CRÔNICAS

O vermelho e o negro: as armas e as letras

Em: 24 de Julho de 2022 Visualizações: 3709
O vermelho e o negro: as armas e as letras

Stendhal atravessou a praça da Bandeira Branca, dobrou à direita no Beco da Bosta, pulou uma poça de lama e, antes de entrar na casa da dona Elisa, cumprimentou a Leonor e o Agmar que, sentados na calçada, lamentavam a perseguição ao governador eleito e cassado Plínio Coelho. Seu substituto, Arthur Reis, nomeado pelo ditador Mal. Castelo Branco, teria empastelado o jornal O Trabalhista, que teve sua redação atacada a tiros.  

- Epa! Pera lá! Como é que o escritor francês, morto em 1842, podia perambular pelas ruas do bairro de Aparecida, que nem existia no séc. XIX? Conta outra – diz o desocupado leitor. Pois é, mas aconteceu mesmo. Em 1965. E não era assombração, nem reencarnação kardecista. Foi assim. Antes de tudo, esclareço que Stendhal continua vivinho da silva. Não fisicamente, mas em seus livros, um deles foi que adentrou na casa da dona Elisa.

Bem que o general Justino Bastos, comandante do III Exército, tentou exterminar o escritor numa fogueira pública em Porto Alegre, queimando O vermelho e o negro, que o militar não leu, mas pelo título concluiu ser “propaganda comunista da crioulada”. O fato repercutiu dentro e fora do país. Sem querer, o general brucutu fez propaganda do exemplar devorado pelo fogo e despertou em nós a vontade de lê-lo.

Escrito em 1827, não há qualquer elogio ao comunismo em O vermelho e o negro. Uma pena. De qualquer forma, emprestado da biblioteca do doutor Djalma Batista, pai de um colega, Stendhal saiu de lá bem escondido no sovaco deste filho da dona Elisa. Por que lembrar disso agora? Em razão de dois eventos recentes, um no Brasil, que glorificou as armas, o outro na TV Francesa, que enalteceu as letras.  

O tiro no livro

No nosso país, o Coiso comemorou o aumento de 168% dos clubes de tiro e das lojas de armas em seu governo, período em que foram fechadas quase 800 bibliotecas públicas. “Se o Lula ganhar a eleição, clube de tiro vai virar biblioteca pública” – ameaçou numa live a seus eleitores (al)armados. O tiro, porém, saiu pela culatra. Alguns indecisos entre 1 milhão de visitantes da 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, quando ouviram isso, declararam o voto em Lula.  O general Justino fez escola.

Enquanto o Coiso sem saber incitava a cantar Lula-lá, a TV5 Monde, acessada no canal 204 da Net, exibia na última terça (19) a despedida de François Busnel, jornalista e crítico literário, que desde 2008 comandava o programa “La Grande Librairie” centrado no livro, no leitor e no debate da leitura literária. Busnel chegou a ter 946.000 telespectadores. Cada semana, em horário nobre, com duração de 90 minutos, entrevistava autores como Barack Obama, que escreveu três livros, entre eles Uma Terra Prometida.

Esse programa de TV é herdeiro de outro igualmente apaixonante – Apostrophes – dirigido por Bernard Pivot, que era seguido religiosamente por brasileiros na França: os exilados e os estudantes bolsistas. Escritores franceses e estrangeiros, consagrados ou não, falavam debatiam seus livros e no dia seguinte as livrarias eram invadidas por leitores para adquiri-los, incluindo obras clássicas de autores já falecidos, porque havia programas dedicados aos que marcaram época.  

No Brasil, criado por Edney Silvestre, o Globo News Literatura também apresentava novidades literárias e entrevistava profissionais do mundo editorial, além de cobrir eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Sem a mesma audiência da TV Francesa, num país onde clube de tiros disputa espaço com a biblioteca, saiu do ar há cinco anos para ressurgir em nova temporada com os clubes de leitura. Mas quem hoje, ocupado com as redes sociais, se interessa por Stendhal? 

Mania de ler

Por falar nele e voltando à vaca fria, afinal qual o enredo de O vermelho e o negro proibido pela ditadura e devorado vorazmente pelo filho da dona Elisa deitado em sua rede?

O romance conta a história de Julien Sorel, filho caçula do dono de uma serraria nos arredores de Besançon, na França. Localizada num galpão à beira do rio Doubs, a serraria tinha uma roda movida a água, que fazia a serra subir e descer, enquanto um mecanismo empurrava contra ela a tora de madeira para transformá-la em tábua. Julien, de 18 anos, que devia vigiar seu funcionamento, saiu do seu posto de trabalho para poder ler um livro escondido no alto de uma viga. Na França, só a Mme. Foucher lê na rede.

