Ao Jau, que ficou de fora e à Teca, que me colocou por dentro
Eles não sabem o que é a música da chuva no telhado, nunca adormeceram embalados por ela. Nunca ouviram, na hora da fome, o chiado do bife na frigideira. Desconhecem o latido do cachorro, o miado do gato, a buzina do carro, a voz das pessoas. É que eles não ouvem os sons cotidianos e triviais que os outros ouvem, nem mesmo aquilo que os outros falam. Por isso, muitas vezes, são discriminados e excluídos.
Na luta pela inclusão, eles conquistam, agora, o diploma de professor conferido pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em solenidade realizada nessa segunda-feira, 21 de fevereiro, em Manaus. É a primeira vez, na América Latina, que uma universidade oferece um curso prioritariamente a alunos surdos. A Licenciatura em Letras-Libras, organizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é ministrada para 500 alunos em parceria com oito instituições públicas de ensino superior do Ceará, Bahia, Brasília, Santa Maria (RS), Goiás, São Paulo e Amazonas.
Na UFAM, em Manaus, as aulas iniciaram no final de 2006, com 55 alunos aprovados no vestibular. Quatro anos depois, só a metade concluiu: são 27 formandos, dos quais 19 surdos e 8 ouvintes. A outra metade ficou no meio do caminho. Te convido, leitor (a) a assistir a formatura deles, imaginando o que vai acontecer nessa segunda-feira no auditório Joaquim Eulálio.
Na mesa, a reitora da UFAM, Márcia Perales, que preside a cerimônia, anuncia dentro de instantes o orador da turma, Sílvio Márcio Alencar. Ele esperou 41 anos por esse dia, por essa hora. Levanta-se e caminha ao microfone. Ao microfone? Não. Suas mãos não precisam disso. Ele vai romper o silêncio, fazendo um discurso em sua língua materna, a Libras – Língua Brasileira de Sinais – reconhecida oficialmente no Brasil desde 2005. Haverá tradução simultânea dessa língua visual-espacial para o português oral-auditivo.
Naquela fração de segundos entre o anúncio de seu nome e o início do discurso, um filme em flash back registrará, provavelmente, as histórias que Silvio e seus colegas viveram, ao longo da vida, condensadas ali, naquele instante em que derrotam a discriminação, o preconceito, a exclusão numa luta contra uma deficiência invisível com a qual a sociedade não está preparada para conviver.
A voz das mãos
Eles lembrarão situações em casa, no trabalho, na fila do banco, nas relações sociais, o calvário, algumas vezes, dos aniversários em família, onde nem sempre é possível rir das piadas contadas pelo tio bigodudo ou pela tia com dentadura, porque bigodes e próteses dentárias atrapalham a leitura labial. De repente, todo mundo ri. Eles, então, ou fingem que entenderam e forçam o riso, ou procuram se inteirar da piada, mas às vezes os familiares, sem paciência para explicar, demonstram irritação. É quando, quietos e silenciosos, ficam isolados num canto, mergulhados na solidão.
O orador, antes de começar seu discurso na solenidade de formatura, olha o auditório e se pergunta em quantas famílias ali presentes existem ouvintes que aprenderam a língua de sinais para se comunicar com eles. Ali, entre seus colegas, quase todos poderão registrar a dificuldade de amigos e parentes em lidar com a surdez, o que gera irritação e frustração dos dois lados pela dificuldade em manter um diálogo.
A comunicação entre ouvintes e surdos se faz, em geral, através de sinais caseiros improvisados e, sobretudo da língua falada, com os sons articulados pausadamente para facilitar a leitura labial. Mas tem sempre o namorado de uma prima, que nunca teve contato com um surdo, e que fala gritando, pensando que assim será ouvido. Diante do olhar de paisagem, acha que seu interlocutor é deficiente mental. Os surdos gostam de contar piadas gozando essas pessoas que não entendem o que é a cultura surda.
Mas as relações não são apenas de incompreensão e discriminação. O orador e seus colegas lembrarão, ainda, o outro lado da moeda: o amor e a solidariedade de mães, pais, irmãos que conseguem se colocar na pele deles, que nem a vovó na novena, às terças-feiras, indicando-lhe discretamente que o hino cantado nesse momento pelos fiéis é o “Virgem mãe Apareciiiii-ida” e não o “Viva Mãe de Deus e nó-ossa”, salvando-lhe de pagar um mico.
Dos preconceitos, todo mundo ali, no auditório, aprendeu a se defender e a administrar situações embaraçosas, criando estratégias para sobreviver dentro de uma cultura sonora. Certa cadela de estimação chamada Daiana e certo gato de nome Leon aprenderam a Língua de Sinais. Daiana balança o rabo, feliz, diante da sinalização de ‘passeio’ ou “fazer xixi”. Leon ronrona com o sinal de “comer”. Quem ensina libras pra cachorros e gatos, certamente terá sucesso com seres humanos. É o que eles, professores diplomados de Libras, vão fazer.
