CRÔNICAS

Uma Espanha com medo de bonecos

Em: 14 de Fevereiro de 2016 Visualizações: 14898
Uma Espanha com medo de bonecos

Españolito que vienes / al mundo te guarde Dios./ Una de las dos Españas / ha de helarte el corazón.

Antonio Machado - Proverbios y Cantares

Dois jovens titiriteiros espanhóis contratados pela Prefeitura de Madri encenavam sexta-feira (5), numa praça, A bruxa e dom Cristóbal, quando a polícia interrompeu o espetáculo, confiscou os títeres e prendeu os dois que passaram o carnaval atrás das grades, de onde só sairam condicionalmente na tarde da quarta-feira de cinzas. Estão sendo processados por "enaltecer o terrorismo" através do teatro de bonecos. Desta forma, o Poder Judiciário da Espanha nos faz lembrar o FEBEAPÁ - Festival da Besteira que Assola o País, criado no Brasil pelo humorista Stanislaw Ponte Preta.

O FEBEAPÁ colecionava as babaquices da ditadura militar, entre outros um fato similar que ocorreu no Paraná, há cinquenta anos, quando a polícia fechou o Jardim da Infância Pequeno Príncipe, em Curitiba, acusando um casal de titiriteiros - Euclides e Adair - de "ensinar subversão a crianças de três anos". A ação da polícia, com repercussão nacional, foi ridicularizada por Stanislaw na crônica O Garotinho Subversivo, o que não impediu o fechamento do Teatro de Bonecos Dadá e a condenação do casal a quatro anos de prisão, obrigando-o a buscar o exílio no Chile e no Peru. 

Meio século depois, numa Espanha democrática, um juiz se inscreve no FEBEAPÁ ao prender Alfonso Lázaro e Raúl Garcia da Companhia "Títeres desde Abajo" por solicitação da Associação de Vítimas do Terrorismo. É que um membro paranóico desta AVT transformou sua dor em ódio e denunciou  os dois à Polícia por causa de um cartaz que aparece numa cena, no qual se lê "Gora Alka-eta", um jogo de palavras entre Gora ETA (Viva ETA, em língua basca) e a Al-Qaeda, organização jihadista.

Duas Espanhas

Em qual contexto aparece a "mensagem terrorista"? Ela é exibida pelo próprio boneco que faz o personagem do policial corrupto, na cena em que ele espanca e tortura a protagonista, até fazê-la desmaiar, quando planta o cartaz nas mãos dela. Tira, então, uma foto e forja provas contra sua vítima para incriminá-la. Longe de ser uma apologia ao terrorismo, trata-se de crítica à arbitrariedade polícial. Ou seja, "o que está acontecendo agora com Alfonso e Raul é exatamente aquilo que denunciam na peça" - disse a mulher de um deles. A vida imita a arte.

A prisão dos dois bonequeiros, que usa o antiterrorismo como pretexto para censurar o teatro popular, fez emergir a Espanha bipolar cantada pelo poeta andaluz antifacista, Antonio Machado, acirrando as tensões entre "uma Espanha que morre e outra Espanha que boceja". Afinal, o ódio, a repressão e o fanatismo religioso exasperados na Guerra Civil Espanhola ainda não foram esquecidos. A lei de anistia, lá como aqui, impediu que os cadáveres de republicanos fuzilados pela ditadura de Franco fossem reconhecidos e sepultados por seus familiares. 

A prisão dos dois artistas gerou protestos e manifestaçõe em várias cidades, organizados pela Confederação Nacional do Trabalho (CNT), entidade anarcosindicalista que faz parte da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e que considerou a prisão uma "injustiça obscena". Provocou também intensa polêmica, que pude acompanhar na CNN, tendo de um lado a Espanha conservadora, autoritária e intolerante e, de outro, a Espanha libertária, que anseia por mudanças.

O líder do Podemos, Pablo Iglesias, e a prefeita de Barcelona, Ada Colau protestaram, indignados, contra a prisão e contra a censura. "Sátira não é delito. Na democracia sadia, no estado de direito, é preciso defender toda liberdade de expressão" - declarou a prefeita de Barcelona.

Já a prefeita de Madri, Manuela Carmena, eleita por uma coligação de esquerda, embora contrária à prisão, não suportou as críticas da oposição. Bateu fofo e considerou "erro grave" contratar o espetáculo. Sua secretária de Cultura, Célia Mayer, demitiu os responsáveis pela programação de carnaval, acatando a pressão dos conservadores.

Espanha de luto

Os advogados dos titiriteiros conseguiram liberdade provisória para os dois, porque o juiz, enfim, acabou entendendo que não há risco de fuga dos presos, nem a possibilidade de repetirem o "crime", uma vez que os bonecos terroristas e o cenário explosivo foram devidamente embargados pela polícia e o contrato com a Prefeitura foi rescindido. Mas eles estão sendo processados, enquadrados no art. 578 do Código Penal e podem pegar até sete anos de prisão. Além disso, tiveram seus passaportes confiscados e devem comparecer diariamente diante do juiz ou numa delegacia de polícia.

