Levanta a mão aí quem já ouviu falar da Revista do Brasil (RB)? Ela era porta-voz da Liga Nacionalista de São Paulo e foi fundada em 1916 por Júlio de Mesquita, dono do Estadão. Estou dando uma de sabichão, mas confesso que ignorava sua existência até a semana passada, quando li o texto de Julieta Figueiredo, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da UNIRIO. Ela pesquisa o tratamento dado pela revista às políticas de eugenia e de saneamento, com foco na fase em que foi dirigida por Monteiro Lobato, então seu proprietário (1918 a 1925).
A RB se antecipou em cem anos ao Jornal Nacional da TV Globo, formulando de uma certa forma a pergunta: Que Brasil você quer para o futuro? Suas páginas abrigavam articulistas, muitos deles da Academia Nacional de Medicina, que em nome da ciência, davam repostas sobre o Brasil do futuro, ou seja, aquele em que agora vivemos. A “solução” para o país seria “melhorar a raça brasileira”, com políticas destinadas a selecionar os tipos eugênicos – os sadios bem nascidos - e separá-los dos degenerados e dos imigrantes africanos e asiáticos. A “nação do futuro” teria o predomínio da “raça branca”.
Como conseguir isso? Em busca de respostas, o movimento desembocou no I Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, do qual participaram bacteriologistas, microbiologistas, médicos, psiquiatras, antropólogos, engenheiros, agrônomos, jornalistas e professores. Mas a proposta de Azevedo Amaral de proibir a entrada de negros no país foi derrotada por três votos de diferença. O físico Oscar Fontenelle pediu recontagem de votos, defendendo o modelo norte-americano que “protegeu a sua raça de imigração japonesa e negra”.
Falsa ciência
De qualquer forma, cinco anos depois, a Constituição brasileira de 1934, que sofreu influência da política norte-americana do New Deal, em seu artigo 138, estabelecia que a União, os Estados e os Municípios deveriam “estimular a educação eugênica”.
A mulher, considerada incapaz física e organicamente, o negro e o índio foram alvo dos discursos eugênicos apresentados na RB. Os negros aparecem como dotados de “inteligência inferior, falsos, desconfiados, mentirosos e devassos”, os índios como “indolentes e selvagens primitivos”. Os imigrantes não europeus eram “indesejáveis”, com cobrança de multas pesadas aos comandantes de navios que os transportassem. Lobato ampliou a rede de venda da revista em 300 livrarias espalhadas pelo país e quase 2 mil distribuidores em farmácias, padarias e lojas de varejo.
Para atingir um público, cuja população era formada por 75% de analfabetos, a RB usou e abusou de charges e caricaturas racistas ofensivas à inteligência e à espécie humana. Uma delas mostra uma mulher que, espancada pelo marido, se queixa à sua mãe, que lhe diz: “Queres que vingue a bofetada que teu marido te deu? Pois bem, dou-te outra. Porque se ele bateu em minha filha, eu bato também na mulher dele”. Esse era o Brasil que queriam para o futuro. Está aí o Bolsonaro que não me deixa mentir.
A eugenia no Brasil investiu pesado na identidade feminina, com claro viés racista: “Muito sultão tem trocado quatro esposas morenas por uma loira e não consta que tenham se arrependido” garante um articulista no número de 1921 da RB. Monteiro Lobato comentou: “Embora reconhecendo as queixas que a mulher tem do macho, sem o concurso dele nada valeríamos no mundo. Viva o macho forte que suplantou o macho fraco”.
Embora a Revista do Brasil não reservasse espaço para opiniões contrárias, havia, porém, quem discordasse dessas concepções de eugenia, confirmando o que afirma Foulcault: “Onde tem poder, tem resistência”. Um dos opositores foi o médico sergipano Manoel Bonfim, que chamou a eugenia de “falsa ciência”, desmascarando o racismo científico em seu livro “A América Latina: males de origem”. O outro foi o antropólogo Roquette-Pinto para quem “o mestiço tem plenas condições de povoar o país” e que nenhum dos tipos classificados por ele “apresentavam qualquer tipo de degeneração”.
