Entrai na roda oh linda roseira / E abraçai a mais faceira (Cantiga de roda)
Aconteceu, faz tempo, no bairro de Aparecida, em Manaus... Lá, muitas vezes, os apelidos são crueis, desrespeitam deficiências físicas e doenças como veremos a seguir
Não, não! Deixa pra lá! É melhor não contar. Quem é que vai perder tempo ouvindo a história do Raimundinho Vinte-e-um, filho da dona Jati, que morava na rua Bandeira Branca, à beira do igarapé São Vicente? Um dia, seu vizinho, o velho Espiridião, sonhou com o Raimundinho, jogou no bicho e ganhou uma bufunfa. Deu touro na cabeça: 21. É que o menino tinha a mais aquilo que Lula tem de menos: um dedo extra. Nasceu com seis dedos na mão direita, um colado no outro. O apelido pegou: Raimundinho Vinte-e-um.
Ainda que a ninguém interesse, é bom que se diga, antes de mudar de assunto, que o sexto dedo fazia uma curva no polegar, parecia a pétala de uma flor. Por isso, nas brincadeiras de roda da infância, há mais de 60 anos, todos os olhares convergiam para ele quando cantavam:
- A mão direita / tem uma roseira, / que dá flor na / primavera.
Embora a primavera nunca tenha dado as caras em Manaus, a flor estava lá, na mão direita. Nessa hora, Raimundinho escondia a mão com o dedo extranumerário, igual ao do Fabinho, ex-jogador do Corinthians, que se fosse goleiro teria uma vantagem a mais para agarrar a bola. Só não continuo a narração, porque os leitores hoje estão se lixando para a polidactilía do menino, diagnosticada por um... dentista do extinto IAPC, o doutor Benício, que recomendou uma cirurgia reparadora jamais feita. Dona Jati ficou com medo que arrancassem o dedo do seu filho, como quem extrai um dente.
Motor de popa
Sou obrigado a interromper a narrativa aconselhado por uma leitora, zangada, que comentou no facebook que eu devia escrever sobre coisas sérias, por exemplo, a elevação do Amazonas à categoria de Província, em vez de ficar contando abobrinhas do bairro de Aparecida. Não sei se ela tem razão. De qualquer forma, não posso omitir aqui os detalhes da vingança do Raimundinho Vinte-e-um que apelidou o velho Espiridião de Didi Peidão, ou Motor de popa, depois que descobriram que tinha câncer de próstata.
Foi assim. Naquela época, pelo menos em Manaus, não se fazia biópsia para identificar células cancerígenas no tecido prostático, mas nem por isso o seu Didi conseguiu tirar o dele da reta. Hoje, qualquer urologista mete uma sonda de ultrassom no teu fiofó, com uma agulha acoplada, não dói quando é com anestesia, mas depois o caboco fica perdendo sangue por tudo que é buraco do corpo durante vários dias. Pois bem, prometi não contar e não vou contar, mas apenas adianto que seu Didi, depois da dedada do toque retal, afrouxou e ficou com flatulências, daí o apelido bem dado, que também pegou.
Deixemos as abobrinhas cozinhando e vamos, pois, a assuntos sérios que interessam a todos. Será? O Amazonas foi elevado à categoria de Província, em 5 de setembro de 1850, quando se separou do Pará, num divórcio litigioso que persiste até hoje. A única vantagem parece ter sido ganharmos um feriado local. Naquela época, o território que é hoje o bairro de Aparecida era uma floresta cercada de igarapés, de águas límpidas, que não eram ainda bosteiros. Quase um século depois, deceparam as árvores, construíram casas entre os troncos, e o primeiro nome com que ficou conhecido foi Bairro dos Tocos. Lá vem Aparecida. De novo. Não consigo me libertar.
Para atender a leitora zangada, faço uma ponte entre os dois assuntos. É que no dia 5 de setembro de 1955, o Grupo Escolar Cônego Azevedo participou da parada cívica pelas ruas do bairro e depois na av. Eduardo Ribeiro. Estava lá, num palanque, o governador Plinio Coelho (PTB), eleito numa época em que o voto nulo de desesperança na classe política não superava os votos concedidos ao candidato vitorioso. Num calor infernal, a diretora Dona Natália exigiu que os alunos usassem luvas no desfile escolar. No entanto, não existe luva com seis dedos. Raimundinho Vinte-e-um ficou de fora. Foi bullying institucional.
Morte do narrador
Só não dou mais detalhes sobre o desfile, porque ninguém está mesmo interessado em narrativas, já que não existe mais narrador, ele morreu, seu atestado de óbito foi assinado por Walter Benjamin, lá na Alemanha. Além disso, os ambientalistas e os índios se perguntam, com razão, se é válido ficar contando abobrinhas quando Michel Temer agride a Amazônia com o decreto sobre a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca).
Diante da tragédia nacional que se abate sobre o país - econômica, social, ambiental, moral - não há mais espaço para histórias pincelando personagens como Raimundinho Vinte-e-um. Até quando quadrilhas que tomaram de assalto o poder, nas suas diferentes instâncias, continuarão dando as cartas com total impunidade? Até quando ficaremos de braços cruzados, impotentes, apalermados, abestalhados?
Os índios parecem indicar um caminho. O ministro da (In) Justiça, Torquato Jardim fez algo de inédito: anulou o que havia sido demarcado, numa agressão covarde a um dos setores mais sofridos da população. Os guarani, então, ocuparam nesta quarta-feira (30) o escritório da Presidência em São Paulo contra a anulação da reserva criada em 2015, no Parque do Jaraguá, zona oeste da capital paulista para garantir seu pedacinho de terra.
A mão direita não tem uma roseira, Ela golpeia duro. Ela é escrota. Confesso que Temer, Jucá, Padilha, Aécio, Fufuca, Rodrigo Maia et caterva me adoecem. De verdade. Desconfio que às vezes recuperar personagens como Raimudinho Vinte-e-Um e Didi Motor de Popa pode ser um refúgio para mitigar as epidemias que se alastram pelo Brasil. Ouviu, leitora zangada?