ano passado pelo atual prefeito Serafim Corrêa (PSB), a partir de duas escolas especiais que já existiam e que foram extintas para dar nascimento ao CMEE. O Serafim deixou de fazer coisas que a gente esperava, como por exemplo, na questão ambiental. Porém, no tratamento escolar do diferente – deficiente e índio em contexto urbano - ele foi impecável, demonstrando enorme sensibilidade.
O CMEE tem ainda duas piscinas com barra, rampa para cadeirantes, quadra de esporte, refeitório, oficina de brinquedos, os cambau a quatro, coisa de primeiro mundo, que os deficientes merecem, além de professores dedicados, comprometidos afetiva e intelectualmente com os problemas de seus alunos. Uma delas, Elisângela, me deu um depoimento comovente, falando inclusive de seminários, que permitem a atualização permanente dos professores e a busca de novas alternativas e práticas pedagógicas para explorar a capacidade de aprender das crianças.
Psol na bola
A situação dos deficientes é uma questão tão séria, que não é correto fazer tráfico político com ela. Se o Negão, por exemplo, ou o Cabo Pereira, ou o Dudu ou até o Carijó - a quem a gente critica ferrenhamente – derem passos positivos nessa direção, somos obrigados a reconhecer sua contribuição, porque os deficientes não podem pagar por minhas simpatias ou meus interesses político-eleitorais. A forma como uma sociedade trata os seus deficientes, a capacidade de compreender a situação do outro, do diferente, e de despertar sentimentos de solidariedade e generosidade em relação a eles é tão séria que qualquer demagogia é condenável.
Vários prefeitos de Manaus, entre os quais os que nós aqui sempre criticamos, colocaram um tijolinho nesse processo. Uma espécie de cartilha, editada pela atual gestão municipal, reconhece que desde 1989, isso vem inquietando os governantes. Nesse ano, uma pesquisa mostrou que era enorme o número de crianças de Manaus que necessitavam atendimento educacional especializado. No ano seguinte, a Secretaria Municipal de Educação já dava atendimento a 72 alunos. Era pouco, mas era.
A partir daí, vários tijolinhos foram colocados. Em 1991 foi criado o Núcleo de Educação Especial e dois anos depois 16 turmas em nove escolas passaram a dar atendimento a 236 alunos especiais. No plano nacional, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 definiu a educação especial como uma modalidade de educação escolar, destinada a acompanhar os portadores de todo tipo de deficiência. Aí, em 1998, em Manaus, o Município criou uma escola especial para deficientes auditivos e visuais, que ampliou seus serviços em 2002 para deficientes mentais, portadores de deficiências múltiplas e paralisados cerebrais. Finalmente, em 2005, o Serafa iniciou a construção do CMEE.
No último debate entre os candidatos a prefeito, um deles, do PSOL, por quem tenho um profundo, imenso, incomensurável afeto (é meu mano querido) pisou na bola, criticando aquilo que pode ser considerado o melhor trabalho da atual gestão (PSB). Aliás, criticou injustamente também o Praciano (PT), um exemplo de luta e honradez. Com todas as discordâncias que com eles se possa ter, o Praça e o Serafa têm uma folha de serviços prestados a essa cidade, que merecem respeito.
Aquele (a) leitor (a) que chegou até aqui pode perguntar:
- “Ué, e o Manuel, o que aconteceu com ele?”.
Bem, o Manuel ficou curado, depois de um culhograma computadorizado e mandou recado para o candidato do PSOL:
- Concentra o fogo sobre o Omar e o Negão. O trabalho que a Elizabeth Mascarello de Andrade e a Stella Freire Alencar estão fazendo na área da educação especial merece aplausos. Até os cegos veem e os surdos ouvem. Não faça demagogia barata.
P.S.1 – Quem escreve tem a obrigação de avisar o leitor sobre suas ligações, para que ele possa relativizar o que a gente diz. Informo, portanto, que a citada Stella é minha irmãzinha querida e que o tio da Elisângela sou eu. Ambas são professoras concursadas (ouviu Berinho? Ouviu Belão? Con-cur-sa-das).
P.S.2 – Ontem foi sepultado o querido Rogério Cabral, do bairro de Aparecida, irmão da Regininha e cunhado do Tuta. Nossos sinceros pêsames.