"A memória é uma ilha de edição"
(Waly Salomão)
Quem foi a primeira amazonense que usou uma garrafa térmica? Se essa pergunta cair numa prova do vestibular, marque com um “x” a resposta certa: Cleomar dos Anjos Feitosa. Isso mesmo! Foi a Cleomar. Ninguém me contou. Eu vi. Não apenas vi. Usufrui. Aconteceu num dia qualquer de outubro de 1955, num piquenique no balneário das Pedreiras, no igarapé do Mindu, em Manaus. Era uma garrafa cinzenta, de um litro, marca Alladin, made in USA, recém trazida dos Estados Unidos pelo padre redentorista Thomé Morrissey.
Consciente do momento histórico que vivia, Cleomar ergueu o recipiente térmico como um troféu, num gesto que Bellini faria anos depois com a taça Jules Rimet. Sua mão direita ligeiramente aberta deixou o dedo mindinho flutuando no ar, exibindo uma unha pintada de vermelho vivo. Confesso que jamais presenciei nada tão chique em minha vida. Diante de um público embasbacado, ela desenroscou a tampa de rolha de cortiça, serviu um suco de taperebá que eu, menino de oito anos, bebi, e declarou à posteridade:
- É impressionante! Conserva o café quente e o suco gelado. O que é quente fica quente, o que é frio, fica frio.
Parece banal, mas não é. O Brasil, até então, não produzia garrafa térmica e ninguém sabia que diabo era aquilo. Era novidade, raridade. Seu uso constituía prova de refinamento e sofisticação. Nonato Garcia em sua coluna social Nogar Tudo Vê Tudo Informa chegou a registrar a existência de algumas delas, importadas, em várias mansões manauaras. A geladeira Gelomatic gelava, o fogão Rey esquentava, mas uma geringonça portátil que tinha a dupla função, só mesmo vendo pra crer. Tinha de ser coisa dos States. Era a modernidade nos tocando de perto.
A modernidade
Nem sei se a própria protagonista lembra o fato. Mas eu lembro inclusive a data por causa de duas mulheres – uma miss e uma cantora - para quem o ano de 1955 foi decisivo. Acontece que nesse dia, nas Pedreiras, todo mundo só falava da renhida disputa na qual Anette Stone fora eleita Miss Amazonas, derrotando sua rival Auxiliadora Câmara. Além disso, as irmãs Feitosa passaram o piquenique cantando músicas da Carmen Miranda, falecida em agosto daquele ano, duas delas inesquecíveis. Uma era:
- Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim.
A outra:
- Kalu, Kalu, tira o verde desses óio de riba deu.
Portanto, indubitavelmente, o ano foi 1955. Quanto ao mês era, indubitavelmente, outubro, mês das missões, quando o pessoal da Quermesse de Aparecida realizava seu piquenique anual. O uso duas vezes de “indubitavelmente” é para não deixar qualquer dúvida aos incrédulos. Testemunharam o fato: Jiddu Rebouças, Rosa Magaly, Angélica Arruda, Maria Arnaud, Odaísa Braga, Amazonina, Graciema, Georgina, Edina Soares, Lili Azevedo e Glória Nogueira, entre outros. Alguns estão vivos e não me deixam mentir. Ou deixam?
Mas por que agora estou lembrando essa história? Porque nessa terça-feira, 28 de dezembro, uma das protagonistas – Maria da Glória Queiroz Nogueira – completa 80 anos. Amanhã, dia 27, às 19h30 haverá uma missa na Igreja de Aparecida e na terça-feira uma recepção no Elegance Festas e Convenções, na Rua Salvador, em Adrianópolis. E essa história serve para ilustrar as relações da Glória com os amigos, com os vizinhos e com a modernidade.