O velho Sorel, analfabeto, odiava essa mania de ler. De longe, avistou o filho e gritou várias vezes o nome do rapaz que, tão concentrado na leitura, nada escutou, sonhava com outros mundos, quando sentiu o soco violento do pai, que fez o livro voar e cair no riacho. O segundo soco no meio dos cornos ensanguentou Julien, que voltou ao seu posto de trabalho, chorando inconsolável com a perda do livro que adorava.

Quando leu O vermelho e o negro em Manaus, o filho da dona Elisa ignorava a realidade histórica, social e política da França no período da Restauração pós-napoleônica, mas como é fofoqueiro acompanhou o personagem, suas paixões, o adultério com Mme. Rênal e depois com Mathilde, filha do seu patrão, que engravidou. No final, Julien disparou um tiro na ex amante dentro da igreja durante a missa e foi condenado à morte.  Só muitos anos depois, o filho da dona Elisa viu a versão cinematográfica de Claude Autant-Lara.

No entanto, o que interessa aqui são as reflexões sobre o ato de ler, que resumem essa luta entre a serraria e o livro, ou mais precisamente entre os clubes de tiro e as bibliotecas. A Familícia dos Zeros não lê e não quer que os brasileiros tenham acesso à literatura, que humaniza e ilumina. Enquanto isenta de impostos a importação de armas, propõe aumentar os tributos sobre os livros, cuja leitura foi trocada por postagens nas redes sociais.

No inferno  

Foi a vontade de reler Stendhal, que me fez dar um tempo nos grupos de WhatsApp, onde a gente consome informação diversificada e acaba se afogando em um mar picotado de textos fragmentados. Os viciados nas redes sociais, que consomem diariamente muitas horas nessa excitação febril, já não dedicam mais tempo à leitura literária, que é a forma mais sublime de leitura. A situação se agrava com a apologia às armas e a extinção de bibliotecas.

Miguel de Cervantes, no cap. 38 do Dom Quixote - romance que deu outra direção a esse gênero literário - coloca na boca do cavalheiro de La Mancha um discurso sobre as armas e as letras, aqui resumido em tradução livre:

“Benditos os séculos que não conheceram as fúrias assustadoras dessas demoníacas armas de fogo, cujo inventor deve estar no inferno como prêmio por sua diabólica invenção, capaz de permitir que um braço covarde e infame, em um segundo, mate um inocente com uma bala disparada, que corta e acaba a vida de quem merecia gozá-la”.

Parece uma crônica sobre as matanças diárias de negros e pobres nas favelas do Rio. O lugar no inferno do diabólico inventor de armas será certamente compartilhado pelos covardes facilitadores de sua importação, produção e distribuição no Brasil, responsável pela tragédia que enluta a família brasileira nesses tempos bicudos

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13 Comentário(s)

