CRÔNICAS

Temer no Roda Viva: entrevistá-lo-ei

Em: 20 de Novembro de 2016 Visualizações: 28716
Temer no Roda Viva: entrevistá-lo-ei

A entrevista do presidente Michel Temer no Roda Viva da TV Cultura, segunda-feira (14), tem de ser exibida nos cursos de jornalismo para familiarizar os futuros profissionais com o gênero entrevista e ensinar-lhes o que não deve fazer um entrevistador. Durante hora e meia, seis jornalistas de projeção nacional inverteram a conhecida lição de Millôr Fernandes para quem "jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados". Sem qualquer senso critico, suas perguntas transformaram o programa numa quitanda para Temer vender seu peixe. Tudo farsa, encenação.

A falsidade desse tipo de entrevista já foi ironizada num texto discutido em sala de aula com meus alunos dos cursos de jornalismo da UERJ e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu autor, Nelson Rodrigues, conta que no "dia excepcional e crudelíssimo" do assassinato de Kennedy, com o mundo pegando fogo, uma repórter estagiária do Jornal do Brasil pediu para entrevistá-lo, ele preparou frase de impacto sobre o crime político, mas ela queria saber sua opinião sobre... o jogo Vasco x Botafogo.

- "Humilhado e ofendido, pensei no dia em que nós jornalistas estaremos sob as ordens das estagiárias" - suspira Nelson, que era tricolor. Pois bem, esse dia chegou. Quem está dando ordens, porém, não são inexperientes estagiárias, mas a temerosa voz do dono, o que é ainda pior. Quem duvidar, confira no Roda Viva as perguntas dos coleguinhas que sepultaram a informação em detrimento de futilidades. O país caindo aos pedaços e eles sequer mencionaram a palavra "crise". A estagiária, pelo menos, estava interessada no campeonato carioca - um evento da vida pública e não da privada focada por Ricardo Noblat do Globo que perguntou:

- Presidente, como foi que o senhor se apaixonou por dona Marcela? Como foi essa descoberta?

Por amor

Temer era uma pose só. Fez caras e bocas. Com a ponta da língua esticada pressionou a bochecha, girou os dedões de proctologista e contou para seis jornalistas embevecidos que conheceu Marcela há quinze anos, em campanha para deputado federal, num restaurante do tio dela, em Paulínia. Noblat enxugou uma lágrima furtiva, mas mesmo assim, com aquela coragem que o caracteriza, apertou o entrevistado em busca de apuração rigorosa e exaustiva de fato tão relevante para o Brasil, que ansiava por ela:

- Sim, mas o senhor passou quanto tempo até se declarar? - insistiu.

Temer contou que só foi possível retomar o contacto com Marcela porque ela, não resistindo ao seu charme, parabenizou-o pela vitória eleitoral em carta enviada não para o endereço do PMDB, como era de praxe, mas para o escritório do seu amigo Gaudêncio Torquato, que serviu de cupido e lhe entregou a missiva com o telefone dela. Sete meses depois estavam casados. A novela "Por Amor" pode, enfim, ser reescrita, graças a Noblat, que certamente entrevistará Marcela para checar assunto tão transcendental, como manda o bom jornalismo. O Brasil aguarda ansioso.

Nunca olhei o Noblat como ele olha o Temer, mas admirava o autor do livro "A Arte de Fazer um Jornal Diário", no qual afirma que um jornalista não pode ficar para trás quando seus leitores avançam. Ele ficou. Sua inspiração - parece - são os antigos colunistas sociais de Manaus, entre eles Little Box, Gil, Ana Maria blá-blá-blá e Nogar tudo-vê-tudo-informa. No final, o âncora Augusto Nunes anunciou que Willian Corrêa, diretor de jornalismo da TV Cultura, estava com cara de quem queria fazer uma pergunta dissonante. Passou a bola ao colega:  

- " Presidente, fiquei sabendo que o senhor é gente como a gente, que quando criança pediu a seu pai um piano, mas ele lhe deu uma máquina de escrever. Perdemos um grande pianista, mas ganhamos um grande escritor. E um passarinho me contou que o senhor está escrevendo um romance. Adianta o tema para nós, vai " - suplica o intrépido Willian, espiritualmente agachado. A porra do passarinho bem que podia lhe piar que o desemprego está chegando a 12% e que o Brasil está virando uma panela de pressão prestes a explodir. Mas o passarinho do Willian não é ave de mau agouro.