Glória é Glória e seus amigos. Com eles teceu relações sólidas de afeto. No livro de poesia de sua autoria que será lançado no aniversário, ela canta esses amigos. Lá estão, entre outros, dona Rosa Feitosa e as filhas – Lucimar, Dagmar, Cleomar e Dulcimar. No dia de Natal – lembra Glória – depois da missa do galo elas desciam a Xavier e entravam no Beco da Indústria cantando pelas ruas, sempre cantando, músicas natalinas, “unidos na mesma fé, o natal comemorando”. Era um espetáculo mágico de alegria e confraternização. Cleomar, que é lembrada aqui carinhosamente, continua atuando ainda hoje com seu coral de mil vozes.
Netos e bisnetos
Mas Glória é também Glória e seus filhos, Glória e seus netos, Glória e seus bisnetos. Sem eles, não seria Glória. Quantos são? Segundo o último recenseamento do IBGE, Glória teve 19 filhos dos quais 16 foram gerados no seu ventre e três adotados, sendo doze mulheres e sete homens. Com exceção de uma falecida, todos casaram, tiverem filhos e deram-lhe 50 netos e 12 bisnetos. Vários deles estão presentes também no livro.
O livro começa com uma declaração de amor a Brígido Nogueira, um alfaiate de Santarém que migrou pra Manaus, com quem Glória se casou em 1951. Construíram uma família modesta, que conseguiu com muito esforço educar seus filhos, todos com curso universitário. Um deles, Cláudio, que estudou no Japão e no Canadá, onde Glória foi visitá-lo - ela fez muitas viagens internacionais - conta como isso foi possivel, num texto em que se dirige aos próprios pais:
- “Com vocês aprendemos a lutar, a competir, mas de forma honesta, nos ensinaram muitas outras coisas, que para alguns são virtudes, mas aprendemos que são obrigações. Não ensinaram ninguém a ser “esperto” e “nem a se dar bem”, mas que é necessário esforço, estudo e dedicação para obtermos o que almejamos. De vocês, herdamos o que é mais importante, a fé em Cristo Jesus”.
O depoimento de uma das netas merece o registro aqui. Neyla, que deu duas bisnetas a Glória, ficou surpresa num encontro recente com a avó que se preparava para a festa de 80 anos: “Minha avó nunca usou adornos de nenhum tipo, nem batom, nem qualquer outro tipo de maquiagem, mas na quinta-feira passada quando fui almoçar com ela tomei um baita susto!!! A ‘velhinha’ tinha acabado de furar a orelha!! E quando manifestei surpresa, ela respondeu que a ocasião pedia, pois já que não tinha tido festa de 15 anos, a festa dos 80 anos seria seu début e ela precisava estar à altura”.
É isso aí. Não foi só a garrafa térmica. Glória assistiu a chegada da modernidade: panela de pressão, geladeira, fogão a gás, máquina de lavar roupa – presente de sua irmã Cleonice - rádio, TV, celular, internet. Sempre atenta, nunca escancarou as portas ao consumismo, mas sempre deixou janelas abertas para se renovar. Adotou a modernidade, mas não permitiu que ela esfarinhasse as relações humanas, a vida familiar, matando o que ela tem de consistente. Sempre soube combinar modernidade e tradição. Se duvidar, ela ainda entra no face-book e arranja seguidores no twitter.
Numa vida, cabem vários 15 anos. Na terça-feira, dia 28, Maria da Glória Queiroz Nogueira, muito amada pelos seus, estará debutando, celebrando num só aniversário, vários rituais de quinze anos. Esse escriba que ainda guarda na memória o gosto daquele suco gelado de taperebá, em nome dos 17 irmãos, rende aqui homenagem e admiração à Glória, não só à irmã mais velha, mas à mulher bonita, cheia de graça e sabedoria, de olhos vivos, lúcidos e inteligentes, que com a heroicidade anônima do cotidiano construiu um patrimônio ético no meio de tantas adversidades.
P.S. Postado em 31 de dezembro de 2017: Há alguns meses, num telefonema para Glória, ela me disse: "Te envio mensagem pelo whatsapp". Fiquei com vergonha de confessar que não sabia mexer naquela geringonça que ela usava com tanta desenvoltura. Não tive jeito. Tomei aulas particulares com minha filha e passei a zapzapear. Devo isso a ela.