Na Favela do Bode, em Recife, no meio do lamaçal de um mangue, brotou, como uma flor, uma biblioteca. Funciona dentro de uma palafita. Nem sequer tem estantes, os livros estão amontoados no chão, mas mesmo assim essa biblioteca-severina é bela, porque "corrompe com sangue novo a anemia". Lá, as crianças estão lendo e se encontrando. Mas não é só lá.
No Rio de Janeiro, na Favela de Manguinhos, floresce uma biblioteca-parque, com cinema, teatro, espaço de lazer e muito livro. Ela também "infecciona a miséria com vida nova e sadia". Na Favela da Rocinha, na Zona Sul, acaba de desabrochar outra biblioteca, em um prédio vistoso, inaugurado recentemente pela ministra da Cultura, Ana de Hollanda.
- As bibliotecas, comunitárias ou públicas, ajudam a combater a violência e o medo, elas trazem esperança - discursou a ministra, mencionando a experiência exitosa da Colômbia, cujo modelo inspirou a biblioteca-parque. Essas novas bibliotecas, além de livros, vídeos e internet, constituem um espaço de convivência, onde as pessoas se reúnem, se encontram, trocam informações e ampliam a dimensão do ato de ler.
Em todos os lugares do planeta, estão abrindo bibliotecas, umas mais severinas que outras, mas todas elas janelas de esperança. Menos no Amazonas, onde a Biblioteca Pública do Estado, que devia dar o exemplo, permanece fechada há mais de cinco anos. São quase 2 mil dias de desesperança, sem biblioteca. Imaginem se o principal banco de uma cidade ficasse fechado por cinco anos! Ou a catedral! Ou o shopping! Imaginem uma cidade com shopping, banco ou igreja fechados!
Agonia da biblioteca
Foi o que aconteceu em Manaus com a principal biblioteca, centenária, que nasceu antes do Oscar Niemeyer, em 1870, como sala de leitura de um liceu. Ela mudou depois pra igreja Matriz e, de lá, para um colégio, de onde saiu para uma casa alugada, até ser extinta em 1897. Ressurgiu num prédio próprio de estilo neoclássico, inaugurado em 1910, na Rua Barroso, com escadas e colunas importadas da Escócia, mármore, lustres de cristal e telhas da Inglaterra. Enfrentou um incêndio em 1945, perdeu todo seu acervo de 60 mil livros e renasceu das cinzas em 1947.
Resistiu a tudo: incêndio, inundação, saqueio, mudança de sede, corrupção e até mesmo aos 16 anos de Robério Braga como Secretário de Cultura, responsável pela vergonha que passei no IV Congresso Latino-Americano de Biblioteconomia e Documentação, realizado em 2008, em São Paulo, no Memorial da América Latina. É que na conferência que lá ministrei, me apresentei como amazonense. Veio, então, alguém com dados à mão, mostrando que no Amazonas, campeão da desesperança, 50% dos municípios não possuem biblioteca, sequer uma prateleira ou, pelo menos, livros amontoados numa palafita como na Favela do Bode.
O secretário de Cultura está se lixando para as bibliotecas. Num artigo publicado aqui, em 2008, intitulado 'Berinho e o flautista', informamos que naquele ano, a Secretaria de Cultura estava pagando 604,6 mil para hospedagens em hotéis e barcos de luxo aos convidados oficiais do Festival de Parintins, entre os quais algumas "celebridades" ex-BBB. Quem paga, na realidade, é o pobre contribuinte do Amazonas, que não tem uma palafita com livros dentro. Naquela ocasião, perguntamos: quantas bibliotecas poderiam ser construídas com essa grana?
De lá para cá, quase nada mudou. Agora, Berinho, o eterno secretário de Cultura, está tirando o loló da seringa. Disse que não pode tomar nenhuma providência. Denunciou seu colega da Secretaria de Infraestrutura como o responsável pelo não funcionamento da biblioteca. Ou seja, no Amazonas, biblioteca não é atribuição da Secretaria de Cultura, mas de engenheiros e construtoras.
