CRÔNICAS

Orígenes Martins: Nossa Escola, Nossa Vida

Em: 06 de Julho de 2008 Visualizações: 16472
Orígenes Martins: Nossa Escola, Nossa Vida

A modesta casinha, pintada de azul e branco, tem quintal, jardim e flores na janela. Fica ali na Vila Amazônia, um bairro popular de Manaus, escondido entre dois bairros de gente mais abastada: o Vieralves e a Vila Municipal. Suas portas foram abertas para 42 crianças pobres, no sábado, 12 de abril de 2008. É que essa casa é uma nova escolinha, criada por Orígenes e Berenice Martins. Dessa forma, os dois recomeçam a vida por onde iniciaram em 1954, quando fundaram – cheios de entusiasmo - o Instituto Christus do Amazonas.

Essa trajetória de mais de meio século é contada no livro “Nossa Escola, Nossa Vida”, lançado na semana passada. Escrito por Orígenes e Berenice, descreve as experiências vividas pelos dois, que fizeram escola, desempenhando um papel importante na vida intelectual da cidade. Traz depoimentos dos fundadores, de ex-professores (sou um deles), pais de alunos e ex-alunos, além de rico material fotográfico.

Orígenes é amazonense da várzea do Careiro. Ex-seminarista, nunca deixou de ser padre, um padre sem batina, no sentido de sacerdócio, apostolado, entrega apaixonada a uma causa. Estudou na Faculdade de Filosofia do Ceará, onde conheceu Berenice, com quem se casou. Uma semana depois, os dois embarcaram no navio Mauá rumo a Manaus, levando na bagagem, na cabeça e no coração as ideias pedagógicas de Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Lauro de Oliveira Lima, discípulo de Jean Piaget.

No dia 1º de janeiro de 1954, depois de 17 dias de viagem, o casal desembarcou em Manaus. Para colocar em prática suas ideias, eles alugaram um prédio da Arquidiocese, na Av. Joaquim Nabuco e lá instalaram o Instituto Christus do Amazonas, com uma equipe formada por Luiz Ruas, Onias Bento, Pedro Santos, Maria Pacífica, Maria Paula, Helena Cruz, Eunice Silveira, Maria de Jesus, Garcilenil do Lago e Silva, Mercedes Ponce de Leão e no ano seguinte Nathércia Menezes, Carlos Eduardo e Renata Gonçalves, Maria Luiza Sanches, Dilma Montezuma, Marivalda Maquine.

“As aulas do Christus iniciaram em março de 1955 com o pré-escolar e as três primeiras séries do curso primário – contam os autores. Ao concluírem a 5ª série, nossos alunos eram encaminhados para o exame de admissão no Ginásio Aparecida, escola paroquial dos padres redentoristas, dirigida pelo padre Tiago e, depois, por Vicente Schettini”.

A trajetória dos dois educadores é reconstruída no livro, que conta as dificuldades iniciais para realizar uma experiência inovadora numa cidade como Manaus na década de 1950. O Instituto Christus  - como dizem seus autores – “nasceu da luta, do desejo de mudar, do combate ao conformismo, ao rotineiro, ao tradicional, trazendo de nascimento a marca da renovação e da mudança”. Esse foi seu grande charme. Era um apelo irresistível para todos aqueles que estavam angustiados com a mesmice.

Carlos Eduardo lembra: –“Nos idos de 1954, o Brasil passava por turbulências políticas que mudariam os destinos do País”. Depois da 2ª Guerra Mundial e da ditadura Vargas, veio a luta pela democratização. No Amazonas, velhos políticos tradicionais eram contestados por jovens do PTB. Na vida cultural, o Clube da Madrugada renovava os conceitos estéticos e literários.

Esse era, portanto, um momento favorável a novas experiências no campo da educação. Nesse contexto, o Christus veio botando pra quebrar, subvertendo os conceitos da educação tradicional com um lado alegre e festeiro que marcava todas as suas atividades. “O Christus implantava, em Manaus, a ideia de que a escola podia ser um lugar onde se aprendia coisas importantes para a vida de forma alegre e prazerosa”.

Estudar e trabalhar não deviam ser tarefas chatas – escreve Carlos Eduardo, que explica como a alegria devia fazer parte da atividade educativa: “Era uma forma de trabalho escolar que incorporava o jeito alegre e feliz de ler, aprender, trabalhar, enfim. Para isso, exigia-se muito do professor em estudo, planejamento e comprometimento”.

Nesse meio século, várias gerações se formaram no Christus, beneficiando-se com uma prática que questionava, desde o seu início, a concepção bancária da escola, para quem aluno bom era aquele que memorizava conteúdos e acumulava conhecimentos. O Christus estava preocupado com a construção da personalidade de seus alunos por entender que essa era a condição para o aprendizado.

Por isso, suas atividades pedagógicas não se limitavam ao ensino dentro da escola. Os professores e alunos faziam extensão, revelando um compromisso social. Orígenes comprou um velho ônibus do Comandante Ventura, do Corpo de Bombeiros Voluntários, colocou dentro dele prateleiras cheias de livros, revistas e cadernos, transformando-o numa biblioteca ambulante, que circulava em bairros pobres como o Imboca (hoje Santa Luzia), Educandos e São Jorge.