Puxasaca-lo-ei

Vaidoso, patético, com pose de estadista de Paulínia, Temer enfrentou a dissonância com galhardia. Relatou que aos 10 anos obteve seu diploma de datilógrafo. Que morou até os quatro anos numa chácara no interior paulista e que recordava de tudo. Que seu romance será autobiográfico como o "Bom Dia, Tristeza" de Françoise Sagan. Que todo romance faz ficção da vida do autor. Que Saramago contou "uma coisa curiosa" ao afirmar que ele não era criador dos seus personagens, mas os personagens é que o criaram. Só faltou citar Pollyana. Depois de Saraminda, de Sarney, teremos Saramandaia de Temer. Dois presidentes escritores. Viva o Brasil!

Mas quem se superou mesmo foi Eliane Cantanhêde da Globo News e do Estadão. No vídeo de sete minutos que circulou nas redes com cenas depois da entrevista, ainda no Palácio da Alvorada, ela avaliou, quase de cócoras, que Temer "foi muito bem, muito equilibrado e muito afirmativo, não recusou nenhuma pergunta". E sussurrou para Willian Correa em tom de segredo:

- Ele está escrevendo um romance. E olha, cá pra nós, aqui baixinho, que ninguém nos ouça: de romance o presidente entende, hein?

Willian Corrêa qualificou essa edição especial comemorativa dos 30 anos do "Roda Viva" como um encontro de "grandes figuras perguntando e uma grande figura respondendo". Sem vergonha e sem timidez pudibunda, ele se incluiu entre os "grandes". Só faltou o Merval Pereira. O resultado, é claro, não podia ser outro: perguntinhas e respostinhas.

Os demais tópicos abordados foram o elogio ao senador Romero Jucá envolvido na Lava-Jato, citações ao próprio Temer nas delações premiadas, eventual prisão do Lula, reformas trabalhista, da previdência e do ensino médio, a anistia ao Caixa 2. Visto assim parece que tinha tutano naquele osso. Não tinha. Temer não era a favor, nem contra, muito pelo contrário. Confirmou a pedra cantada há mais de meio século por Nelson Rodrigues:

-  "O entrevistado não diz uma palavra do que pensa ou sente. O que vale é o cinismo gigantesco ".

Os entrevistadores, em vez de contestar, se curvaram diante de afirmações vagas, evasivas e supersimplificadas. A única verdade dita por Temer foi após a gravação, quando ele agradeceu diante das câmeras aos seis entrevistadores e à TV Cultura:

- "Eu cumprimento vocês por mais essa propaganda".

As gargalhadas indecorosas dos jornalistas cúmplices confirmaram: aquilo não era jornalismo nem aqui nem na China. Era armazém de secos e molhados. Pura propaganda do governo, com elogios e bajulação, confundindo o respeito devido a qualquer presidente com a subserviência que se deve evitar, negadora da relativa independência almejada por todo bom jornalista. Como pontificou o polêmico Paulo Francis, "o jornalismo deve adotar a máxima dos anarquistas: hay gobierno? soy contra". 

Quem entrevista representa a audiência diante do entrevistado, que deve ser apertado e questionado para extrair dele informações de interesse público. Ocorreu o contrário. Os seis colegas inverteram os papéis e representaram Temer diante do telespectador, ocultando o que devia ser mostrado, apelando para a emoção barata e nos tratando como se fôssemos lesos. Perdi o respeito por eles. O riso do Willian diante do Temer, francamente e com todo o respeito, é abjeto, de quem está de quatro. Confesso que fiquei morto de vergonha do armazém de secos e molhados, do jaraqui vendido naquela vendinha vagabunda. Até para puxar saco se exige um mínimo de pudor.

