CRÔNICAS

Um natal com bolo e bola

Em: 19 de Dezembro de 2010 Visualizações: 26870
Um natal com bolo e bola

Abril de 1945. O mundo, esfacelado, estava em guerra: a 2ª Guerra Mundial. Os navios que transportavam trigo para o Amazonas haviam cancelado suas viagens. Fazia três meses que os amazonenses não comiam pão. Só tapioca, broa e beiju. Naquele dia azarado - sexta-feira treze - chovia forte em Manaus. 

Silvio Cordeiro, 30 anos, saiu de casa cedinho pra comprar as broas da Marina, mas molhou-se todo porque a haste do seu guarda-chuva estava com o arame empenado. Buscou, então, abrigo na taberna do Jaime da dona Quinu na Praça da Bandeira Branca. Lá, enquanto esperava a chuva passar, leu a manchete do Jornal do Comércio, que berrava em letras garrafais: 

- MORREU ONTEM, VÍTIMA DE UM DERRAME CEREBRAL, O PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS FRANKLIN DELANO ROOSEVELT. 

“Ele não morreu. Continuará vivo no meu primeiro filho” protestou Silvio, com os lábios trêmulos. Cumpriu a promessa. Batizou seu primogênito com o nome de Franklin Delano Roosevelt Cordeiro. A família dá o nome, mas quem apelida é a rua. 'Bolo': esse foi o apelido que as ruas de Aparecida deram ao Franklin Roosevelt. Seria ‘Cake’, se o bairro só falasse inglês que nem o cavalo do Chico Buarque. De qualquer forma, no embalo, o segundo filho recebeu o nome do explorador americano Hamilton Rice - Rémiton Raice Cordeiro - como pronunciava na hora da chamada a nossa professora, irmã Consolata.

Os dois foram meus colegas no Ginásio de Aparecida. Taí o Hamilton, atualmente um economista respeitado, que não me deixa mentir. Ou deixa?  Do Franklin - o ‘Bolo’ - não tenho notícias. Só de um terceiro irmão, o Cordeirinho, já falecido, que escapou de se chamar George Washington ou Abraham Lincoln. As duas irmãs – Dó e Dinha – hoje seriam Hillary Diane e Condoleezza Rice, mas na época foram registradas prosaicamente como Silvia Helena e Silena, em homenagem à mãe, dona Helena, uma senhora meiga, de semblante tristonho.

Naquela sexta-feira, 13 de abril, além da morte de Roosevelt, os jornais noticiavam o avanço do exército soviético rumo a Berlim, que só seria tomada no dia 22 de abril, provocando o suicídio de Hitler uma semana depois. No dia 7 de maio de 1945 o governo alemão se renderia, colocando ponto final numa guerra estúpida que durou quase seis anos e matou mais de 70 milhões de pessoas. Mas naquele fatídico dia 13 quem imaginava que os acontecimentos seriam tão rápidos e que causariam, dez anos depois, a alegria de um menino amazonense com a meia toda furada? 

A meia furada

Se os navios trouxessem o trigo, se as padarias de Manaus produzissem pão, se já houvesse um sistema de delivery pra entregar broas, se não tivesse chovido, se o guarda-chuva do Silvio Cordeiro não escangalhasse, se ele não tivesse contornado a poça de lama na Bandeira Branca e entrado na taberna do Jaime Mão-de-Gancho, se os russos tivessem tomado Berlim no dia 12 de abril, se Hitler tivesse antecipado seu suicídio – qualquer uma dessas condições seria suficiente para mudar o destino de uma família amazonense, na festa de natal realizada na década seguinte. 

Foi assim. Na tardinha do dia 24 de dezembro de 1955, a Paróquia de Aparecida organizou o natal dos pobres. Os padres redentoristas armaram um palanque na quadra do Colégio e montaram uma árvore de natal iluminada, com um número limitado de brinquedos, que eram poucos para tantas crianças. O critério para distribuí-los foi promover jogos, brincadeiras e competições. O vencedor escolhia o brinquedo.

Os padres chamaram para mestre de cerimônias o jovem Nilton Lins – o mesmo que tempos depois criaria uma Universidade com seu nome. No meio da festa, ele anunciou pelo microfone uma disputa, mas só podiam participar meninos que estivessem usando naquele momento uma meia furada. Era o meu caso. Era o caso do ‘Bolo’. Ambos subimos ao palanque.  A discutível humilhação de exibir uma meia furada valia o risco de ganhar um presente de natal.

Nilton Lins estava penteado com toneladas de gumex, um pozinho que se comprava nas farmácias e se misturava com água, deixando o cabelo duro como plástico. Parecia cerol. Perguntou os nossos nomes e anunciou, então, com voz de locutor de quermesse de subúrbio, “o grande duelo entre Franklin Delano Roosevelt Cordeiro e José Ribamar Bessa Freire”. Era uma covardia. Como é que um José Ribamar - nome de porteiro de motel - iria enfrentar um presidente americano, um “winner” nato? 

