CRÔNICAS

Heleno de Tróia e as nações indígenas

Em: 27 de Janeiro de 2019 Visualizações: 12581
Heleno de Tróia e as nações indígenas

As recentes declarações do general Augusto Heleno à Globo News agora, em 2019, me fazem lembrar dois de seus predecessores ideológicos: Hélio Jaguaribe, que fez conferência em 1992 na Escola Superior de Guerra e o general Durval Nery que se manifestou num debate sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, na Rádio Band-AM, em 2008, num debate do qual participei. Os três martelaram a mesma lenga-lenga, parece até lição decorada: “O Brasil pode perder boa fatia de seu território, se os índios decidirem proclamar a independência de suas terras demarcadas”. Será?

O general Heleno fala na condição de ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro, quando se pronuncia contra as demarcações das terras indígenas determinadas pela Constituição de 1988.  Em sua opinião, um território como o da Raposa Serra do Sol atentaria contra a soberania nacional ao permitir que os índios tenham autonomia sobre ele. “Se amanhã uma ONG resolver abraçar a causa, cria uma bandeira, cria um hino, já tem território e pedem a ONU para criar uma nação”. Ele diz que o correto não é “dar terras”, mas integrar os índios e transformá-los em cidadãos.

Que raciocínio simplório, meu Deus! Um país com 16 mil habitantes! E reconhecido pela ONU! Segundo o general Heleno, existem demarcações feitas a partir de “laudos antropológicos fraudulentos”, que incorporam em alguns casos, como no norte da Amazônia, “tribos” onde ele teria encontrado “um morubixaba, um tuxaua, um cacique, sei lá, que não falava português, só inglês”. O Queiroz e o Flávio Bolsonaro a gente sabe o que ganharam, mas o general não disse nem lhe foi perguntado o que lucraram os antropólogos com a pretensa fraude, em que consistiu a fraude, quais as fontes em que se baseou, nem esclareceu que o índio poliglota ao qual se refere morava na fronteira com a Guiana de fala inglesa, onde viviam seus parentes. Jair Bolsonaro não fala inglês e nem por isso “o Brasil está acima de tudo”.     

Com todo respeito, sobre a questão indígena o general só falou disparates, que não resistem a menor análise. Os dois Pereira – Heraldo e Merval – Andrea Sadi, Cristiana Lobo, Natuza Nery e Gerson Camarotti só diziam amém. Esboçaram riso cúmplice quando o general debochou dos antropólogos que rejeitam o uso do termo “tribo”. Não havia uma viva alma para questioná-lo. Não havia o contraditório nem o exercício dialético de se contrapor para orientar quem assistia o programa. Foi feito para o telespectador acreditar naquela unanimidade 

Faixa Livre

O Jornal das Dez da Globo News não é como o programa Faixa Livre da Rádio-Band-Am do Rio de Janeiro comandado pelo radialista Paulo Passarinho, que entrevista pessoas de pensamento diverso e aperta a todos com perguntas, abrindo espaço para as indagações dos ouvintes. Foi assim em 2008, quando participei com o fotógrafo Milton Guran de um debate com o general Nery, que foi logo criticando o fato de eu ter me referido aos índios como nações, o que era perigoso porque podia dividir o Brasil em vários países.

- General – eu lhe disse – parece que há certa confusão com as definições de “estado” e de “nação”. O Estado é   um conceito, com o perdão da palavra, da geopolítica, formado por um conjunto de instituições políticas e uma máquina administrativa que organiza o território. Já nação se refere às comunidades humanas que têm em comum tradições, línguas e outros babados.  A Bélgica e a Suíça, que esconde dinheiro de corruptos, são países que abrigam várias nações, com várias línguas reconhecidas, e nem por isso esses estados plurinacionais capitalistas têm sua soberania ameaçada.