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28 Comentário(s)

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Ricardo Leite Moraes comentou:
30/11/2016
O professor não vai lembrar do aluno, mas o aluno não se esquece do professor. Relendo seu texto percebo como tento copiá-lo, em vão, há mais de 20 anos.
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Alice Frossard (via FB) comentou:
28/11/2016
Não perguntaram se os signos do casal eram compatíveis? Ou com que idade, tanto ele quanto ela, deixaram de acreditar em papai Noel???
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William comentou:
25/11/2016
Logo no início comecei a sentir ânsia de vômito e para não vomitar mudei de canal. Decepção e vergonha alheia.
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Susana Grillo comentou:
20/11/2016
Bessa, que bom que você viu toda a entrevista para compartilhar sua análise... não aguentei 15 minutos.
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Fabiulla Santos Silva (via FB) comentou:
20/11/2016
Tão fofo o jornalismo brasileiro. Romântico
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Marcia Paraquett comentou:
20/11/2016
Querido Bessa, também estou envergonhada e, pior, com muita raiva. Obrigada por suas sempre lúcidas palavras. Marcia
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Paulo Figueiredo comentou:
19/11/2016
Meu caro amigo Bessa, Parabéns pelo artigo, absolutamente incensurável. Forte abraço do
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Ana Claudia comentou:
19/11/2016
Crônica ma-ra-vi-lho-sa, Bessa!!! Viva a seriedade, honestidade, a ética, a decência. Bjs procê Ana Claudia
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Erondina Araujo comentou:
19/11/2016
Ontem, o site da uol informou que por conta desta entrevista, o compositor Chico Buarque deseja romper o contrato com a empresa, pois, não quer a música Roda Viva vinculada ao programa. Parabéns pela crônica. Abraços, Erondina
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Luiz Rufino (via FB) comentou:
19/11/2016
Grande texto mestre Bessa! Caneta afiada matando a pau a marmotagem dos carpideiros do Conde Dracula do Jaburu!
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Anne comentou:
19/11/2016
Felizmente para minhas artérias não vi a entrevista. Mas no dia 17 de novembro O Globo publicou uma primeira página histórica (escaneei e quis reproduzir aqui, mas não consegui). A referida página apresenta duas grandes fotos. A primeira mostra a invasão da Assembléia Nacional por um bando de energúmenos pedindo a volta da ditadura com o capitão Bolsonaro na Presidência da República (sequer um general, decaimos muito). A segunda foto mostra os servidores do Rio de Janeiro, na porta da Alerj, protestando contra o pacote de maldades do governador que ia ser votado. Um pelotão de policiais militares os ameaça, armado até os dentes (soube que houve até os caveirões geralmente reservados aos favelados). Imaginei um título para esta página: \" VOCÊ PEDIU, O PEZÃO DEU\". Falando sério: tudo o que estamos vivendo me lembra o que dizia meu avô: Sabe-se como começar uma guerra, ninguém sabe como terminá-la. Ele foi convocado, com 19 anos de idade, para a Primeira Guerra Mundial declarada em agosto de 1914. Governantes e especialistas de toda ordem garantiam: não duraria mais do que uns meses. Todos estariam de volta para suas casas no Natal. Passaram 4 natais nas trincheiras em meio aos ratos, baratas, convivendo com a morte iminente. Em 1964 também, segundo me contaram, os militares tomaram o poder só o tempo de \"por ordem na casa\". Foram mais de 20 anos. Ninguém sabe no que vai dar o golpe de 31 de agosto. Os ratos da primeira hora (PSDB) estão se livrando dos ratos da última hora (PMDB e queijandos). Mas será que estes não vaõ reagir?
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Anne comentou:
20/11/2016
Vale a pena ler o segundo capítulo da novela \"Entrevista do Temer no Roda Viva\": http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/45698/cumprimento+voces+por+mais+esta+propaganda+diz+temer+a+jornalista+apos+roda+viva.shtml