Enfrentei. As regras do jogo eram as seguintes. Depois do apito dado por Nilton Lins, cada um dos dois contendores desamarrava o sapato, tirava a meia furada, exibia o buraco para o público, calçava a meia e o sapato. Quem terminasse primeiro, ganhava, e podia escolher um presente na árvore de natal. Minhas irmãs estavam na torcida organizada.

- “Vai lá, Babá” – gritavam Tequinha e Gina na primeira fila. Eu fui mesmo, com muita sede ao pote. 

Vai lá, Babá

O meu sapato tinha garantia de vida eterna dada por Domingos Russo, um italiano solidário, sapateiro dos pobres, que havia migrado para o Amazonas e ressuscitava sapatos velhos, colocando neles uma sola inteira de pneu. Nós andávamos sobre quatro rodas com Pirelli e Goodyear. Quando o pé crescia, a gente ia dobrando os dedos até que não dava mais e um irmão menor herdava o sapato. Já minha meia, de vida mais efêmera, só tinha praticamente o cano, era fácil exibir os furos. Terminei a operação em alguns segundos, enquanto o ‘Bolo’ ainda procurava exibir o buraquinho da sua meia.

Fui proclamado vencedor. Retirei da árvore uma bola colorida, vistosa, o primeiro presente de natal por mim conquistado. Mas aquela bola poderia ter sido do ‘Bolo’ se os russos tivessem antecipado a invasão de Berlim, porque nesse caso, em vez de Franklin Roosevelt, eu teria de enfrentar Vladimir Ilytch Ulianov Cordeiro ou Joseph Stalin Zinoviev Cordeiro, nomes certamente mais talhados para vencer um Ribamar. Se a guerra tivesse sido vencida pelos alemães, o duelo seria com Heil Hitler Cordeiro.

Mas nada acontece por acaso e, como reza uma lei da dialética, tudo está articulado, todo o universo é uma imensa rede de interações, não existe nada de forma absolutamente independente, quando uma borboleta bate asas sobre o Mar da China pode provocar um furacão em Los Angeles, da mesma forma que a morte de um presidente dos Estados Unidos pode contribuir, dez anos depois, para que uma criança amazonense ganhe seu presente de natal. Assim foi. 

Ouvi a história do nome do ‘Bolo’ durante uma partida de dominó na taberna da dona Bati, esquina do Beco da Bosta com a Xavier de Mendonça, contada pelo próprio Silvio Cordeiro ao meu progenitor João Barbosa, seu colega de copo e de cruz. Ambos estavam completamente chirrados. Meio século depois, confesso que minha memória pode ter enfeitado um pouco, corrigindo ou arredondando alguns pormenores, omitindo outros e até preenchendo por conta própria algumas lacunas. “Às vezes – nos assegura Bráulio Tavares – lembramos com nitidez absoluta coisas que nunca aconteceram a não ser em nossa imaginação”.

Com todas essas ressalvas, afirmo que o referido é verdade e dou fé. Tudo isso é tão verdadeiro quanto os dois aniversários: amanhã, 20 de dezembro, da Regina Nakamura, minha mana querida a quem tudo devo, e ontem, 18 de dezembro, do meu quase cunhado Rubem Rola, filho da Marina, vendedor de broas, que completou 63 anos. Aos dois, os parabéns da coluna. Aos leitores e leitoras, se a gente não se cruzar antes, desejo um feliz natal. 

P.S. – Detalhes sobre Rubem Rola em http://www.taquiprati.com.br/cronica/212-meu-amigo-rubem-rola

 

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20 Comentário(s)

