“Em Rashomon vivia o diabo que de lá fugiu porque
tinha medo dos homens” (Akira Kurosawa – 1950).
Ninguém ali naquela sala do prédio da Urca, no Rio, conhecia Izabel Garcia, ex-moradora do igarapé Poné. Nem mesmo Geraldo Andrello que perambulou anos pelo rio Negro e seus afluentes, observando o cotidiano dos índios do Uaupés. Só agora, setembro de 2017, é que o antropólogo Márcio Meira nos apresentou essa mulher que, no desespero, planejou se suicidar junto com os filhos. Mas sequer isso lhe foi permitido. O patrão dela, Diogo Gonçalves, dono da vida e da morte, se adiantou: estuprou-a, acorrentou-a ao tronco e mandou surrá-la até a morte, “libertando-a” do sofrimento.
O crime já prescreveu. Foi muito antes da recomendação de Maluf: “Estupra, mas não mata”. Durante três dias, em dezembro de 1914, o capanga - um tal “Feijoada”, açoitou Isabel com chicote de couro de peixe-boi. Seus gritos lancinantes aturdiam a floresta. Na madrugada do terceiro dia, fez-se um silêncio revelador. Um caboré agourento piou sobre o cadáver acorrentado que jazia ali numa poça de sangue, sendo embrulhado numa rede. Já com o sol alto, coveiros do sítio vizinho, ao desembrulharem, encontraram o corpo horrivelmente mutilado e desfigurado, conforme testemunhou Joana Maria.
Ainda jovem e com filhos, Izabel Garcia teve a identidade apagada antes de ser assassinada. Na documentação aparece como “índia genérica”, falante de nheengatu, podia ser de origem Aruak, Tukano ou Maku, descida à força dos rios Içana ou Xié para o barracão “Bom Futuro”, como tantas outras, inclusive meninas menores, escravizadas pelo seringalista Diogo Gonçalves, que explorava seu trabalho na roça e na cozinha e abusava sexualmente delas, prática corrente no Noroeste Amazônico, registrada, entre outros, por Stradelli e pelo etnógrafo Koch-Grunberg, em 1903.
Queixa ao bispo
Segundo consta no processo aberto pelo delegado do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) do rio Marauiá, Abílio Camilo Fernandes, o assassino Diogo Gonçalves, natural da Galícia, truculento explorador de seringais e piaçabais no rio Negro, mantinha ali, apesar da idade já avançada, “um lupanar cheio de amantes”, todas elas índias. O documento enviado ao Chefe de Polícia do Amazonas revela as atrocidades:
... “Que actualmente Diogo Gonçalves tem, sob sua guarda, tristes infelizes quatro menores, provavelmente orphans, destinadas ao fadário synistro da prostituição, referindo aquela testemunha a maneira ascorosa, e com palavras livres, como Diogo Gonçalves costuma desvirginar as menores em tenra idade”. (Arquivo SPI – Museu do Índio/FUNAI, Cxa 54, planilha 378).
O documento encontrado por Márcio Meira revela antecedentes criminais do velho libidinoso, cruel e covarde, que em 1905 “acorrentou três de suas amantes e deflorou uma menor, arrancando-lhes o cabelo”. Logo depois, ele foi agraciado com o título de Capitão da Guarda Nacional. O delegado do SPI desabafa:
“Ora veja V. Excia. este nosso paiz é mesmo maravilhoso! Agalardoa-se um estranho [estrangeiro] ascoroso e quase analfabeto que uza ultrajar nossas irmãs menores!
Que país é esse? Abílio narra outros “crimes bárbaros” contra índias, algumas se queixam ao bispo do Amazonas, D. Frederico Costa, que em viagem pastoral pelo rio Negro, em 1908, visitou barracões de seringueiros e piaçabeiros. Em 20 de outubro foi recebido por Diogo “com modos alegres e francos” e um altar improvisado para a missa, mas em pleno ofertório o regatão tocou no gramofone cançoneta profana em espanhol. Foi repreendido pelo prelado. Uma índia riu. Quando o bispo foi embora, Diogo a espancou até sangrar e arrancou-lhe os cabelos, irritado por achar que ela estaria mangando dele.
