CRÔNICAS

Kátia Abreu um dia já foi condessa

Em: 10 de Maio de 2015 Visualizações: 25162
Kátia Abreu um dia já foi condessa
Temos três provas contundentes de que a senadora Kátia Abreu (PMDB, vixe, vixe), atual ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, já ostentou o título nobiliárquico de condessa. A primeira prova é indireta e se baseia numa tese de doutorado defendida na última terça-feira no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNI-RIO. A segunda, embora não científica, mas digna de crédito, é uma carta psicografada com mensagem de alguém que morreu em 1882. A terceira, avassaladora, é uma foto analisada por quem entende do riscado.
Tese: memória de libertos
Defendida por Isabela Castro, a tese conta a história de um território dos índios Puri, no Vale do Paraíba do Sul (RJ), usurpado no séc. XVII para dar origem à Fazenda Cantagalo, produtora de café. Sua proprietária no século XIX era uma viúva, sem filhos, chamada Mariana Claudina Pereira de Carvalho, condessa do Rio Novo. No auge da luta abolicionista no Brasil, ela convocou seus 244 escravos e leu o seu testamento. O documento, cujo original está hoje no Museu da Justiça do Rio de Janeiro, determinava que se os escravos trabalhassem direitinho enquanto ela vivesse, seriam após sua morte alforriados e herdariam a terra.
O testamento foi uma esperteza, uma jogada de mestre, cujo objetivo era "produzir fidelidades" e assim neutralizar tentativas de rebelião ou fuga, instituindo "o bom cativeiro". Tratava-se de uma estratégia bem sucedida para garantir "a paz na senzala". Quando a condessa bateu as botas, em Londres, em 5 de julho de 1882, seus 244 escravos se tornaram livres. E o que aconteceu com a fazenda e tudo que nela havia: 500.000 pés de café plantados em 53.240 hectares, máquinas, serrarias, terreiros cimentados e outras benfeitorias?
O documento estabelecia um prazo de 50 anos para que os libertos se tornassem efetivamente os proprietários daquela terra cobiçada pelos vampiros locais. Enquanto isso, a fazenda deveria ser transformada em Colônia Agrícola administrada pela Irmandade Nossa Senhora da Piedade mediante o "sistema de parceria", ou seja, durante esse tempo metade do café produzido pertencia à Irmandade, o que seria fiscalizado pelo juiz de direito e pelo presidente da Câmara Municipal.
Desta forma, para serem os donos definitivos da terra os libertos teriam de trabalhar meio século recebendo apenas a metade do valor do café que era todo comercializado pela Irmandade. Acontece que nem isso os administradores pagavam. Diante do protesto dos ex-escravos, apresentados como "falsos proprietários", os jornais locais desencadearam campanha, denunciando "a insubordinação dos colonos e sua ousadia", enfim, uns vândalos. O Provinciano acusou-os de não entregarem todo o café produzido e de serem refinados ladrões.
No entanto, em 1884, o insuspeito Boletim da Sociedade Central de Imigração, em seu número 3, desmente o jornal, descrevendo a vida quase utópica na comunidade:
"Não se queixa a administração da Colônia Nossa Senhora da Piedade de que um único dos libertos haja sonegado sequer, quanto mais roubado, um grão de café que eles colhem. Não se queixam os próprios libertos uns dos outros da subtração de objetos de seu uso, de seu cultivo. Não se queixa nenhum vizinho nem ninguém da povoação, quer habitante fixo, quer viajante, de que os libertos tenham retirado objetos alheios".
Carta ao Imperador