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Carlos Itagiba Barbosa (via FB) comentou:
19/11/2016
Menos \"acintosa\" do que a que o Luiz Nassif fez com a presidente afastada. Os jornalistas precisam caminhar..........
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Ivone Andrade (via FB) comentou:
19/11/2016
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Anete Rubim (via FB) comentou:
19/11/2016
A temerosa voz do dono...como na musica de Chico, vou esperar o dono perder a voz...torcer que seja breve
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Fábio Alencar comentou:
19/11/2016
Só fizeram as perguntas do script?
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Lúcio Carril (via FB) comentou:
19/11/2016
Foi um churrasco entre amigos. Jornalismo passou longe.
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Madeleine Mônica Athanazio comentou:
19/11/2016
Triste papel desses jornalistas....
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Adeice Torreias (via FB) comentou:
19/11/2016
Vergonha de certos jornalistas!!! De valor mesmo, sua crônica . Orgulho de vc, Mestre.
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Ronaldo Derzy (via FB) comentou:
19/11/2016
Só \"questionamento\" difícil de responder. Tadinho do Temer!
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Josafá Rodrigues (via FB) comentou:
19/11/2016
Pensando bem, sinto saudades do Observatório da Imprensa - VOCE NUNCA MAIS VAI LER O JORNAL DO MESMO JEITO. O Alberto Dines cumpria ali uma função importante. Obrigado pelo texto,.,
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Maria José (via FB) comentou:
19/11/2016
https://www.facebook.com/nocautefernandomorais/videos/vb.204321206621737/325666061153917/?type=2&theater&notif_t=comment_mention&notif_id=1479539228593250 Vale a pena dar uma olhada, vai na mesma direçao do artigo a sugestão de perguntas que devem ser feitas.
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Dori Carvalho (via FB) comentou:
19/11/2016
Tinha ela 19 anos e ele 65, quando o tio a levou para conhecê- lo, numa reunião de partido. Se hoje ele tem 75, então, faz 10 anos que a conheceu. E não 15 anos. Quem mente?
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Ana Celia Ossame (via FB) comentou:
19/11/2016
Vergonha alheia de jornalista. Só digo isso!
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Marcelo Thimoteo (via FB) comentou:
18/11/2016
Excelente, Como sempre. Ter essa mérdia a favor mostra bem quem é o Usurpador. E disse tudo o querido amigo José Ribamar Bessa, professor de Jornalismo e sujeito porretésimo: \"até para puxar o saco deve se ter um mínimo de decência\" Vale a leitura, clica aí, ó cara!
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Felipe José Lindoso comentou:
18/11/2016
Sempre que leio sobre essa \"entrevista\" me lembro do Fagundes, personagem do Laerte, que dizia que o saco do \"chefinho\" era o corrimão que o levaria ao sucesso. Algumas das charges da série do Fagundes estão no site do Laerte. Impagável.
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Leonardo Castilho (via FB) comentou:
18/11/2016
Professor, já faz muito tempo, quase 30 trinta anos, mas lembro de suas aulas em que trouxe o texto do Nelson Rodrigues, que fala da entrevista imaginária. Depois disso, eu passei a gostar do Nelson Rodrigues e a procurar as cronicas dele.
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Ana Stanislaw comentou:
18/11/2016
Sensacional!! Todos os jornais deveriam ter a coragem do Bessa e denunciar esse golpista. Que vergonha, que horror! Dia após dia assistimos perplexos os horrores desses canalhas no poder. Eles perderam o pudor, a decência; estão desmantelando tudo, passando com um rolo compressor. Jornalistas? Não, sem vergonhas, vendidos, cafajestes, hipócritas, entreguistas. Eu não me silenciaria diante do temer, desse canalha!! Que horror, que horror. Brilhante crônica, Bessa, para publicar na primeira capa.
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