"Hic culum cotiae sibilare", disse Cícero, ou em bom português, é aqui que o fiofó da cotia assovia
(Anônimo, sabedoria popular)
Uma bomba explodiu sobre Manaus, abrindo uma cratera no centro da cidade e uma ferida no coração dos amazonenses. Poucas pessoas perceberam a dimensão dos estragos, porque a bomba, em vez de pólvora, estava recheada de latim.
A Construtora Colmeia Ltda (aliás, bem limitadinha) impinimou de construir um edifício comercial de 21 andares na Rua 24 de Maio, num terreno entre a Eduardo Ribeiro e a Joaquim Sarmento.
O Conselho de Zoneamento da Prefeitura, fazendo jus ao seu nome, se reuniu em setembro de 1989 e zoneou mesmo: aprovou correndinho o projeto da Colmeia e concedeu a licença de construção, sem ao menos ouvir o órgão federal responsável pelo patrimônio histórico. Estranho! Muito estranho!
A Curadoria do Meio Ambiente do Ministério Público – que defendeu os interesses da população – pediu a paralisação da obra. O juiz, justo, concedeu a liminar. A Colmeia, no entanto, conseguiu derrubá-la e recomeçou a cavar o buraco.
Então, a Curadoria entrou com ação civil pública ambiental contra a Colmeia e a Prefeitura de Manaus, baseando-se nas leis vigentes e no laudo técnico da arquiteta Ana Lúcia Nascentes da Silva Abrahim. Ai, né, os advogados da Colmeia gastaram todo o seu latinorum para impressionar o juiz. Juiz adora latinorum.
Eu li o processo inteirinho. Está uma gra-ci-nha, como diria Hebe Camargo, rilhando suas dentaduras. Vamos ver os argumentos das partes, leitor (a). Hoje, o juiz é você. Você decide quem tem razão, aproveitando que nesse momento os magistrados amazonenses estão em greve pela autonomia financeira do Judiciário.
O laudo
Se Miami pode, por que a Colmeia não pode construir um edifício de 21 andares no centro de Manaus? Esse é o “argumento” da empresa, esquecendo que Miami não tem um Teatro Amazonas. Segundo o laudo técnico da arquiteta Ana Lúcia, o terreno fica no entorno do Teatro Amazonas, patrimônio tombado pelo Governo Federal. E a lei diz que não se pode construir monstrengos nas vizinhanças de coisa tombada, que impeça sua visibilidade.
O laudo é contundente. Mostra como as medidas de proteção ao entorno do Teatro Amazonas só foram definidas em 1984, depois que alguns monstrengos já haviam sido construídos, como é o caso do edifício-torre Maximino Correa. Prova que a Prefeitura não podia conceder a licença: o máximo permitido era um prédio de seis andares. E estraçalha o parecer fajuto do diretor técnico da Empresa Municipal de Urbanização (URBAM), Mário Toledo, « farto de falsos critérios e tecnicamente superficial ».
Fumo do Boni
Sem argumentos, você quer saber como a Colmeia reagiu? Partiu para o ataque pessoal com um tremendo latinorum, que nem os notáveis latinistas professor Agenorum e padre Nonatorum, juntos, conseguem traduzir. Ai vai uma pequena amostra.
A Colmeia jura que não houve prova cabal da existência do fumus boni juris e do periculum in mora, você entendeu? Diz que se a Prefeitura concedeu a licença, não cabe nenhuma discussão, porque nulla nullitas sine lege, você compreendeu? Sapeca um inaudita altera pars e, em função disso, exige isonomia de tratamento, isto é, se outros puderam esculhambar a cidade, construindo monstrengos, a Colmeia também tem o direito de fazê-lo. E é ai que mora o perigo ou, como dizem os advogados da empresa, periculum in mora.
Como se fosse pouco, a Colmeia pede socorro a um jurista creio que italiano – um tal de Carnelutti – a quem cita para afirmar que a arquiteta Ana Lúcia Abrahim – que está defendendo os interesses da população – é uma mentirosa e quer apenas satisfazer «um capricho pessoal». Tenta, desta forma, desqualificar o laudo técnico da arquiteta.
Agora, em meados de outubro de 1991, a juíza Alzira Valdelice Pires Ewerton, da 1ᵃ Vara da Fazenda Pública, deu razão à Colmeia. O latim ganhou o primeiro round, a população perdeu, Manaus foi derrotada, mas a Curadoria vai continuar a briga, recorrendo da sentença. Quanto à Ana Lúcia – olhem só que escárnio! – pode ser processada diz-que por «falsidade ideológica».