A agonia da biblioteca pública vem se arrastando durante a gestão do Berinho na Secretaria de Cultura com diferentes governadores. Num artigo publicado em 1996, intitulado A Agonia da Biblioteca, que mereceu comentários do saudoso senador Jefferson Peres, dizíamos que era preciso deixar de lado divergências políticas, partidárias, ideológicas e pessoais e unir esforços para salvar a biblioteca. Fiel a esse compromisso, eu já estava disposto a fazer a minha parte e me prostrar, de joelhos, diante do governador Omar Aziz, que nem a Nina fez com a Carminha, implorando pela abertura. Fui salvo dessa humilhação pela Maré Amarela.
Abre Biblioteca
Maré Amarela ou Marea Amarilla nascida em Madrid inspirou o movimento "Abre Biblioteca", criado em maio do corrente ano, no Amazonas, que na última segunda-feira organizou uma passeata, com um abraço simbólico ao prédio da Rua Barroso, patrimônio estadual desde 1988. Os manifestantes já recolheram mais de 3.500 assinaturas num documento que será entregue ao governador do Amazonas, Omar Aziz. A Maré Amarela luta, na Espanha, contra corte de recursos para a manutenção dos espaços culturais.
Mas no Amazonas, os recursos existem e estão previstos no orçamento, acontece que não são usados de forma correta. A reforma, que devia durar apenas seis meses, recebeu aditivos ao contrato e se prolongou por mais de cinco anos, parece até a igreja da Praça XIV, cujo segredo era permanecer inconclusa para continuar arrecadando donativos dos fiéis. É suspeita uma reforma que custa mais, em tempo e dinheiro, do que custou a própria construção do prédio. O mais grave é que ainda não foi concluída.
Por isso, o "Abre Biblioteca" exige uma data para a reabertura da biblioteca. Este movimento surgiu com a união de quatro amigos, segundo a bibliotecária Soraia Magalhães, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM. Ela, que edita o Blog Caçadores de Bibliotecas, conta a reação ao fechamento da Biblioteca Estadual:
- Estudei e trabalhei por anos nela, para mim tem um valor sentimental e quero que outras crianças tenham a oportunidade que tive de obter conhecimento gratuitamente. Nós decidimos que precisávamos fazer alguma coisa e iniciamos a campanha com uma petição, que hoje já está circulando na internet, além da adesão de muitas pessoas no próprio facebook. O grupo Abre Biblioteca já conta com 3.674 pessoas que aderiram à causa.
A Biblioteca Estadual faz muita falta porque as escolas de Manaus não estão aparelhadas para atender aos alunos e ela acaba cumprindo também a função de biblioteca escolar, além de referencia para os pesquisadores que buscam consultar textos raros.
Luiz Milanesi, em seu livro "Ordenar para Desordenar", com o qual trabalho no curso de biblioteconomia da UNIRIO, afirma que qualquer biblioteca abriga sempre um conjunto de informações diversas e conflitantes e que aqui reside o seu aspecto democrático. Ao lado de um livro em defesa do capitalismo, por exemplo, é possível encontrar outro em defesa do socialismo.
Uma cidade sem biblioteca é um corpo sem alma, é um cadáver. Abre a Biblioteca, Omar!
Olhando a foto do abraço dado por mais de 100 manifestantes à Biblioteca Pública, o medo se dilui, a esperança cresce. Não é só uma biblioteca aberta que acende a luz no final do túnel: uma biblioteca, mesmo fechada, se abraçada, é como uma flor nascendo no mangue.
Ex-empregada doméstica já ajudou a formar mais de 12 bibliotecas comunitárias
AV Arnaldo Viana – ESTADO DE MINAS
postado em 20/07/2013 06:00 / atualizado em 20/07/2013 07:54
Há 37 anos, quando Vanilda de Jesus Pereira ainda não tinha 14, vir de Confins a BH era uma verdadeira viagem. Não havia essa de Linha Verde. Era quando ela deixava a casa dos pais, na cidade da região metropolitana, para trabalhar como doméstica na capital, onde nasceu.Tinha o primeiro grau (ensino fundamental) completo e, além do trabalho da casa, lia o jornal para a patroa e orientava a filha da mulher com os trabalhos de escola. Uma noite, depois de ajudar a criança a fazer o resumo de uma obra literária, levou o livro para ler no quartinho quente e apertado
“Por incrível que possa parecer o livro era Escrava Isaura.A obra, escrita pelo romancista mineiro Bernardo Guimarães (1825-1884), pertencia à biblioteca da casa. Mal Vanilda começou a leitura, a patroa apareceu, enfurecida “Com ordem de quem você pegou o meu livro?” Na mesma noite a demitiu e, se ainda estiver viva, não sabe o bem que fez a milhares de pessoas, além de mudar a vida daquela menina. Vanilda foi para a rodoviária. Não havia mais ônibus naquele dia para Confins e ela dormiu nos jardins do terminal
No dia seguinte, foi à Livraria Amadeu, o mais famoso sebo de BH, então na Galeria Ouvidor “Comprei dois livros, Escrava Isaura e Éramos Seis – este da escritora paulista Maria José Dupré (1898-1984). "O pai, lavrador, era evangélico e praticamente obrigava a filha a segui-lo na opção religiosa. “Ora, se eu pagava 10% do ganhava à Igreja, por que não gastar mais 10% com livros? Arrumei outro emprego e passei, então, a comprar dois livros por mês. Eu me tornei uma devoradora de literatura.”