A tese de Isabel Castro recupera esse e outros documentos da memória subterrânea, incluindo uma carta conservada no Instituto Histórico (IHGB) dirigida a S.M. o Imperador e ao ministro da Justiça, contestando o jornal:
"O Provinciano, afetando isenção de quem nada tem com o negócio, reclama providencias contra os colonos da Fazenda Cantagalo, ex-escravos da Condessa do Rio Novo, que no dizer daquela folha, já por duas vezes tem aparecido nesta cidade em massa turbulenta, ameaçando a tranquilidade publica. Aqui no município a ninguém enganou as manobras daquele jornal que tem como seu principal redator ou inspirador o individuo que, por suas malversações na gerência da colônia, tem dado causa, não a atos de turbulência, como adrede se quer inculcar, mas às reclamações enérgicas, porem pacificas, dos ex-escravos".
Os administradores da Colônia que faziam parte da elite local se apropriavam em benefício próprio do patrimônio dos ex-escravos:
"Dos livros da Irmandade não constam que se lhes tenha dado a parte dos lucros da fazenda que lhes pertence. O dinheiro do café de há muito nutrem as roletas desta cidade. A voracidade do administrador da colônia é enorme, mais feroz que a jiboia, aquele estomago nunca conhece os trabalhos de digestãoOs pobres pretos não tem recebido o seu dinheiro" e fazem "reclamações pacificas, justamente indignados contra a atrevida espoliação".
A carta elabora uma crítica às instâncias de poder que agem em interesse próprio e não em defesa da causa pública: "O Provinciano obedece ao pensamento, ao plano dos redatores, os mesmíssimos interessados em abafar a voz das vítimas". Quanto ao Juiz de Direito, o Imperador é notificado de que "aquele magistrado é cúmplice em tudo isso, pela inércia com que se recusa a cumprir o dever que lhe impõe a lei, de fiscalizar a Irmandade e fazer cumprir as disposições testamentárias".
Os descendentes dos escravos, liderados por Dona Ambrozina de Lima Bastos, para garantir as terras que legalmente eram suas, entraram em 1940 com uma ação de usucapião, que só foi concluída em 1950, quando muitas parcelas já haviam sido aforadas e vendidas pela Irmandade. Parte da Colônia, já integrada à zona urbana no bairro Colônia, se transformou num palco de especulação imobiliária, com a cumplicidade da Câmara Municipal, que a considerou "terra de ninguém",  justificativa sempre usada para apropriações ilícitas, em que "ninguém" é uma referência a quem está por baixo, cuja cidadania é negada.
O Brasil no bairro
A área é hoje o bairro Vila Isabel do município de Três Rios, denominação irônica dada em homenagem à Princesa Isabel numa disputa pela memória. Mas a cidade não permitiu que a estátua da "Mãe Preta", em homenagem às amas de leite que amamentaram os sinhozinhos, fosse colocada na frente da igreja de Santa Luzia, nem no bairro Caixa D´Agua. Depois de muita rejeição, foi enfim instalada pelos descendentes dos libertos num cruzamento perigoso da Praça Ambrozina Bastos para não deixar embranquecer a memória.
E a ministra Kátia Abreu, onde é que entra nessa história? Ela está lá, dentro deste bairro, dentro do território narrado, onde cabe o Brasil inteiro. Está tudo lá dentro: os índios espoliados, os negros explorados, os séculos de escravidão, a usurpação de terras, a cumplicidade dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado: as trapaças do juiz, as armações dos vereadores, as mentiras dos jornais, o esquecimento da escola, a doutrinação das igrejas, mas também a resistência, as lutas sociais e as expressões de cultura popular: as festas, a música, o jongo, a ginga, o futebol.
Neste sentido, a tese da historiadora Isabel Castro é uma radiografia do Brasil, com o registro dos mecanismos de disputa da memória. Além dos documentos orais obtidos em entrevistas com onze descendentes dos escravos, a autora vasculhou arquivos e encontrou documentação em atas da Câmara Municipal de Paraíba do Sul e de Três Rios, nos jornais, nos documentos cartoriais, embora papéis referentes à administração fraudulenta da Colônia Agrícola tenham sido queimados em um incêndio de origem criminosa que destruiu a Casa de Caridade em 1955.
É verdade que Kátia Abreu sequer é  mencionada na tese, mas ela está lá na pele da condessa e na sua metodologia de ação, assim como é possível ver nos documentos os Gilmar Mendes e Dias Toffoli, Renan Calheiros e Eduardo Cunha, Roberto Marinho e Julio de Mesquita, Merval Pereira e William Waack, enfim toda a caterva da época.
Para quem ainda duvida, trago do acervo da minha imaginação uma carta psicografada com mensagem da própria Condessa do Rio Novo, informando que ela reencarnaria numa menina nascida em Goiânia em 2 de fevereiro de 1962. Os dados batem com a certidão de nascimento de uma certa pecuarista e agronegociante.
Mas a prova mais inapelável é mesmo a foto da condessa encontrada nos arquivos, vestida num modelito comparável àquele usado pela ministra em sua posse, com saia evasê e mangas largas, da mesma cor verde-agricultura ou folha  de repolho, num tom entre o limão e o pera. O doutor Brian Stevenson, da Universidade de Virginia, especializado em regressão a vidas passadas e outras ciências afins, depois de examinar de forma percuciente as fotos e os dados, inclusive os grafológicos, concluiu categoricamente:
- Uma é a reencarnação da outra. O DNA é o mesmo. Sem qualquer ofensa à memória da condessa, mas a ministra da Agricultura é a versão reeditada da outra, cujo espírito transmigrou de Três Rios para Goiânia.

P.S. Isabela Torres de Castro Innocencio. Memória de afrodescendentes no Vale do Paraíba: de Colônia Agrícola Nossa Senhora da Piedade a bairro de Vila Isabel. Lugar de Memória, História e esquecimento em Três Rios, 1882-1951. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio. 2015. 364 pgs. Banca Examinadora: Regina Abreu (orientadora, sem qualquer parentesco), Martha Abreu (UFF, sem qualquer parentesco),  Andrea Vieira (UNIRIO), May Waddington (UFPi) José R. Bessa Freire (UNIRIO-UERJ). A banca recomendou a publicação da tese. 

