CRÔNICAS

Brasília, a ilha de Marapatá

Em: 19 de Fevereiro de 2017 Visualizações: 26242
Brasília, a ilha de Marapatá

"Vá logo deixando / Senhor forasteiro / A sua vergonha / em Marapatá".

 Anibal Beça (1946-2009), poeta amazonense

Dizem que foram instalados dois balcões informatizados da ilha de Marapatá no edifício circular do aeroporto de Brasília: um na área de embarque e outro no desembarque. De uso exclusivo das autoridades, até agora eram mantidos em segredo, mas foram revelados nesta semana para explicar os recentes atos despudorados de senadores, deputados, ministros, inclusive do STF, que ultrapassaram todos os limites do decoro, da vergonha e da moral, fazendo coisas que até o diabo duvida.

Marapatá, uma ilha na foz do rio Negro perto do encontro das águas, era a única porta de entrada de Manaus antes da existência de estradas e aviões. Desde os tempos coloniais, foi sempre parada obrigatória dos barcos. Reza a lenda que o forasteiro deixava lá sua vergonha, o que lhe permitia entrar na cidade sem qualquer freio moral. E aí valia tudo. Após fazer fortuna por meios ilícitos, ia embora do Amazonas. O barco dava outra paradinha para que, já rico, recolhesse a honra ali deixada e recuperasse a decência e a honestidade.

Lazareto de almas

Cantada em prosa e verso, Marapatá foi classificada como "um lazareto de almas" por Euclides da Cunha, numa época em que a lepra era vista com preconceito. Era lá que se escondiam os espíritos purulentos, o caráter dos trapaceiros e delinquentes. Foi lá que Macunaíma, o "herói sem nenhum caráter", deixou sua consciência pendurada em um mandacaru de dez metros para evitar ataques das saúvas, segundo Mário de Andrade.

O pesquisador amazonense Mário Ypiranga publicou, em 1963, no Jornal do Folclore, narrativa do velho Rufino Santiago, dono de uma serraria na enseada da ilha, habitada há milênios por Jumutimpora, um ser mitológico, que é um duende do bem. Ele sequestra as piores vergonhas ali deixadas para que os seus donos safados não as recuperem. É por isso que, ainda hoje, gemidos de consciências extraviadas ecoam na ilha assombrada, conforme relatos de cabocos ao historiador Antônio Loureiro, em quem confiaram por ser ele um honrado ING (Indivíduo Não-Governamental).

Marapatá ganhou até canção com letra do nosso dileto poeta Anibal Beça e música de Armando de Paula: “É Marapatá, porta de Manaus, é Marapatá, patati patatá". Por essa porta passou há anos o atual governador do Amazonas José Mello (PROS vixe vixe), quando migrou de Ipixuna para a capital. Deixou debaixo de uma sapopemba sua consciência, que dá uivos lancinantes cada vez que Mello morde a merenda escolar.

Brasilha de Marapatá

Por transfigurar santo em bandido e vice-versa, a ilha de Marapatá assinou contrato de franchising com o Sistema Integrado de Tratamento de Informação Aeroportuária (SITIA) de Brasília. Cada vez que uma autoridade desembarca na capital da República, deixa lá no balcão sua honra com seu nome, assumindo o apelido revelado nas delações premiadas. Quando embarca de volta às suas bases, passa no balcão e recupera seu nome, fazendo cara de ilibado, de honrado. Todos eles possuem codinomes e apelidos e pertencem a partidos vixe-vixeados.

Foi assim com o senador Romero Jucá - o "Caju" - líder do governo no Congresso. Ele teve o culhão - desculpem, não há outro termo - de propor na quarta (15) uma emenda constitucional para blindar o presidente do Senado, Eunício Oliveira - o "Índio"- e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia - o "Botafogo", ambos citados na Operação Lava-Jato. Neste mesmo dia "Botafogo" conduziu aprovação do projeto de repatriação de recursos por mulheres e parentes de políticos, que acabou sendo derrubada. Ambos recuaram, mas voltarão a atacar. Foi um teste, um balão de ensaio.

"Caju" foi quem propôs detonar a Lava-Jato numa conversa gravada com Renan Calheiros - o "Justiça", então presidente do Senado, e José Sarney - "o Escritor", o que foi avaliado como "ataque gravíssimo às instituições" pelo ministro do STF, Teori Zavascki, morto logo após em acidente aéreo. Só a ausência de qualquer resquício de vergonha e a certeza da impunidade podem levar indivíduos pagos pelo contribuinte a legislar não no interesse público, mas para acobertar seus próprios delitos. Esse é atualmente o principal trabalho dos parlamentares: tratar de tirar o loló da seringa.

Foi o que fez o presidente Michel Temer - o "Sem Medo", citado 43 vezes nas delações - ao nomear ministro Moreira Franco, o "Angorá", citado 34 vezes, além de ser acusado de peculato e apropriação de recursos públicos. Dessa forma, o "Angorá" adquire foro privilegiado e escapa da Lava-Jato. Contou com o aval do ministro do STF, Celso de Mello, que sequer considerou liminar anterior de seu colega Gilmar Mendes proibindo a posse de Lula. Com dois pesos e duas medidas, o STF frequenta a ilha de Marapatá.