Valnilda lia e emprestava a quem pedisse, sem esperar pela devolução. Deixou Confins e foi morar na pequena favela que havia no entorno do viaduto do Anel Rodoviário no Bairro São Francisco. Já com quatro filhos e solteira, sofreu um AVC “Não pude mais trabalhar como empregada. Então, pedi a um vizinho que adaptasse um pedaço de ferro afinado na ponta de um cabo de vassoura e fui para as ruas catar papelão para sustentar os filhos.”
Não era raro achar um ou outro bom livro no lixo. Um dia, no entanto, em uma calçada da Pampulha esbarrou em um monte de livros, entre os quais enciclopédias. “Perguntei ao morador mais próximo se era dele. Respondeu que era lixo mesmo, Lixo cultural, claro.O que dei conta, botei na cabeça. Mas apareceu um taxista solidário e ele me ajudou a levar todos aqueles volumes para a favela. "Os livros encheram o barraco. "Em cima da cama, debaixo do fogão, em todos os lugares e cuidei de etiquetar todos.”
Nasceu a primeira biblioteca formada por Valnilda e, ao contrário da daquela primeira patroa, ela abriu o acervo a toda a comunidade. Mas não era apenas livro o que Vanilda recolhia. Crianças sem pai, sem mãe e sem rumo também. “Com os meus quatro, posso dizer que tenho 48 filhos. ”Em todos os fins de ano, os meninos escreviam cartas pedindo brinquedos e roupas, que ela entregava a empresas. Por isso, sofreu a maior carga de preconceito, e da polícia.
“Havia várias pessoas com carros modernos estacionados na beira da favela. Eram empresários que foram fazer doações. Um carro da PM parou e os militares foram logo perguntando se era um sequestro”. De tanto acumular livros, doados, achados ou comprados, etiquetados e arrumados, Vanilda virou referência.A ajudou a criar bibliotecas nas cidades de Confins, São Joaquim de Bicas, São Francisco, Berilo, Nanuque, Salinas, Posto da Mata (BA), Monte Azul, Sabará, Mato Verde, entre outros, e nos bairros Cachoeirinha e Céu Azul, em BHNo São Francisco não há mais: a favela foi erradicada para obras da Avenida Antônio Carlos.
A mais nova biblioteca de Vanilda é no Bairro Paquetá, na Pampulha, onde mora. É uma casa humilde, com todos os cômodos tomados por prateleiras repletas de livros, a maioria doada Romancistas, poetas, pensadores, personagens de quadrinhos e tantos outros do universo da literatura convivem à espera de quem se interessa pelo conhecimento. A casa está sempre de portas abertas e Vanilda está a postos, solidária com quem precisa de ajuda, como marcar uma consulta no SUS, conseguir uma ambulância e até para um curativo de emergência.
Ela ganha a vida como cuidadora de idosos. É para os que não podem pagar pelo serviço ela faz um sopão, todos os fins de semanas, e distribui marmitasDoações de alimentos e obras literárias chegam a toda horaE nem é preciso chamá-laBasta deixar na porta“Quantas mulheres já tirei da prostituição, das drogasBasta você sorrir para alguém e terá a certeza de que Deus existe.E naquele mundo de livros, aparece Maria Eduarda, de 6 anos, filha de coração de Vanilda. É uma pequena devoradora de literatura infantil“Ler é muito bom”, diz com pose de quem sabe o que está falando. Ver link: Ex-empregada doméstica já ajudou a formar mais de 12 bibliotecas comunitárias - Gerais - Estado de Minas