- Se for para criminalizar a incitação à violência em peças e filmes, Rambo não pode ser exibido na TV e no cinema - ironizaram os advogados.

A peça censurada se inspirou numa farsa escrita pelo poeta Garcia Lorca para o teatro de bonecos "Los títeres de Cachiporra: Tragicomedia de don Cristóbal y la señá Rosita". Os títeres de cachiporra compõem um gênero teatral popular no qual o pau come na casa de Noca, à semelhança do teatro de mamulengo do nordeste do Brasil, que distribui porradas de cassetete por todos os lados, como numa catarse coletiva. A irreverência, a sátira, o deboche, os insultos, o palavrão, a porrada, fazem desse gênero um espaço de transgressão e de crítica.

Lorca, que criou em 1931 o teatro ambulante La Barraca, não considerava o teatro de fantoches como uma expressão menor, mas como a forma mais acabada da subversão e da insubordinação. Um boneco, ao contrário de um ator, pode insultar impunemente até seu próprio público. O poeta escreveu quatro textos especificamente para o teatro de chachiporras. Foi assassinado em agosto de 1936, um mês depois do pronunciamento militar que deu origem à Guerra Civil e sepultado em local até hoje desconhecido.

- Que luto para a Espanha por haverem matado um poeta nascido de suas entranhas! Que vergonha no planeta! - chora Violeta Parra na canção "Un río de sangre corre" - atribuindo a morte de Lorca à "maldita canalha do carnaval", a mesma que agora ataca covardemente dois jovens artistas populares alimentando o FEBEAPÁ. Que vergonha no planeta!

P.S. 1 - Que eu saiba, o fato que comove a Espanha não foi registrado pela mídia brasileira. No entanto, por ter atuado durante mais de um ano no Teatro de Bonecos Dada, no Peru, me sinto pertecente a tribo dos titiriteiros. Tudo que diz respeito a esta facção, me toca profundamente. Vitória na guerra, irmão!

P.S. 2 - Fotos pirateadas da mídia espanhola e das redes sociais.

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14 Comentário(s)

