CRÔNICAS

A Amazônia que os portugueses rebelaram

Em: 29 de Julho de 2016 Visualizações: 19241
A Amazônia que os portugueses rebelaram

Uma foto e um livro. A foto recente de uma paulista de Sorocaba, de 15 anos, com uma criança indígena no colo diante de uma casa de palha em Manaus, gerou enorme polêmica e mais de mil comentários nas redes sociais com xingamentos, insultos e vitupérios. O livro é do historiador amazonense Arthur Reis. Ambos foram mencionados nesta quinta-feira (28), na palestra sobre os Direitos dos Povos Indígenas que ministrei na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) a convite do desembargador Sérgio Verani, presidente do Forum de Direitos Humanos.

A foto

De passagem por Manaus, Vitória Caroline, a jovem paulista, se deixou fotografar, sorridente com a criança indígena. As duas são lindas. Mas centenas de internautas manauaras se sentiram ofendidos e ultrajados. Dispararam preconceitos. "Nasci em Manaus e nunca vi um índio. Aqui não tem mato nem índio, como pensam os paulistas" - alguém postou. "Ninguém é índio. Nós somos civilizados" - escreveu outro. Um tal de Wendell Linno - um nome genuinamente amazônico encharcado de pororoca - exibiu fotos do Teatro Amazonas dizendo: "Isso sim, é Manaus".  A banca de tacacá na praça não aparece.

No festival de boçalidade e desinformação, a paulista foi verbalmente agredida, chamada de "doida" e de "mentirosa". Felizmente houve quem discordasse, foram poucos, mas o suficiente para mostrar que existem índios e vida inteligente em Manaus. Lembraram que o Censo do IBGE de 2000 encontrou em Manaus 7.894 pessoas que se autodeclararam índios, número que em 2010 caiu para 3.776, embora o CIMI e a COIAB estimem em mais de 20.000.

Além disso, a Amazônia está indelevelmente marcada pelas culturas indígenas, o que deve ser motivo de júbilo, da mesma forma que a contribuição de africanos, portugueses, sirios, libaneses. Se é assim, se cada amazonense esconde um índio no seu jeitão de ser e de falar, por que a presença de indígenas na cidade ofende tantos manauaras, inclusive aqueles que mergulham nas cuias de tacacá cuja origem desconhecem?  É aqui que entra o livro, a escola, a mídia.

O maior historiador da Amazônia, Arthur Reis (1906-1993), ex-governador na ditadura militar e que conhecia bem a documentação nos arquivos, escreveu entre outros "A Amazônia que os portugueses revelaram". Ali, construiu uma imagem que permite explicar as razões de amazonenses se sentirem ofendidos com a menção aos índios como matriz formadora da identidade regional. É que ele elogia os colonizadores e atribui ao "gênio geopolítico militar" a construção na região de fortalezas destinadas a escravizar a a exterminar os índios que simplesmente são apagados da nossa história.

A portugalização da Amazônia, que não foi concluída no período colonial, é exaltada nesse e em outros livros. E isto porque os historiadores tradicionais da Amazônia não enxergam o índio no seu horizonte e invisibilizaram os índios para as atuais gerações. Olham a região com olhar do ocupante luso. Arthur Reis, quando se refere à disputa entre espanhóis e portugueses no Solimões (1709-1710), escreve:

- "No primeiro choque, os espanhóis foram derrotados. Na segunda fase, perdemos a partida".

Perdemos quem, cara pálida? A partida que o historiador considera perdida na primeira pessoa do plural - se os portugueses perderam ontem, fomos nós que perdemos hoje - foi a derrota dos portugueses em 1710. Mas quando são os índios que perdem, é "a vitória da civilização". Em vez de se preocupar com a Amazônia indígena que os portugueses rebelaram, Reis faz uma apologia acrítica do colonizador, silencia sobre a resistência e as lutas indígenas e sugere uma confraternização de raças.

Na versão do ex-governador, A Amazônia que os portugueses revelaram não contempla a Amazônia rebelada. Centenas de rebeliões indígenas registradas na tese de doutorado de David Sweet, defendida em 1974 na Universidade de Wisconsin-Madison, desaparecem da obra de Reis, como a banca de tacacá em frente ao Teatro Amazonas. Mais de duzentos índios, cada um com seu nome, que lideraram a resistência no período de 1616 a 1750, não figuram nos livros didáticos, não tem monumento nas praças, não aparecem na mídia, não são nome de rua, com exceção de Ajuricaba,que foi folclorizado pelo Poder.

Uma casa portuguesa, com certeza?