Latinorum
Não se questiona nem o saber nem a integridade moral da juiza Valdelice Pires. Mas, meritíssima, data venia, não deu para entender sua sentença. Alguns bairros de Manaus e, sobretudo, a Universidade Federal do Amazonas manifestaram sua indignação quando souberam que a arquiteta Ana Lúcia pode ser penalizada por defender Manaus. No bairro de Aparecida, dona Elisa - que domina o latim de missa - imitou o saudoso senador Fábio Lucena e, com seu senso prático do Becus Bostorum, comentou com a vizinha Leonor:
- Os biltres e os pústulas querem latim? Então, latim terão: Dat veniam corvis, vexat justitia columbas.
- O quê? – perguntou a Leonor.
- É isso mesmo. O Poder Judiciário protege os urubus gananciosos e humilha os inocentes pombinhos – traduziu dona Elisa.
Na verdade, a Colmeia não contra-argumentou contra o laudo técnico, apenas atacou a sua autora de forma grosseira, usando muito latinorum e citações para confundir. O jurista Francesco Carnelutti, que morreu aos 86 anos, em 1965, sem conhecer Manaus, se mexeria no túmulo se soubesse que o seu santo nome em vão foi usado com a intenção de desqualificar a arquiteta Ana Lúcia. Por que ouvir o Carnelutti? Por que não consultar pessoas competentes que amam a cidade e defendem o patrimônio coletivo como Thiago de Mello, Severiano Porto, Roberta Salgado, Luis Maximino – presidente do Conselho de Cultura ou os conselheiros Joaquim Marinho e Narciso Lobo?
No capricho
Mas não! Só mesmo quem age assim para ganhar dinheiro pode acusar a arquiteta Ana Lúcia de agir « por capricho pessoal », quando ela se pronuncia contra o monstrengo. Hoc opus, hic labor est, ou seja, é aqui que a porca torce o rabo ou que o fiofó da cotia assovia.
Que história é essa de «capricho pessoal»? Nós, amazonenses, somos passivos, é verdade, e nem sempre sabemos defender nossa cidade. Mas nós não somos burros não. A Ana Lúcia é arquiteta de pai e mãe. E de marido. É conhecida e respeitada dentro e fora do Amazonas. Em 1985, realizou um trabalho da mais alta competência, identificando um acervo de 236 edifícios-monumentos e mais 585 construções ainda inteiras, testemunhos de uma Manaus que as abelhas e as colmeias teimam em destruir.
Ana Lúcia foi convidada, em 1987, pelo ministro da Cultura Celso Furtado para dirigir a Diretoria Regional do SPHAN/Pró-Memória, onde durante três anos fez um trabalho impecável. Então, digitum cotocorum dabo tibi, Colmeia, ou em bom português : Taquiprati, Colmeia.
Você já pensou nisso: qual o benefício que a população de Manaus ganha com a construção do monstrengo da Colmeia? Bulhufas! Necas de pitibiribas! Só prejuízos: agressão à paisagem, poluição visual, maior engarrafamento no centro da cidade, dificuldades de estacionamento, sobrecarga na infraestrutura – água, luz, telefone e sistema viário, descaracterização do nosso patrimônio histórico e deterioração da qualidade de vida.
A cidade é um prolongamento de cada um de nós, como nos ensina Severiano Porto. Nós herdamos das gerações anteriores um patrimônio que vem sendo depredado por aventurosos gananciosos sem qualquer compromisso com a cidade. Qual o espaço urbano que vamos legar para nossos filhos? Te mexe, leitor (a) Não fica aí parado. Protesta! Manda cartas para as autoridades! Participa dos movimentos! Grita! Esperneia! Defende o que é teu! Te associa! Cria vergonha, leitor (a), porque senão o latim continuará imperando e «Manaus jodida est».
NOTAS
Amana - Os professores de Manaus há algum tempo já começaram a se mobilizar. No final do período da ditadura militar criaram a Associação dos Professores que, em 1979. se transformou em sindicato, cuja luta se centrou inicialmente por melhores salários e condições de trabalho dignas, mas que se ampliou para engrossar o Movimento de Defesa da Amazônia e a AMANA – Associação dos Amigos de Manaus. Essas lutas duramente reprimidas renderam batalhas memoráveis.
Greve histórica – Nossa solidariedade aos 77 juízes do Amazonas em greve. Sem a autonomia financeira, com o repasse dos 4% garantidos pela Constituição, o Poder Judiciário não pode exercer plenamente sua independência, como esclarece o juiz João Mauro Bessa. Mas a população verá a greve com simpatia na medida em que o Judiciário se identificar com as aspirações e os interesses coletivos consubstanciados na legislação. Se 30 Lupércios não valem um só Ary Moutinho, presidente da Associação dos Magisatrados do Amazonas, por que os lupércios estaduais ganham quatro vezes mais do que um juiz? A equiparação com os deputados do Legislativo é uma reivindicação justa. Esse papo de que os magistrados ganham bem em comparação aos professores com salário de fome é o mesmo que dizer que um tuberculoso é sadio porque não é aidético.