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Silas (1) (Blog da Amazônia) comentou:
22/12/2010
Boa noite, mestre Ribamar. Se todo Universo é uma rede de interações , como lei de causa e efeito, ação e reação e tudo e todos interagimos para CHEGAR AONDE ? A semeadura é facultativa, a colheita, obrigatória…Então como se explicaria esses povoados sertanejos abandonados à própria sorte pelos Governos, com gente grande e pequena morrendo à míngua, sem perspectiva de vida e futuro, e isso SECULARMENTE ? O Sr acredita no acaso ?
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Silas (2) (Blog da Amazônia) comentou:
22/12/2010
Aquele cientista inglês que padece de uma enfermidade incurável e progressiva é ATEU DE CARTEIRINHA… E por algumas coisas desagradáveis que acontecem e aconteceram em minha vida estou quase me tornando um. Apesar da festa ser religiosa, o que eu não sou, e lorota da Igreja Católica, lhe desejo um Feliz Natal. Com paz, sucesso em sua carreira e sobretudo que continue escrevendo ( DIGA-SE DE PASSAGEM, MUITÍSSIMO BEM…) e abrilhantando a coluna de Bloguistas.
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Garcia comentou:
21/12/2010
Caro Ribamar, Muito obrigado pela crônica Um Natal com Bolo e Bola, cheio de graça, como um presente. Sempre soube que você era esperto, mas nunca pensei que pudesse “dar um rolê” no Roosevelt!!! Mas, pensando bem, é coisa de um José Ribamar, sim. Com grande abraço e votos de Boas Festas e Feliz Ano 2011 para você e família
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Maria Helena comentou:
21/12/2010
Olá, Bessa. Muito obrigada pela sua mensagem. Com o bolo, confraternizo com a minha família; com a bola, crio uma forma de me distrair e ser feliz... e se não conseguir, chuto a bola pra frente.Feliz ano novo! Um abraço Maria Helena
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Balbina comentou:
21/12/2010
KKKKKKkkk, só o senhor mesmo...mas ficou legal
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Gê comentou:
21/12/2010
Querido Professor, adorei as suas crônicas neste ano de 2010, desejo um 2011 com muita Paz, Saúde e muiiiiiiiiiita Crônica... Felicidades.Abraços. Gê – Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena/MEC.
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Paulo Bezerra comentou:
21/12/2010
Tua maior qualidade é ter orgulho da tua origem humilde, dos teus amigos de infância e não deixar que teus títulos acadêmicos te subam a cabeça, como acontece com alguns PHD's, que escondem a sua origem e ostentam seus títulos como se fossem conquistas exclusivas e não um resultado de todo um aprendizado coletivo. Feliz Natal p/todos.
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vania barbosa comentou:
20/12/2010
meu primo querido,como sempre tocando nossos corações...Te gosto muito...
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Eneida Simões da Fonseca comentou:
20/12/2010
Querido Bessa, muito obrigada pelo grande presente contido em sua crônica. Se não nos encontrarmos antes, Feliz Natal e um 2011 cheio de sucesso!
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Jorge da Silva comentou:
19/12/2010
Muito boa crônica, precisamos repensar a história da humanidade e festejar um Natal de paz.
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Ana comentou:
19/12/2010
Rssrsrs Que linda história de tua infância!! Bacana mesmo!!!
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Heloísa comentou:
19/12/2010
Prezado Bessa Me cai aqui, acho que por acaso, a tua crônica. Que delícia ler coisas desse Brasil tão distante e que é mais Brasil do que nós, reconheço. Como vem com votos de feliz Natal eu os retribuo a você e aos meus alunos dos meus cursos sobre organização de arquivos, se por acaso ainda tiver contato com eles. Lembra ? Isso era pelos finais dos anos 80, não ? Um grande abraço
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Cyrino comentou:
19/12/2010
Não tanto quanto aquela bola conquistada com a esperteza do moleque de meia furada e com a força da torcida organizada da Gina e Teca, mas tenha certeza de que foi um maravilhoso presente de Natal para todos os leitores - especialmente para nós que vivemos nossa nfância e adolescência nos becos de Aparecida.
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Vânia Novoa Tadros comentou:
19/12/2010
DOMINGOS RUSSO UM DOCE ARTESÃO DE MÃO CHEIA. ELE PRÓPRIO UM BELO CONTO DE NATAL. O RUBEN ROLA EXISTE MESMO. MEU AMIGO MUITO EDUCADO, ASSISTIMOS JUNTOS DURANTE ANOS A MISSA DIÁRIA QUANDO ELE ME CUMPRIMENTAVA NO MOMENTO DA PAZ
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Carla comentou:
19/12/2010
Uma delícia ler a sua coluna em um domingo ensolarado aqui de São Paulo! Desejo a você: Boas festas e um 2011 com muita graça e leveza!!
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Vânia Novoa Tadros comentou:
19/12/2010
Aparecida, bairro sempre lotado de crianças. Um dia eu questionei a sábia D Elisa Bessa se deveríamos continuar destribuíndo enxovais para as suas " buchudinhas" sob pena de estarmos contribuindo com o aumento da natalidade. Ela respondeu:" Minha fiiilha esse bairrrrro sempre deu meninos em penca e não seremos nós que iremos corrrtarrrr essa árvore"
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VANIA NOVOA TADROS comentou:
19/12/2010
Bessa, crônica emocionante . Para quem frequentou o bairro de Aarecida nas décadas de 50 e 60, como eu, essa história é cerdadeira. Foi reconstituído todo o contexto do evento e o modo de pensar e agir daquela comunidade com destaque com a tradição de suas crianças lutarem por seus objetivos.
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Serafim comentou:
19/12/2010
Ribamar: eu conheço o Bolo. O Hamilton foi meu contemporaneo de Faculdade e tem uma irmã casada com o Manoel Alexandre. O Bolo jogava bola no banho do Nasser e lá contavam essa história que ele nunca contestou. Só achava graça.
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Angela comentou:
19/12/2010
Babá o Celino sapateiro teve ter se relvido no cemitério o por teres excluido
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André Ricardo comentou:
19/12/2010
A conferir: O enunciado do antepenúltimo parágrafo é da Teoria do Caos. A discordar: São Paulo é melhor que o Rio, conheci o Sudeste entre nov/dez. Em São Paulo existe vida civilizada. A beleza do Rio é continuamente estuprada pelo povo e autoridades.
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