Não houve rebelião, mas relações de concórdia. de amizade e de mestiçagem entre índios e portugueses - segundo essa versão. Um dos exemplos mais caricaturescos da tese da confraternização de raças é o discípulo de A. Reis, Leandro Tocantins (1919-2004), para quem a prova de que os portugueses não discriminavam os índios foi "o intercurso sexual entre o português e a índia amazônica, em que o instinto femeeiro do branco, o seu sadismo, unidos ao mazoquismo por assim dizer da mulher indígena, concorreram para o progresso da mescla".

Num desrespeito aos povos indígenas, à mulher indígena e aos próprios documentos, Leandro Tocantins afirma que "todos os cronistas observaram a índia doida por um corpo de homem branco para se esfregar, preferência a que, em geral, os sociólogos emprestam motivos priápicos". Ele fala em "todos os cronistas", mas não indica nenhum, cita apenas seu outro mestre Gilberto Freyre para testemunhar sobre a "excessiva sexualidade dos portugueses como atrativo para as mulheres indígenas".

O historiador Ruggiero Romano, já falecido, liquidou esta corrente com um golpe mortal. Para Romano, esta história de confraternização de raças esconde o fato de que os colonos vinham quase sempre sem suas mulheres e transformaram o estupro de índias numa prática corriqueira. "Fornicação generalizada sim - diz Romano - mas quanto ao resto formação de uma sociedade fortemente fechada na qual os preconceitos raciais criam discriminações de ordem social e econômica".

Com relação a Leandro Tocantins, José Honório Rodrigues questiona a seriedade de seu trabalho e o critica de forma enfática, mostrando como está cego pelo compromisso com o colonizador. A falta de rigor e a subserviência da historiografia tradicional coloca aos pesquisadores de História da Amazônia a necessidade de proceder revisão total de tudo o que foi escrito até hoje para ir arquitetando e construindo uma história mais objetiva da Amazônia, seguindo caminho sugerido por Severiano Porto em seu artigo "As artes visuais na Amazônia: Arquitetura de morar".

Lá, o arquiteto registra a sabedoria dos índios na arte de construir e propõe "sacudir tudo o que aprendemos e nos condicionamos a utilizar, para ver se conseguimos atirar longe conceitos de construção, soluções e espaços inadequados, substituindo-se com criatividade, segurança e coragem por outros adequados à nossa região para benefício das pessoas que aqui vivem e moram nas casas que aqui se fazem". É preciso fazer com a construção da história o que Severiano Porto fez com a construção de moradas para assim vivermos melhor, enriquecidos pela diversidade e pela diferença.

"Os portugueses vieram, viram, mas não venceram" - comenta Joaquim Nabuco, referindo-se aos resultados do colonialismo na Amazônia, a região menos lusa do Brasil e, talvez por isso mesmo, a mais lusa de todas na versão histórica oficial, o que em certa medida ajuda a explicar a ignorância dos manauaras ofendidos com a foto da paulista com uma índia.

P.S. - O curso da EMERJ, inaugurado pelo ex-reitor da UnB, José Geraldo de Souza Junior, prosseguiu com outros palestrantes entre os quais Sérgio Verani, Miguel Baldez e Maria Guadalupe, abordando ainda outros temas como o direito insurgente, o direito à terra, à moradia à saúde, concluindo com os direitos dos povos indígenas.

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11 Comentário(s)