Ensinando Libras
Vamos ouvir o discurso do orador. Ele está dizendo, agora, que o diploma que os 27 professores receberão foi conquistado com esforço e dedicação, num curso muito puxado, organizado com o objetivo de possibilitar o domínio em Libras e de privilegiar as formas de ensinar e aprender dos surdos. Esses professores licenciados vão se inserir no mercado de trabalho, ensinando o curso básico de Libras para alunos, tanto surdos como ouvintes, mas contribuirão também na formação de fonoaudiólogos e professores universitários.
A Licenciatura em Letras-Libras criou um ambiente virtual de aprendizagem, com as ferramentas necessárias para disponibilizar os conteúdos em Língua de Sinais, como o “hiperlivro”, que coloca textos em Libras nas mãos de alunos de todo o país, além de recursos de videoconferência, DVD-Vídeo, material impresso, usando a modalidade do ensino à distância.
O orador certamente agradecerá à coordenadora do curso na UFAM, Nídia Sá, e às professoras da UFSC Roseli Zen, Ronice Muller e Heloísa Barbosa, responsáveis pela elaboração do projeto pedagógico do curso e de seu currículo, que funciona integralmente na Língua Brasileira de Sinais. Essa é uma forma de garantir que o aluno surdo construa seu processo de aprendizagem, sem necessariamente depender do domínio da Língua Portuguesa, permitindo o acesso ao conhecimento em sua própria língua e, em consequência, o exercício à cidadania.
Não sei se o orador vai dizer, mas eu digo: nesses quatro anos de duração do curso surgiram muitos problemas. A troca de tutores cuja função é tirar as dúvidas dos alunos e corrigir provas, a falta de entrosamento com outros alunos de outros cursos da UFAM, uma vez que as aulas ocorreram sempre aos sábados. De qualquer forma, o orador e seus colegas reconhecem os momentos de aprendizagem, de descontração e de alegria e demonstram contentamento por concluir um curso superior em sua língua materna.
Depois do histórico do curso, o orador fará uma homenagem a Tatiana Monteiro, a primeira surda aprovada no concurso para professor da Ufam. Registrará, talvez, um dado triste: essa é a única turma formada no Amazonas, porque a UFAM se retira do projeto e não abrirá outras turmas para surdos, frustrando uma grande demanda no mundo dos surdos e dos ouvintes.
1(Ver "Ninguém mais será Jau" - http://www.taquiprati.com.br/cronica/16-ninguem-mais-sera-jau
2) https://www.taquiprati.com.br/cronica/1640-os-surdos-o-carnaval-e-as-milicias-digitais
3) https://www.taquiprati.com.br/cronica/906-carnaval-tamborim-surdo-cabeca-ruim-pe-doente
4) https://www.taquiprati.com.br/cronica/1629-dona-elisa-e-o-dialogo-de-surdos-na-ucr
Abaixo o poema e o discurso feito pela profa. Nídia Regina Sá.
DISCURSO PARA A FORMATURA DO CURSO LETRAS/LIBRAS – UFAM – TURMA 2006
Profa. Nídia Regina Sá
21 de fevereiro de 2011
Vou começar este discurso fazendo uma grande maldade com o (a) intérprete!
Começarei lendo um poema que escrevi há muito tempo, quando minha filha era pequenininha...
Eu não sou poeta, mas, certa vez escrevi um poema... o meu primeiro poema.
Escrevi para minha filha. Ela está aqui na platéia, e talvez esta seja a grande oportunidade para que ela entenda melhor o que eu queria dizer quando o escrevi, pois, como eu não sou profunda conhecedora da LIBRAS, minha escrita em Língua Portuguesa talvez não alcance a minha filha, nem aos demais surdos, como eu gostaria de alcançasse... mas, com o trabalho do intérprete, o poema em LIBRAS ficará mais claro, mais tocante para eles.
Portanto, intérprete, desculpe a maldade, mas preciso de seus serviços nesta hora! E, por favor, observem como o trabalho de um intérprete de LIBRAS é necessário e altamenbte profissional!
Vamos ao poema:
Quisera traduzir o que dizes
Com teu jeitinho matreiro.
Quisera entender o que falas
Quando de mim tu esperas
Uma boa explicação.
Quisera entender o teu gesto,
Esse sinal tão simpático,
Dessas mãozinhas pequenas,
Dessa expressão tão profunda,
Que do coração pequenino
Falam de grande intenção.
Quisera gravar meu caminho
Para que no futuro tu visses
De onde parti e onde cheguei,
Mas, destacar as certezas
Que a vida, enfim, me mostrou.