Os degenerados
A doutoranda se apoiou em vários autores com estudos recentes sobre o assunto como Tânia R. de Luca, Maria Inês Campos, Pietra Diwan e outros. Um deles, Valdeir Del Cont (2013), cientista social da Unicamp, dá pistas sobre a fonte inspiradora dos artigos da RB, com uma citação assustadora, que ecoa ainda hoje nas vozes de candidatos a presidente e vice-presidente da República:
“Os ideais eugênicos encontraram nos Estados Unidos terreno fértil para sua proliferação, sob a tutela do geneticista Charles Benedict Davenport. Ele calculava que pelo menos 10% da população americana era formada por degenerados que, por isso, deveriam ser identificados e catalogados, com o objetivo de tomar as devidas precauções para interromper a cadeia reprodutiva, seja por segregação em campos ou fazendas ou por esterilização. Participavam dessa lista: criminosos, surdos, cegos, mudos, débeis mentais, epilépticos, tímidos, introvertidos, calados, gagos e os que falavam inglês de forma incorreta”.
Fiquei com meu “pescoço em francês” na mão, bem apertadinho, porque me enquadro em várias dessas categorias de degenerados, inclusive com meu inglês macarrônico. Mas o preconceito do “inglês incorreto” era direcionado ao “black english” falado pelos negros nos Estados Unidos, cuja legitimidade como uma das variantes do inglês americano marcado pelo contato com línguas africanas, foi reconhecida pelos estudos do sociolinguista William Labov, em 1969, que destacou seu papel na música e na literatura.
É phoda!
No Brasil – informa a doutoranda – o médico Renato Kehl, voltou da Alemanha com pensamentos eugênicos radicais, afirmando que o saneamento por si só não resolveria os problemas do nosso país, cujo povo em sua maioria “apresentava uma genética degenerada”. O saneamento, defendido por alguns intelectuais como Roquette Pinto, “não atingia a genética do ser humano” - contrapõe Kehl, que pregava a separação dos tipos eugênicos, o controle da imigração, a esterilização dos degenerados e o branqueamento da população a partir do “matrimônio correto”.
Em carta a Renato Kehl, que era o pai da eugenia no Brasil, Monteiro Lobato diz: “Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha”. Quando deixou a direção da RB, em 1926, antes de viajar para os Estados Unidos, escreveu “O choque de raças ou o presidente negro”, romance no qual descreve o “conserto do mundo pela eugenia”, onde a “raça branca superior” extermina a “raça negra, inferior”, através da esterilização.
O escritor que alegrou a nossa infância com suas histórias, nos entristece com suas propostas racistas. É phoda mesmo! Cem anos depois da Revista do Brasil defender seu projeto de nação, ao ouvir o capitão Jair Bolsonaro e o general Mourão, podemos dizer que o futuro chegou? Qual o Brasil que você quer para o passado?
P.S.1 - Julieta Brittes Figueiredo. Revista do Brasil: as representações eugênicas/higiênicas da saúde no período lobatiano (1918-1925). Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da UNIRIO. Banca de qualificação (17/09/2018): Wellington Amorim (orientador), Tânia Maria de Almeida Silva`, Lilian Fernandes Ayres, Fernando Porto e José R. Bessa.
P.S. 2 - Parte deste texto foi apresentado oralmente na sexta-feira (21) durante o Seminário Educação e Resistência comemorativo dos 40 anos da Escola Oga Mitá. Da mesa em homenagem a Marielle Franco, assassinada há 6 meses, sem que até hoje tenham sido identificados os autores do crime, participaram Mônica Sacramento, professora da UFF; Mônica Francisco, cientista social e candidata a deputada estadual (PSOL 50888); e este locutor que vos fala. A mediação foi feita pela escritora Ana Paula Lisboa. Éramos ali, com muita honra, quatro mulheres negras, além da presença de Marielle.