Ave Jumutimpora

Marapatá, onde todos deixaram suas vergonhas, ajuda a explicar como é que suspeitos de falcatruas podem ser ministros, além de presidir o Senado e a Câmara. É impressionante! Com tanto brasileiro honrado, Temer vai buscar logo no chiqueiro sujeitos com codinome nas delações da Lava-Jato. Um deles, Eliseu Padilha - "o Primo", ministro-chefe da Casa Civil, investigado por propinas nas obras de Belo Monte e apontado em delação como o operador dos repasses destinados ao próprio Temer, justificou publicamente que o loteamento de cargos é para fortalecer a base aliada do governo. Um balcão de negócios.

O ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, advogado de  Eduardo Cunha e do PCC, indicado por Temer para o STF, será sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça presidida por Edison Lobão - o "Sonlo". São os suspeitos de corrupção que vão aprovar quem vai julgá-los. Simularam até uma sabatina no barco-motel "Champagne" para treinar o sabatinado, enquanto singravam pelo lago Paranoá. Esses jamais recuperarão a vergonha no balcão de Marapatá.  

Agora, a Folha de SP (17/02) dá conta de que "Ministros do STF discutem libertação de Eduardo Cunha". Não há qualquer preocupação em manter as aparências. O decoro, a decência, a compostura, ficaram mesmo na ilha de Marapatá. Somente o Jumutimpora, as panelas e o povo nas ruas podem resgatar a consciência da pátria mãe gentil.

P.S.1 - Modéstia à parte, essa é a contribuição da sabedoria popular do Amazonas para os brasileiros entenderem o cenário nacional. Segundo o dicionário de Stradelli, a palavra marapatá em nheengatu designa uma espécie de peixe de pele. Ele escreve, no entanto, que Mara "traz sempre consigo a ideia de algo ruim, de mau, que não presta" (pg. 406). Por outro lado, jucá significa "apodrecido" ou "se cagado" (pg. 386). Quero ver minha mãe mortinha no inferno se estiver mentindo. Podem conferir no local indicado da segunda edição. Já Temer, em nheengatu, quer dizer "ferrá-los-ei" e aqui, por não lembrar a página, prefiro poupar minha mãe.

P.S.2 Ao contrário de Alexandre de Moraes, que copia e não indica as fontes, dou a referência: STRADELLI, Ermano. Vocabulário da língua geral portuguez-nheengatú e nheengatú-portuguez, precedidos de um esboço de grammática nheenga-umbuê-sáua-miri e seguidos de contos em língua geral nheengatú poranduua. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,104 (158): 9-768. Rio de Janeiro, 1929.

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25 Comentário(s)