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Renata Póvoa Curado comentou:
05/08/2016
José Bessa Mestre fiquei pensando mt sobre a moça com a criança em Manaus. E fiquei triste em perceber essa negação e não reconhecimento das raízes e legados indígenas por lá. Além da atualidade da convivência e possibilidade de aprendizagem com esses povos irmãos. Por aqui no Centro-oeste, Sudeste e Sul (maioria das pessoas presentes vinham dessas regiões na Aldeia Multiétnica) percebo um crescente orgulho, afeto e procura de trocas culturais. Que bom que ainda temos essas frestas de convívio. Obrigada sempre pelas reflexões.
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Marco comentou:
31/07/2016
Rebelar e revelar formavam uma só palavra em português arcaico, assim como basco e vasco. A revelação pode gerar rebeldia, a rebelião é uma revelação. O Professor Bessa coloca em seu devido lugar o machismo patriarcal do importante historiador que foi Arthur C. F. Reis e a misoginia de seu discípulo L. Tocantins (não se perca pelo nome). A ocultação indígena e, pior do que isso, a auto-ocultação equivale ao mistério da iniquidade, são o lado destrutivo da vida. Temos (re)criar a história do passado, presente e futuro, Grato ao Professor Bessa por compartilhar mais esta reflexão lucidamente engajada.
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Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (via FB) comentou:
30/07/2016
Por uma Historiografia corajosa que desequilibra totalmente o oficialmente de merda que ainda persiste entre nós!
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Don Kirchner (via FB) comentou:
30/07/2016
Parabéns pela. pesquisa, resgatando o passado das sombras.
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Andre Costa comentou:
30/07/2016
Apos uns quatro anos retorno a ler uma cronica sua. Por sorte, esta eh de primeiro nivel, do tipo que me fez acompanha-lo por meses. Para falar da Amazonia, com louvor e informacoes, nao precisa defender as mentiras da esquerda de ontem e hoje e nem ofender minorias nao influentes. Apenas uma ressalva: Se Joaquim Nabuco visse a atual Manaus que ha ate o Boulevard, talvez ele nao concluisse por uma nitida derrota dos portugueses. A influencia lusa que venceu, e nao precisamos renegar, pode ter sido a espontanea. De jovens que vieram se estabelecer aqui nao como militares, mas como empreendedores para uma nova vida. Sim, certamente houve portugueses perdidos de paixao pelas indias e caboclas. Eu mesmo conheco duas historias. A do sr. Prata e a d. Eutalia, no Boulevard, e a sr. Ermenegildo Goes, apaixonado por uma india de Parintins. Abs.
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Ana Silva comentou:
30/07/2016
Adorei a crônica prof. Bessa. De fato, o senhor tem razão. Os índios estão esquecidos pela história tradicional, nos livros didáticos, na grande mídia e também nas instituições arquivísticas. Recentemente, um site de uma instituição renomada fez uma chamada pública para colaboradores em um de seus sites. Para minha surpresa, recebi a resposta de minha proposta que os índios não estavam contemplados na ementa proposta pelos organizadores. Uma das razões de não poder colaborar com um artigo de minha autoria. Que não estavam incluídos, eu já sabia. Todavia, me surpreendi com o retorno, pois chefes indígenas e índios presos não foram incluídos e nem poderiam ser. Parte significativa desse país desconhece, ignora e faz questão de não conhecer os índios. Há uma realidade não paralela, no qual os povos indígenas são massacrados, suas mulheres e meninas são violentadas, jovens, homens, mulheres, crianças vivem sem perspectivas de vida encurralados em pequenas reservas ou á beira de rodovias. Ali, sofrem todo tipo de violências. Novos capítulos de violações são atualizados todos os dias desde 1500. Esquecer que são índios ou descendentes é uma forma de atualização dessas intimidações e atos violentos. Esquecemos que esquecemos, uma lástima!
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Peter Gillespie (via FB) comentou:
30/07/2016
Interessante ideia. Quis ler a postagem no seu blog, mas a tipografia de cor clara é ilegível.
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Peter Gillespie (via FB) comentou:
30/07/2016
Obrigado, José. Tambem teria gostado que o artigo, \"O Ultimo Sonho de Verá Mirim\" fosse legível, mas a verdade tambem é que o tempo não é expansível. Pessoalmente eu acho que a apreensão da identidade comunitária é um sujeito importante para a educação de uma comunidade unida e dinâmica. O que pode ter mais importância para a comunidade manauara que se encontra no centro geográfico do bioma amazônico?
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Taquiprati comentou:
30/07/2016
Peter, obrigado pela indicação, estamos providenciando a mudança sugerida.
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Alfredo Morel (via FB) comentou:
30/07/2016
Muito bom caro Bessa! Vc tem esse artigo do Severiano.Porto?
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Roberto Ervino Zwetsch comentou:
30/07/2016
Muito bom o texto sobre a foto (também concordo, Bessa) da menina indígena com am oça de SP.. Também certa vez fui espinafrado porque depois d eum levantamento das horas de trabalho que os kulina dedicavam à produção de suas roças (no período da seca) não passaram (num mês de observação) de 4 (quatro horas) por dia, uma média que nenhum trabalhador jamais irá alcançar na \"sociedade moderna\". É isto que permite aos indígenas caminhar muito, conhecer bem seus territórios, sua fauna, sua flora, e ainda dedicarem muito tempo para ops rituais, os jogos, as brincadeiras (que reúnem adultos e crianças, sempre!). Ou seja, que sociedade é esta que dedicar a maior tempo do seu tempo para \"viver bem\", do seu jeito, sem grandes desigualdades e se3m exageros de luxo ou conforto? Por favor, poderíamos dizer, chega deste tipo de exaltação da \"modernidade\" da sociedade capitalista dominada pelo que um autor chamou de \"necropoder\". Em solidariedade. Abraço. Roberto Zwetsch
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