Quisera transmitir minhá fé
Para que juntas possamos
Chegar ao “Mais que Perfeito”.
Poder te falar
Quisera, meu Deus, quem dera!
E a mim me ocorre (pudera!):
Quando entenderá meu “Quisera”?
Desde que minha filha surda era muito pequena, esta sempre foi a minha preocupação: quando ela poderá entender o que eu estou tentando lhe falar? Quando poderemos efetivamente” conversar”? Eu falando de cá, e ela respondendo de lá, em perfeita sintonia...
Eu pensava: minha língua é tão difícil! São tantas as palavras, são tantos os verbos... O que vai acontecer conosco, meu Deus? Eu não aceitava que não houvesse plena comunicação! Estava disposta a me esforçar bastante para quebrar a barreira da comunicação. Inicialmente comecei no Oralismo, mas, quando ela tinha seis anos de idade, a Língua de Sinais entrou nas nossas vidas e tudo ficou muito mais fácil!
Quando eu era criança, meu pai fez um lindo poema, usando todos os verbos no “Mais que Perfeito”: Quisera, pudera, aparecera, sumira...
Achei aquele poema muito lindo! Pensei: como meu pai é inteligente! Como ele escreve bonito! Um dia eu vou escrever como ele!
Quando comecei a escrever este primeiro poema, de lá de dentro veio a vontade de escrever como meu pai, de usar os verbos que ele usava, de escrever do jeito mais difícil, para marcar mesmo o tamanho do caminho se precisa caminhar até que um surdo entenda a Língua Portuguesa tão bem como um ouvinte.
Este caminho é muito longo! Precisamos de muito estudo, de muita pesquisa, de muito trabalho sério!
Precisamos de muita colaboração entre surdos e ouvintes para que tanto eles entendam a nossa língua como para que nós entendamos a língua deles! Exige troca, muita troca. Exige respeito, muito respeito! Exige dedicação, muita dedicação (trabalho). Exige trabalho profissional e competência técnica!
Este curso de Letras/LIBRAS surgiu para encurtar este caminho.
O curso de Letras/LIBRAS foi criado para que, principalmente os surdos, aprendam a estudar e a pesquisar sua própria língua. Aprendam a amar e a defender a sua língua e a sua escola. Para que aprendam a valorizar e a lutar pela Educação.
Certamente 100% dos graduandos do curso não sairão plenamente bilíngües, no sentido de conhecerem profundamente tanto a LIBRAS como a Língua Portuguesa, mas, devo lembrá-los que também não é 100% dos ouvintes que são conhecedores da LIBRAS, e, para dizer a verdade, nem todos os ouvintes sabem conjugar o “Mais que Perfeito”!
O que quero frisar é que bilingüismo perfeito não existe, ou seja: 50% para uma língua, 50% para outra. Somos, todos, pessoas que carregam marcas de nossas histórias e das experiências que vamos vivenciando ao longo da vida – com isto privilegiamos nossa língua materna: aquela que nos toca profundamente e que nos dá conforto quando a usamos. Aqueles que têm o poder de planejar processos educacionais têm a obrigação de saber isto: que não podem obrigar uma pessoa a participar do processo educacional em outra língua que não seja a sua língua materna – como desde 1957 já declarava a UNESCO.
Temos aqui uma turma de pessoas surdas e de pessoas ouvintes; temos aqui pessoas muito diferentes, com potenciais diferentes, com histórias diferentes e com futuros diferentes.
O que espero é que todos que estão aqui hoje, ao se encontrarem com estes profissionais da LIBRAS em seus caminhos, seja profissionalmente, seja em sua vidas privadas, possam entender que por trás de cada um existe uma pessoa plena, completa. Os surdos não são “erros de fabricação”. Eles foram feitos pelo Criador como surdos – é assim que eu creio. Certamente Deus ama os surdos e também se comunica nas línguas de sinais!
Não podemos, portanto, fazer menos que isto: colaborar com a comunidade surda na difusão, na pesquisa e no ensino da Língua de Sinais... Colaborar com a comunidade surda na luta pela garantia de uma educação significativa para os surdos. Somos partícipes desta luta e esta parceria entre UFSC e UFAM certamente vai ficar na história como uma iniciativa que deu certo.
Compete a nós, da UFAM, agradecer à UFSC e ao MEC pelo investimento na formação destes profissionais, e prometer que continuaremos nesta luta. Infelizmente não temos outras turmas com esta mesma parceria, mas, haveremos de inventar outras formas para não deixar esta iniciativa morrer.
A UFAM está convocada a colaborar na luta pela causa surda!
Obrigada, Magnífica Reitora Márcia por já se declarar partícipe conosco nesta luta! Contamos com você e com todos vocês!