Depois disso, o livro conta a construção da primeira sede definitiva, a criação do Centro Integrado de Educação Christus (CIEC) e sua inauguração, o surgimento da Fundação Amazonense de Educação e Cultura (FAMEC), do CIEC Sul e do CIEC Tech e como acabou se tornando uma escola para os filhos de classes abastadas.

No entanto, o espírito que levou à criação do Christus em 1954 nunca morreu. Todos os filhos dos operários que trabalharam na construção do CIEC ganharam bolsas de estudos e alguns concluíram lá o 2º grau. Esse espírito está presente no discurso de Orígenes quando recebeu o título de Cidadão Benemérito, concedido pela Câmara Municipal de Manaus em 1980.

“Não posso estar satisfeito, como professor cristão, quando existem mais de 37 milhões de crianças sem escola, sem casa, sem comida. Não podemos estar satisfeitos com a nossa sociedade, quando se assiste à mobralização da educação brasileira, quando estudar na Universidade é privilégio de quem tem dinheiro para gastar em cursos particulares de preparação para o vestibular”.

Foi esse o Orígenes que fez a cabeça da gente, que tocou fogo em nós, seus alunos, nos convencendo que qualquer professor, de qualquer escolinha perdida na periferia, é o sal da terra, a luz do mundo. Quando eu me aposentar das duas universidades onde trabalho, se ele aceitar um professor encrenqueiro e me convocar, sou capaz de montar na garupa - Upa, upa, cavalinho! – e de dar aulas na escolinha da Vila Amazônia.

P.S. Publicada em 2008 e postada novamente em 26/08/2016 por ocasião da morte do professor Orígenes, aos 89 anos.

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7 Comentário(s)

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Gracie Emilia dos Santos Barbosa (via FB) comentou:
20/12/2016
Que belo texto! Conheci o professor Orígenes antes de ser meu professor. Era seminarista, contemporâneo do meu primo, filho de uma irmã de minha mãe, o Padre Ruas. Foram grandes amigos. Fui muitas vezes ao seminário São José visitar o Padre Ruas, e lá estava o seminarista Orígenes: baixo, meio gordinho. Não se ordenou, mas seguiu, com muita dignidade, a vida de homem cristão. Vivia na casa da minha tia: nos bons momentos e nos momentos de inverno, principalmente, no início da ditadura, pois prendiam as pessoas sem nenhum motivo aparente. Aconteceu com o Padre Ruas.Dizem que o prederm por fazer parte do Clube da Madrugada. Fiquei triste ao saber, através do seu texto, que o grande professor Orígenes já faleceu.
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David Vieira comentou:
16/10/2023
Que texto primoroso! Fui aluno do Professor Origenes bem na transição do Christus da Joaquim Nabuco para o CIEC da Djalma em 1987 e conclui meu primeiro grau (hoje Ensino Fundamental) no CIEC. Escola inesquecível. Vale destacar que no texto não está o fato de que o Professor Origenes Martins foi secretário de educação do Estado do Amazonas e fez algo que até hoje vc vê em qualquer escola pública, garantindo a segurança dos alunos e dos funcionários: OS MUROS ALTOS que foram construídos em torno das escolas por ordem dele, pois ele entendia que sem segurança não havia condição de educar! Um legado que ninguém irá tirar dele! Inclusive trabalhei como Professor da Rede Estadual bem nessa época em q ele era secretário! Um orgulho para mim!
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Kleider Melo Filho comentou:
09/09/2020
Tive o grande previlegio de ser aluno desse grande mestre da educação, professor eclético, disciplinador e também um grande amigo de seus alunos, tive como professores, o prof Carlos Eduardo (Portugues) Nathercia (matematica) Luisa e Hilza, estive 03 (tres) anos, periodo de ginásio, desse periodo, formei uma identidade de não conformismo com que nos é imposto, sempre na luta contra o errado, tendo como meta de vida a frase que era dita sempre pelos mestres: O meu direito acaba, quando começa o do outro.
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Rogerio Silva (via FB) comentou:
27/08/2016
A minha homenagem póstuma a esse grande homem que nos deixou hoje e dignificou o ensino no Amazonas. Obrigado professor Orígenes Angelitino Martins, o Amazonas agradece por tudo que fez pelo ensino. Sentidos pêsames a toda a família
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Celeste Correa (via FB) comentou:
27/08/2016
Ensinar é um exercicio de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.. O professor assim não morre jamais (Rubem Alves)
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Auxiliadora silva comentou:
27/08/2016
Emocionada do a bela crônica! Maria Pacífica e Alencar e Silva; meus rios, irmãos do meu pai paticiparam ativamente desta época, transferindo para as outras gerações da família a garra e a luta por um mundo melhor. Ao Professor Orígenes Martins, o agradecimento por tudo que realizou em nossa terra. Um brinde à sua luta pela Educação. Que os Anjos o recebam, tornando a sua chegada ao Céu, plena de luz
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clelia comentou:
25/05/2014
Que lindo, bom conhecer a história desde o início. Viva o Christus! Foi lá que aprendi que tudo é possível, grata para sempre.
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