O aviamento
Márcio Meira registra as barbaridades cometidas, mas considera que não foi apenas o caráter truculento de Diogo Gonçalves que o levou a praticar violências contra indígenas, sobretudo suas freguesas mulheres. O sentimento de impunidade contribuiu para tal prática generalizada. Dificilmente as denúncias chegavam em Manaus e, mesmo assim, eram logo abafadas. Policiais e juízes, quase sempre a serviço dos comerciantes, esqueciam, ocultavam ou arquivavam as queixas. Afinal, eram apenas índias.
- “Esses comerciantes sem probidade conseguem iludir a boa fé de muitos índios” – escreveu o bispo.
A improbidadade e truculência do regatão não foram irrelevantes, mas Meira destaca que “além do seu perfil individual”, havia “uma cultura de violência e terror intrínseca ao sistema de aviamento” dominante na Amazônia. Aliás, esse é o tema da tese, que é dedicada a Izabel Garcia: “A persistência do aviamento. Colonialismo e História Indígena no Noroeste Amazônico”, defendida na semana passada no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO).
A história de Isabel Garcia faz parte da análise da “longa duração” do aviamento - sistema de escambo a crédito com eterno endividamento, ainda hoje um fator estruturante da região. Para dar conta da rede hierárquica de dominação entre “patrões”e “fregueses”, Márcio Meira, pesquisador do Museu Goeldi, condensou trabalho de campo no Rio Negro desde 1985, com observações e entrevistas que realizou, entre outros com José Fonseca (Arapaço), Gracialino Fernandes (Tukano) e Milton Baltazar (Baré), cujas vozes foram integralmente incorporadas por sugestão do doutor Tonico Benites Avá Verá Arandu na banca de qualificação em 2015.
Mingau teórico
O antropólogo Geraldo Andrello, membro da banca, destacou o refinamento e competência do etnógrafo e historiador na elaboração da tese, onde o trabalho de campo dialoga com farta documentação vasculhada no Arquivo do SPI, no Arquivo Público do Pará, no Arquivo da Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Arquivo Histórico Ultramarino (Cedeam) e no acervo do Museu Goeldi. Os dados foram analisados com apoio dos teóricos do campo da memória social, entre os quais Ricoeur, quando discute o esquecimento reversível e o esquecimento definitivo por apagamento de rastro.
Para outro membro da banca, o historiador Flávio dos Santos Gomes, a tese foi feita com construção teórica cuidadosa, que permitiu ao autor fazer com liberdade e rigor acadêmico um excelente “mingau teórico”. Trata-se de uma referência à entrevista feita por Márcio Meira para o censo demográfico do Rio Negro, nos anos 1990, quando indagou a identificação étnica de um dos entrevistados e recebeu como resposta:
- Aqui somos todos “mingau”.
O uso da palavra “mingau” – escreve Meira – é indicativo dessa ambiguidade e hibridrez que vem de longo tempo e que traduz experiências de indianidade rearranjadas pela mistura de “ingredientes” ao longo do processo colonial.
- Este “mingau teórico”, por sua originalidade, deve ser apresentado ao Prêmio Capes para concorrer à melhor tese do ano – recomendou Vera Dodebei, doutora em Comunicação e Cultura.
Na arguição, o antropólogo Amir Geiger ponderou que Márcio Meira “escovou a história a contrapelo”, como propõe Walter Benjamin, mas por se tratar do Rio Negro, o fez com vassoura de piaçaba. Foi essa escovada que permitiu ouvir Izabel Garcia, aqui destacada, porque eu estava querendão, em nome de todos nós, especialmente de minhas nove irmãs amazonenses, cuspir e mijar, ainda que simbolicamente, nas sepulturas dos diogos gonçalves, como fizeram os cabanos, em 1835, na cova do carrasco Lobo Souza. Peço desculpas a quem achar que não se chuta cachorro morto. É que esse tipo de cachorro não morre, sempre se recicla.
O rio Negro era a porta de Rashomon, de onde até o capiroto fugia por medo dos homens – homens? – que lá viviam. Graças a Márcio Meira, não esqueceremos Izabel Garcia e seus filhos. Teremos livro em breve.
P.S.1 – Márcio Augusto de Freitas Meira. “A Persistência do aviamento. Colonialismo e História Indígena no Noroeste Amazônico”. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. UNIRIO. Setembro de 2017. Banca: José R. Bessa (desorientador), Amir Geiger e Vera Dodebei (UNIRIO), Geraldo Andrello (UFSCar) e Flávio dos Santos Gomes (UFRJ). Gersen Baniwa (UFAM -suplente).