O general retrucou que sabia muito bem qual a diferença entre Estado e Nação, mas insistiu que no caso do Brasil o uso do termo era perigoso. Argumentei, então, que foram os portugueses que chamaram as “tribos” de nação conforme consta na documentação do período colonial e que me parecia disparatado o medo de uma palavra, que aliás se referia a um coletivo, como atesta a brincadeira das crianças em Portugal que cantavam: “Aranha, aranhão, sapo, sapão, bicho de toda nação”. Era usado no sentido de “nações camponesas” tal qual definidas pelo teórico holandês Anton Pannekoek. Em que a nação rubronegra ameaça à integridade do Brasil com seus milhões de torcedores? Num determinado momento do debate, quando o general Nery falou o que agora o seu colega Heleno repete, de que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol poderia decepar um pedaço do território brasileiro, eu contra argumentei:

- General, só teme 16 mil índios armados de arco e flecha aquele que não confia nas Forças Armadas Brasileiras, com aviões, tanques, armas pesadas, mísseis antiaéreos. Eu confio nas nossas Forças Armadas, por isso não compartilho tal temor e sou a favor de que o Brasil reconheça os direitos dos índios que ocupavam esse território muito antes dos portugueses.

O Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco sabiam que foi exatamente o contrário: “Os peitos dos índios foram as muralhas dos sertões”, que garantiram a extensão territorial do Brasil. Esse discurso de que os índios podem procurar a ONU para formar outro país é tão delirante e estapafúrdio como a “notícia” do jornal O Globo que publicou no dia 5 de maio de 2002 uma matéria com chamada na primeira página, jurando que onze caciques já teriam juntos 2 bilhões de dólares, anotem bem US$ 2.000.000.000. Não exibiu qualquer prova, não indicou onde estava essa grana. O autor da matéria acha que seus leitores são débeis mentais. É fake, mas se colar, colou.

Jaguaribe, o profeta

Já Hélio Jaguaribe, que se supõe bem informado pela sua formação acadêmica, em conferência na Escola Superior de Guerra, em 1992, indicou com todas as letras quem eram os aliados externos que queriam se apropriar das riquezas minerais existentes em áreas indígenas. Jaguaribe era Secretário de Ciência e Tecnologia no Governo Collor quando jurou que a demarcação de terras indígenas era uma estratégia para decepar a Amazônia e criar dentro dela várias pátrias. Deu nome aos bois:

- “O objetivo que se tem em vista é o de criar condições para a formação de ‘nações indígenas’ e proclamar, subsequentemente, sua independência com o apoio americano”.

Diante de acusação tão grave, os leitores esperavam que Jaguaribe, o patriota, fosse consequente e propusesse medidas para afirmar a soberania nacional tais como: a modernização do Exército brasileiro, a organização e mobilização popular contra o imperialismo americano, a expulsão das multinacionais que desrespeitam as leis brasileiras, o protesto do Brasil na ONU, um pedido de esclarecimento ao embaixador americano e, se necessário, o rompimento de relações diplomáticas com os Estados Unidos.

Necas de pitibiribas! Nenhuma medida dessas foi proposta. Jaguaribe, assim como o general Heleno, são bonzinhos com os americanos e com os empresários, com quem falam fino. Aí deixam de ser patriotas.  A bronca dele é com os índios, com quem engrossam a voz. Aí voltam a ser patriotas. No Brasil deles, que não é o nosso, a única forma de defender a soberania - diz Jaguaribe - é anular as “concessões gigantescas” de terras indígenas e reduzi-las “a proporções incomparavelmente mais restritas”. Podemos desconfiar que tem caroço debaixo desse angu.

Se isso tivesse ocorrido, a profecia de Jaguaribe seria concretizada oito anos depois. Efetivamente, índio sem-terra morre. Naquela ocasião ele vaticinou, como ave de mau agouro, que no ano 2000 não haveria mais índios no Brasil, o que motivou comentário do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: - “Engraçado! Os índios acham que quem não existirá mais será o Jaguaribe”. Jaguaribe efetivamente deixou de existir, mas os índios continuam resistindo e rexistindo.

Esses americanos, na realidade, não precisam usar os índios para explorar o minério de suas terras, porque já escolheram Jair Bolsonaro como um boy favorito e aplaudem o Guedes no comando da economia brasileira. Eles querem construir mais Brumadinho e Mariana em território indígena.  O discurso contra a demarcação, que vem acompanhado de um firme propósito de “integrar os índios como cidadãos”, parece ser um presente de grego. Como o cavalo de Tróia de madeira, tal discurso carrega em suas entranhas mineradoras e agronegociantes para invadir o território indígena. Só que ao contrário dos troianos, os índios não estão dormindo.