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Flávio Pantoja comentou:
19/03/2017
Você teria condições de me informar quando o Lula e o Dirceu passaram por Marapatá ? Outros petistas ilustres costumam visitar a ilha ?
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Gladys Martins (via FB) comentou:
22/02/2017
kkkkkkk, verifiquei no dicionário do Stradelli, é isso mesmo kkkkk Sua mãe não está no inferno, É isso mesmo. Tem duas entradas Jucá = apodrecido e Jucaaá = se cagado. kkkkk
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Lídia Meirelles (via FB) comentou:
22/02/2017
Tenho aqui um dicionário Tupi e o significado de Jucá é matar. De todo modo é ruim mesmo! rsrsrsr
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JOSÉ da Silva SERÁFICO de Assis Carvalho comentou:
19/02/2017
Meu caro Bessa, se isso não o desagrada, assino embaixo. Só um reparo, no que disse um dos comentaristas: tudo se faz às claras, e não mais nos bastidores do Congresso e em outros lugares da Praça dos Três Poderes. Nem se esperaria outra coisa, se a vergonha fica retida na Marapatá do aeroporto de Brasília.
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Ademario Ribeiro (via FB) comentou:
19/02/2017
Taqui Pra Ti tem as mais curiosas, inteligentes, desconcertantes e fundamentais crônicas de nosso país! Viva José Bessa!!! Saudades!!!
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Magela Ranciaro (via FB) comentou:
19/02/2017
Aquele cidadão ter deixado \"debaixo de uma sapopema a sua consciencia\", é demais! rsrs
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Alfredo Orofino (via FB) comentou:
19/02/2017
Veja essa matéria que vai na mesma direção do seu texto. “Brasília virou uma cloaca” O ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo critica o Legislativo desgastado, o Judiciário desacreditado e o Executivo ocupado após o impeachment, que considera “uma tragédia” para a democracia. Tudo misturado na capital federal: “É a cidade do lobby, da prostituição política, econômica” Luiza Villaméa http://institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=18083
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Carlos Itagiba Barbosa (via FB) comentou:
19/02/2017
Como sou um ING, julgo-me no dever de acrescentar alguns cargos aos citados políticos no, excelente, texto; \"Em 2006, Romero Jucá, agora execrado pelos petistas, foi escolhido líder do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cargo que também ocupou na gestão da presidente Dilma Rousseff.\". \"A partir de 2006, Moreira Franco, agora Angorá, decidiu não disputar cargos eletivos. Ocupava a vice-presidência de Fundos de Governo e Loterias da Caixa Econômica Federal, participando do comitê gestor do FGTS e administrando as 10 modalidades de jogos mantidas pelo Governo Federal.\" Quem tem um Tofolli, o Alexandre de Moraes passa a ser alentador.. Vou-me embora para Marapatá, pois lá sou amigo do rei.............
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Esther Arantes comentou:
19/02/2017
Parabéns Bessa, pela coragem e clareza ao expor o que se passa nos bastidores de Brasília. Grande abraço, Esther
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Luciana Galante comentou:
19/02/2017
Que texto! Uma lufada de ar nesses tempos temerosos.
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Paulo Figueiredo comentou:
19/02/2017
Um primor, querido amigo, como sempre. Forte abraço.
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Felipe José Lindoso (via FB) comentou:
18/02/2017
Bessa tem razão. A ilha de Marapatá, onde se deixam as consciências antes de entrar em Manaus, abriu uma sucursal em Brasília.
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Ceane Simões (via FB) comentou:
18/02/2017
Obrigada por nos fazer pensar o que representa todo esse absurdo. E dá-lhe Marapatá. Todos eles penduraram as suas vergonhas.
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Ana Stanislaw comentou:
18/02/2017
Maravilhosa!!!!!! Bravo, bravo. Viva o Bessa, viva o Taquiprati, pra nós, pra o nosso querido Brasil!!! Vergonha, decência não combinam com esse governo corrupto, golpista, coxinha, bandido!!
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Beth Souza (via FB) comentou:
18/02/2017
Meu Deus, a falta de fiscalização é vergonhosa. Esses caras fazem o que querem e pronto.
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Maria Celeste Freire Corrêa (via FB) comentou:
18/02/2017
Nessa ilha de maracutaia,digo,marapatá,,não tem mais dois balcões,pois os nossos safadíssimos parlamentares já perderam a vergonha até de usar os seus codinomes,que nem se preocupam mais em deixar a sua honra na entrada para pegá-la na saída,tamanha é a certeza da impunidade.Não,eu creio que os balcões se tornaram obsoletos.Já não é preciso transfigurar santo em bandido e vice versa,porque o \"santo\" ri da nossa cara ao ser chamado assim. O \"santo\"/bandido tripudia do povo brasileiro porque sabe que a sua safadeza é \"abençoada\" pelo conselho dos anciãos e que,andando de barco-motel, enfiando dinheiro na cueca,ou mandando para os bancos suíços,a sangria finalmente foi estancada.
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Adeice Torreias (via FB) comentou:
18/02/2017
Mestre você se supera... babando de inveja de um texto tão enxuto, tão real, mesmo na sua ironia. Sem querer lhe envergonhar e já o fazendo, só me vem uma reflexão instintiva: seria cômico, se não fosse trágico. Sua retórica tão pertinente, sempre deixa seus alunos mudos... sempre fico assim... (Nojo dessa corja)
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Letícia Mendonça (via FB) comentou:
18/02/2017
Podem anotar, se não houver reação popular, eles vão soltar o Cunha e continuarão a ofensiva, são uns cínicos.
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Luciane Moreira (via FB) comentou:
18/02/2017
Onde está a vergonha de Brasília? Estampada na cara do povo q elege os salafrários, prof.
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M.de Melo F. comentou:
18/02/2017
Enquanto apodrece os esteios da republica e o fogo se alastra com a lava-jato em pane surge a crônica de Bessa pra reativar a memoria dos golpistas. Parabens, BRAVO!
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Jose Ribamar Abreu Cardoso (via FB) comentou:
18/02/2017
Esses canalhas vão morrer de raiva, pois esqueceram de fazer a manutenção no aviao em que toda corja vai está será igual ao Ulisses não vão encontrar nem aeronave.
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Sandra de Almeida Figueira comentou:
18/02/2017
Bessa excelente crônica, parabéns!. Acho que deve existir uma base de Marapatá em quase todos os estados e municípios do Brasil, E as população não está se dando conta disso e nem reagindo. É inacreditável o que essas pessoas estão conseguindo fazer. E existem alguns que bateram panelas e estão arrependidos e respondem que é só não elegermos mais essas pessoas. E quem os elegeu? E será que vamos sobreviver até 2018 em meio a todas as destruições que eles estão provocando? Infelizmente acho que existe um outro ser de mau agouro que roubou a inteligência e a coragem de nossa população, talvez um parente da Urutau.
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Tarcisio Lage (via FB) comentou:
18/02/2017
O Bessa foi até pornográfico nesse artigo ao expor tanta safadeza numa linguagem deliciosa de ler.
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Enzo Lauriola comentou:
18/02/2017
mais uma maracutaia... aliás marapataia!
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Ângela Maria Bessa Freire comentou:
18/02/2017
Como diz o Odenildo pau que bate em Chico não bate em Francisco. Ou melhor, pau que bate em Lula não bate em Mula.
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