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Daniel Canosa comentou:
22/02/2016
Comparto esta nota publicada en el sitio Taquiprati, del brasileño José Bessa Freire, sobre un hecho impactante ocurrido en España con la detención de dos titiriteros acusados de "enaltecer el terrorismo". Por la naturaleza del hecho, salvando la distancia que el contexto actual es "democrático", resulta inevitable asociarlo a las penosas prácticas de la última dictadura cívico-militar argentina (1976-1983), en la cual se evidenciaba un trabajo de inteligencia para detectar literatura "subversiva", en donde es sabido que la vigilancia, el control ideológico y la censura se aplicaron sobre autores, libros y editoriales y abarcó diferentes géneros y públicos. Sorprende el autoritarismo de las autoridades españolas al poner presos a dos artistas por ejecutar una obra titulada "La bruja y don Cristóbal" en donde se advierte que lejos de ser una apología al terrorismo, se trata en realidad de una crítica a la arbitrariedad policial, y lo paradójico es que con la detención de los titiriteros está aconteciendo en la vida real lo que estaba denunciado en el esquema de la obra, como bien dice José: "La vida imita el arte".
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Pedro lópez comentou:
22/02/2016
José Bessa tiene toda la razón en su artículo. Gracias a Daniel Canosa por compartirlo.Claro, ha sido el escándalo de las últimas semanas. Aquí por España andamos con un gobierno de lo más fascista que ha hecho unas modificaciones en el código penal y una Ley de Seguridad Ciudadana (llamada popularmente "Ley Mordaza") que son auténticamente dictatoriales. Desde que la banda terrorista ETA dejó las armas las denuncias por "enaltecimiento del terrorismo" se han multiplicado por diez. El macartismo está de moda por estos pagos. El caso de los tititriteros ha sido increíble: una obra de teatro que es una adaptación de un clásico y que termina con una marioneta de un policía que coloca una pancarta en una marioneta de una bruja que pone "Gora Alka-ETA", o sea, un montaje policial para inculpar a la bruja (por cierto, que de montajes policiales aquí sabemos un poco). Pues bien, ese es el delito, algunos descerebrados piensan que esto es enaltecimiento del terrorismo, como si los titiriteros estuvieran ensalzando a ETA. Hay multitud de películas donde sale este tipo de pancartas, una de las últimas "Ocho apellidos vascos". Confundir la ficción con la realidad interesadamente es lo que está haciendo la "justicia" en este país. Sería ridículo si las consecuencias no fueran tan dramáticas para muchas personas a las que les destrozan la vida profesional. A otras, las consecuencias son más serias aún, pero quizás no es el sitio para extenderme. El problema de fondo en el Ayuntamiento de Madrid, es que el partido de derechas (de extrema derecha en realidad) que ha gobernado el Ayuntamiento durante más de dos décadas, ha perdido el gobierno hace unos meses y arremete contra todo lo que hace el gobierno de ahora; la derecha está rabiosa en España porque teme perder el gobierno del país y ha perdido el gobierno de la capital hace poco, así que está montando unas broncas tremendas y ridículas por todo lo que hace la nueva alcaldesa, Manuela Carmena. Un saludo Pedro López
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Anne-Marie comentou:
16/02/2016
Não é só no Brasil ou na Espanha que essas coisas acontecem. Receio que seja um fenômenos mundial Havia na TV francesa, no Canal + um programa diário de humor extrememente popular chamado "les Guignols de l´Info". "Guignol" é o nome de um boneco (títere) muito famoso, nascido em Lyon, que fazia, no caso, a crítica humorística dos personagens da política que aparecem no noticiário ("Information", ou "info" na jíria popular). Os "Guignols" eram muito caustícos com personagens de todas as tendências: Marine Le Pen (extrema-direita), Sarkozy (Direita cada vez mais perto da extrema) ou Hollande (ex-socialista, neo-direita). É claro que desagradavam estes senhores, mas, como a censura não existe oficialmente, não havia como prender os autores. Mas foi achada uma solução: o Canal + foi comprado por um Roberto Marinho de lá, dono de múltiplas empresas e amicissimo do Sarkozy. Imediatamente os "Guignols" foram demitidos, ou melhor, ganharam um novo roteirista, um novo "look", bem menos crítico e, para dizer tudo, extrememente chato. A informação tornou-se uma arma poderosa demais (um 4º poder) para ser deixada nas mãos "irresponsáveis" de "Títeres desde abajo" ou de "Guignols". Nada deve contestar a versão oficial, mesmo num país como a França onde ainda sobrevivem (até quando?) publicações como Charlie Hebdo..
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Tarcisio Lage comentou:
15/02/2016
Onde anda o titiriteiro de Curitiba? Diga-lhe que seu afilhado pedi-lhe, encarecidamente, que dê um recado a um juiz de lá. Não posso escrever o que é porque não tenho dedos-duros para sustentar toda a acusação, nem tão pouco prova dos autos. Um abraço procê e para meu padrinho, com recuerdos de la Calle San Diego dos tempos que em todo o Brasil - não apenas na Baixada Fluminense - urubu voava de costas como diria o Stanislau Ponte Preta. PS: Mas, talvez, a polícia espanhola tenha razão. Onde já se vi encenar Lorca em praça pública. O homem foi perigosíssimo, já diziam os fascistas do general Franco.
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Un miembro da tribu dos no-violentos comentou:
15/02/2016
Teria gustado no mes de dezembro pasado ver os miembros da tribu dos titiriteiros (que en otro tiempo dizian "eu sou charlie" quizas en frances "je suis charlie") levantarse para denunciar o fato de que no brasil existe una sutil y segreda censura da libertade de expresion, me refiero a fato de que fue apagado (por orden de quem, adivina) el aceso internet a la pagina de Charlie Hebdo que mostraba a presidente Dilma cagando todos as dificultades do pais començando por la corrucion de los empresarios y otros miembros del govierno e de los partidos... Una charge de mal gosto e sem graça (es a minha opinion) ainda es una opinion, y como tal respectable e logo no merece ser apagada das midias por ordem de (adivina).
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Celeste Correa (via FB) comentou:
14/02/2016
"Espanha democrática, ... " É mesmo a vida imitando a arte. O mundo precisa ser repensado, porque estamos no século 21, com uma tecnologia avançada,grandes transformações acontecendo,mas o exercício da democracia é obsoleto. O ódio,o fascismo e a falta de liberdade de expressão mostram claramente que os nossos pés ainda estão fincadas no século 20.Não, não podemos achar que isso é natural... o mundo precisa se esgoelar em defesa do bem maior da humanidade..
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Erondina Araujo comentou:
13/02/2016
Professor Bessa, recebi há pouco sua última crônica e confessor que fique bastante sensibilizada com sua palavras. Não sabia que havia um grupo tããããooooo conservador na Espanha. Parabéns. Encaminhei para meus colegas. Abraços,
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Márcio D'Olne Campos (via FB) comentou:
13/02/2016
Triste fato, texto que da prazer de ler. Parabéns José Bessa, por mais este.
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Monica Cavalcanti Lepri (via FB) comentou:
12/02/2016
que linda história de uma história linda... grata
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Ramón comentou:
13/02/2016
Conte a história corretamente. A apresentação, no distrito de Tetuán, estava sendo feita para crianças de 5 a 8 anos e, além do relatado, até um estupro foi acrescentado ao enredo. Apesar dos protestos dos pais das crianças, o "titiriteros" se recusaram a interromper a apresentação o que motivou a ação policial. Nada parece ter sido mero acaso, da contratação do grupo pela "alcaldeza" à inclusão de um deficiente entre os apresentadores, também preso. Isso está mais para Maquiavel do que Lorca.
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