P.S.- A Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM), em articulação com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), organiza um ato de protesto na Escadaria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) nesta quinta-feira, 31 de janeiro, das 14 às 18 hrs contra a escalada anti-indígena do governo Bolsonaro.

ATOS CONFIRMADOS

 

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14 Comentário(s)

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Pedro Libanio Ribeiro de Carvalho comentou:
31/01/2019
Sobre as nações indígenas estrangeiras.. dá uma olhada nisso (acho que já deve conhecer)... ABS https://en.wikipedia.org/wiki/Australian_Aboriginal_Flag
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Silver Pinto (via FB) comentou:
29/01/2019
O General Heleno , de Tróia diga-se de passagem ...Tem um pavor terrível das Nações Indígenas se tornarem países independentes. Ele esqueceu também que essas Nações eram realmente Nações independentes - Mas tudl isso foi antes do " Pecado Original " , foi antes do Brasil Existir . Nações inteiras foram sepultadas para sempre no seio da história , para que o Brasil podesse a existir de fato .
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Xeno Veloso (via FB) comentou:
29/01/2019
Esse governo já poderia ter criado o SND, serviço nacional de desinformação.
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Susana Grillo comentou:
29/01/2019
Bessa, contamos com sua memória sempre pronta a apontar que a iniquidade contra os povos indígenas está sempre nas mentes dos poderosos que se esquecem, não conhecem documentos, convenções, declarações da ONU de que o Brasil é signatário, que lembram que os povos indígenas são sujeitos de direitos arduamente conquistados e sempre em risco em nosso país.
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André Amud Botelho comentou:
28/01/2019
Boa, Bessa! Uma parte dos brasileiros parece gostar de falar grosso com os povos indígenas e seguir afinando quando encontra grandes empresários, empreiteiras, etc...
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Eneida Simões da Fonseca comentou:
28/01/2019
Querem fazer com os povos originais desse país, o ´que fizeram com o direito de escolaridade do doente que nem mais parece existir ou ser fato no Ministério da Educação. Lamentável! E perdemos todos nós: o Brasil e o mundo.
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Rodrigo Martins Chagas comentou:
27/01/2019
Um verdadeira aula, professor arrebentou! Adorei a resposta que o senhor deu para o general Nery, com elegância e sabedoria um verdadeiro xeque-mate.. Um abraco professor!
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Conceição Rosa comentou:
27/01/2019
Oportuno! Seria legal enviar para alguns sites amigos...
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Loretta Emiri comentou:
27/01/2019
As irresistíveis crônicas de José Bessa. NÃO VOU DIZER QUAL É O SIGNIFICADO DA PALAVRA TRÓIA EM ITALIANO.....
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Maria Das Graças De Carvalho Barreto comentou:
27/01/2019
Transformaram as pessoas em argila, dura, sem expressões amassadas pela violência da ganância. Os outros não importam mais. Adeus humanidade esperança. O povo levanta da lama e vota em seus carrascos, sejam eles médios ou perfeitamente lumpesines Marx tinha razão!
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Vera Nilce Cordeiro comentou:
26/01/2019
Esses abutres do Brasil são responsáveis por crimes smbientais como mais um da Vale
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Nefer Hass comentou:
26/01/2019
Joao bravo cinta larga! Deixa esse general vacilar que comem ele com tanque e tudo! Que tempos horriveis :(
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Suzana Escobar comentou:
26/01/2019
Ainda bem que temos o José Bessa que consegue falar o que temos em nosso coração.
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Ana Silva comentou:
26/01/2019
Sensacional! Bravo, Bessa. Perfeita,sensata e bem tecida análise sobre os representantes do poder e suas posições contra os povos indígenas. Enquanto isso.... Moro fala que combaterá a corrupção, mas não menciona o caso da família Bozo. Cadê os batedores de panelas da Paulista e da Orla de Copa?
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