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Anne-Marie Milon Oliveira (via FB) comentou:
30/07/2022
Durante a Divina Redentora o exército prendeu, no seminário de Olinda, uma perigosa obra subversiva cujo título já dizia tudo: "Revolução na Cibernética". Se Bolsonaro ganhar, com certeza, mais bibliotecas serão depuradas. As que ficarem vazias serão convertidas em clubes de tiro, para o bem da Nação.
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Soraia Magalhães comentou:
27/07/2022
José Bessa como sempre excelente e criativa crônica. Tenho esperança na retomada dos planos de cultura, onde as bibliotecas públicas estavam em pauta. A retirada desse traste e sua legião de ignorantes são fundamentais para a retomada das politicas públicas da cultura leitora do Brasil. Genial Stendhal na Aparecida. Os livros possuem muitas vidas e as bibliotecas são suas moradas.
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Diário do Amazonas d24 comentou:
26/07/2022
Versão Impressa publicada em D24Am https://d24am.com/colunas/taquiprati/o-vermelho-e-o-negro-as-armas-e-as-letras/
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Serafim Correa comentou:
26/07/2022
Publicado no Blog do Sarafa - https://www.blogdosarafa.com.br/o-vermelho-e-o-negro-as-armas-e-as-letras/
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Tania Pacheco comentou:
26/07/2022
Publicado em COMBATE - RACISMO AMBIENTAL. https://racismoambiental.net.br/2022/07/24/o-vermelho-e-o-negro-as-armas-e-as-letras-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Matias Lima (via FB) comentou:
25/07/2022
Misturar Stendhal com o bairro de Aparecida deu uma boa farofa.
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JOSÉ da Silva SERÁFICO de Assis José Seráfico comentou:
25/07/2022
Tão necessário quanto preciso esse texto.,amigo Babä.
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Wilmar DAngelis comentou:
25/07/2022
Caro Bessa, parabéns pela crônica (não te mando os parabéns a cada uma porque senão eu não faria outra coisa). Mas estou aproveitando a deixa para te contar e indicar um episódio de desenho infantil (você tem neta, então sabe alguma coisa disso). Há poucos dias, procurando um desenho na Netflix para ver com meu neto caçula (Gonçalo, de 4 anos), passamos pelo cartaz do Ben 10. Eu sabia do personagem, inclusive porque já brinquei de Ben 10, orientado pelo neto de 5 anos, mas nunca tinha assistido o desenho. Calhou de assistirmos (pasme!) o episódio "Vote no Zombozo" (isso mesmo, não exatamente o Bozo, mas o Zombozo). Descobri na internet que o episódio 7 da Temporada 2 em português foi lançado no Brasil (e nos EUA) em 2018 ! Assista, você vai se divertir. E recomende aos seus leitores. Ali o nosso herói Ben 10 (com seu avô e sua irmã) enfrentam Zombozo que está em campanha pelo interior do país. Zombozo tem uma máquina de iludir/alienar pessoas (fake news no whatsapp??), mas também lança mão de distribuição de botons, camisetas e bonés (hoje atualizado para pacote de benesses eleitorais). Enquanto ele faz isso, e Gwen tenta que Zombozo entre em um debate de ideias, o avô tenta destruir a máquina hipnótica e, ao mesmo tempo, nosso herói Ben 10 (agora transformado no "4 braços") se enfrenta com o Centrão que está rapelando o dinheiro do banco. A parte menos plausível é que Ben 10 faz o pessoal do Centrão refletir e concluir que estão sendo apenas usados pelo Zombozo, que eles mesmos não ganham nada com isso. O que me leva a concluir que não era mesmo o Centrão. Enfim, quando Zombozo resolve entrar no debate, ele leva para o lado da violência física. Desculpe o alongamento da coisa. Pensei só em te motivar mais para tirar um tempinho buscando assistir isso. Um abraço Wilmar
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Anne-Marie Milon Oliveira (via FB) comentou:
25/07/2022
Um programa de tv excelente. Lamento ter perdido. E depois vão dizer que nossos militares carecem de perspicácia! Lembrei também de um livro subversivo confiscado do seminário de Olinda naqueles anos. O titulo: "Revolução na cibernética" não podia deixar margem a dúvidas!
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Nilda Alves comentou:
24/07/2022
Querido amigo, sua lembrança dos programas de livro na França (que eu assistia quando estava na França e assistia aqui pela TV5 - estava fora do Rio nestas duas últimas semanas em lugar onde não tinha a NET, e soube por aqui que a Grande Librairie acabou - fiquei muito triste.).Enfim... Mas, o mais importante da sua crônica foi lembrar - e permitir ficar registrado - o 1 milhão de pessoas presentes na Bienal do livro em S. Paulo. Ainda há esperança...o que eu, eleitora no Rio, sinto fugir do coração em relação a outubro próximo e sua eleição local. Grande abraço Nilda Alves
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Rodrigo Martins comentou:
23/07/2022
Mais livros e menos armas. Realmente professor, as redes sociais nos consomem muito tempo e esquecemos as vezes dos prazeres simples da vida (e a leitura de um bom livro é uma delas) Temos a chance de mudar esse triste panonarama atual e vamos mudar, falta pouco, outubro é logo ali. Por falar em leitura, no próximo dia 28/07 às 10h00 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/UERJ) ocorrerá a defesa de tese do aluno André Luiz Sant’Anna. Título: Casa do Índio: uma narrativa sobre o controle psicossocial de indígenas na ditadura empresarial-militar O banca avaliadora será composta por: Drª Ana Maria Jacó-Vilela (uerj), Dr. Alexandre de Carvalho Castro (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca),Drª Joana D’Arc Fernandes Ferraz (Universidade Federal Fluminense), Dr. Pedro Gabriel Godinho Delgado e pelo Dr. José Ribamar Bessa Freire (UERJ/UNIRIO) Não percam! Um abraço querido professor.
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Valter Xeu comentou:
23/07/2022
Publicado em PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/o-vermelho-e-o-negro-as-armas-e-as-letras/
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
23/07/2022
Além das bibliotecas fechadas, esta semana leu-se a notícia que a Unisinos, Universidade em São Leopoldo, no RS, encerrou os cursos de mestrado na área de humanas e compensou (sic) isso abrindo um mestrado financiado pela Taurus, a maior fabricante de pistolas e revólveres do mundo (já visitada pelo Cramunhão, que ganhou um trezoitão de presente...). E a universidade é mantida nada mais nada menos pela famosa SOCIETAS IESU, conhecida no vernáculo como Socieda de Jesus. Sim, os Jesuítas fecham os cursos de humanas e abrem um mestrado para aperfeiçoar os processos do fabricantye de armas. Note-ser que o Papa Francisco é jesuíta. Não sei se soube da façanha de seus irmãos em Cristo, ora bolas. De passagem... algumas seitas evangélicas pregam as bondades do Sair Salnorabo e colocam os templos à disposição de sua campanha. Pergunto, dá pra tocar um pelo outro? Vai ver que o revólver (ou pistola), que o pastor presbiteriano Milton péssimo ministro da deseducação disparou no aeroporto de Brasília também foi presente da Taurus. E la nave va...
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