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21 Comentário(s)

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27/06/2015
Penso que o senhor deveria ter anotado em suas fontes, o local de onde foram copiadas as fotos aqui exibidas, ou seja, foram copiadas do meu livro "Pioneiros dos três rios - A Condessa do Rio Novo e sua gente". Inclusive as notas de rodapé e margem superior são do livro!!! Quanto às suas observações, há muitos enganos, mas não serei eu quem irá apontá-los. Espero que a querida Isabela, que tem grande conhecimento do assunto, veja e retifique a verdadeira história, de acordo com a documentação existente. Espero também que meu livro conste como fonte de informação como manda a ética (e a Lei) Contato de Cinara Maria Bastos Jorge
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José Ribamar Bessa comentou:
27/06/2015
Prezada Cinara, com minhas desculpas, a responsabilidade de postar as fotos foi minha. Voce tem razão em relação à omissão das fontes. De qualquer forma, para sua tranquilidade, as duas fotos citadas foram retiradas.
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Tábata comentou:
30/05/2015
Muito bom!!! Parabéns pela crônica Bessa!! Abração
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Edmundo Monte comentou:
14/05/2015
Muito massa, Bessa! Acidez Histórica requintada. Parabéns. Como lhe disse via e-mail, republiquei-a (com os devidos créditos) no meu blog (www.edmundomonte.com.br). Um abraço e muita saúde meu nobre! Edmundo
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joy costa mattos comentou:
11/05/2015
Valorização da diversidade das significas fontes de pesquisa. Parabéns!q
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Italo comentou:
10/05/2015
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Italo comentou:
10/05/2015
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Ana Stanislaw comentou:
10/05/2015
Adorei, Bessa!! Que maravilha de crônica. Muito bom começar a semana lendo, rindo e se emocionando com os teus maravilhosos textos.
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benedito Carvalho comentou:
10/05/2015
É, como diria Freud, "a volta do reprimido" num país que nunca enfrenta seus problemas fundamentais. O escravismo está ai, não só com as fantasias similares das condessas, como das kátias reencarnadas repetindo as mesmices do passado. Os fantasmas retornam nessa rocambolesca história desse país, onde o escravismo está intacto. Até quando?
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Rosilene Andrade comentou:
10/05/2015
Prof. Bessa , adorei você é genial, deu vontade de ler a tese. Contato de Rosilene Andrade
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Jandir Ipiranga Jr comentou:
10/05/2015
Parabéns Prof. Bessa. Uma analogia irretocável.
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Silvana Cordeiro comentou:
09/05/2015
O que posso fazer para ter uma cópia da tese de doutorado citada no artigo?
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Crysna Bonjardim da Silva Carmo comentou:
09/05/2015
Bela analogia! Mais didática, impossível, prof. José Bessa! Seria interessante se pudéssemos convocar "um xamã" para fazer esse espirito subir - e, junto com ele, toda a caterva!
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09/05/2015
A estratégia é apropriada em utilizar um fato para chamar a atenção do leitor para outro: a expropriação do índios. Com base no argumento racional, concordo com a conclusão: uma é a encarnação da outra. Contato de neimar machado de sousa
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Maria A. de Sá Xavier comentou:
09/05/2015
Bessa, você é Genial. Adorei e caiu como uma luva. Também concordo com você... é a reencarnação própria. Abração!!
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09/05/2015
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Jose Aguilera comentou:
09/05/2015
Oi b Bessa, adorei a crônica. Somente achei sacanagem para com a condessa do Rio Novo. Abs
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sandra de almeida figueira comentou:
09/05/2015
Bessa, grata pela maravilhosa crônica. Por parte de meus antepassados maternos sou descendente desses Puris. Penso porém que é muito provável que Kátia Abreu não seja a reencarnação da condessa, que pareceu-me bem intencionada e crédula de que a Igreja Católica atenderia a seu pedido no leito de morte e ampararia seus escravos alforriados em testamento. A ganância do adminsitrador à serviço da Igreja e dos outros poderosos locais é que desampararam eles e sua prole e os excluíram da partilha da terra. Por outro lado, Kátia Abreu recriou diversas verdades sobre os posseiros originais das terras e as ocupou ardilosamente, índios, negros, nativos das terras no norte do Mato Grosso. Ela conjuga elementos de diversos outros personagens dessa história, do jornal, administrador, donos de cartórios, políticos e poderosos.
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Isabela Torres de Castro Innencio comentou:
09/05/2015
Adorei professor! Como sempre, escrevendo de forma brilhante! Esta crônica ficará guardada com o máximo carinho. Obrigada por tudo! Nosso convívio no curso, suas aulas e tudo o que aprendi foram essenciais ao meu crescimento profissional durante estes últimos anos. Abraços!
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Edmundo Monte comentou:
15/05/2015
Cara Isabela, procurei na net mas não encontrei sua tese. A versão final já está disponível? Se possível, gostaria muito de tê-la em mãos, bem como compartilhá-la com colegas do PPGH-UFBA. Obrigado e parabéns! PS: Caso não se importe, o Bessa tem o e-mail do GT Os índios na História. Dessa forma eu receberia numa boa. Outra alternativa é enviar direto para meu e-mail pessoal. Enfim, fico à disposição. www.indiosnonordeste.com.br www.edmundomonte.com.br
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