CRÔNICAS

Fofocas: as moças do Peru e as de Manaus

Em: 12 de Fevereiro de 1996 Visualizações: 4010
Fofocas:  as moças do Peru e as de Manaus

(De Lima, Peru, via Fax) – “As moças de Lima – as limenhas – são belas, com um corpo dotado de movimentos cheios de vivacidade. Têm os cabelos abundantes e compridos, usados em tranças que lhes caem sobre as costas. A boca irresistível ostenta, em geral, dentes miúdos, com o brilho e a limpeza do marfim. Os olhos são pequenos, negros e animadíssimos e o pescoço bem torneado, ombros incitantes, seios túrgidos” (...)

“As brasileiras de Manaus e de Belém estão longe de ser tão brancas e bonitas como as peruanas de Lima e de Moyobamba. Como todas as flores tropicais, as moças de Manaus e do Pará desabrocham cedo e murcham rapidamente. Seu modo de andar é de uma frouxidão extrema”.

Êpa! Lê com cuidado, leitora amiga! Presta atenção nas aspas. Elas indicam que quem fez essa avaliação não fui eu, embora me encontre nesse momento em Lima. Poderia até ter tido essa gentileza com as peruanas, mas jamais cometeria tal grosseria com as mulheres da minha terra. Aliás, uma calúnia! Limito-me apenas a transcrever aqui a opinião discutível de um viajante francês, um sujeitinho cujo nome – Olivier Ordinaire – pode ser traduzido ao português como “Ordinário”. É isso mesmo: sujeitinho ordinário, ainda que um bom observador da paisagem.

Esse cidadão, geógrafo e etnógrafo, era diplomata de carreira e serviu nos consulados franceses da Argentina e do Peru. Realizou, em 1885, uma viagem de Lima até Belém do Pará, passando por Manaus, numa missão geográfica e comercial. Deixou um relato intitulado “Do Pacífico ao Atlântico pelos Andes peruanos e o Amazonas” (1892), que foi editado recentemente em espanhol pelo CETA – Centro de Estudos Teológicos da Amazônia, sediado em Iquitos. Trata-se de uma crônica bastante informativa e bem humorada, salvo quando fala das amazonenses, porque adota um conceito de beleza racista centrado na branquitude.

Passar o dia

Sua biografia indica que possuía conhecimentos nas áreas de Botânica, Zoologia, Mineralogia e Administração. Mas entendia muito pouco de beleza. Ele implicou com a caboclitude amazonense. Talvez tenha sofrido alguma desilusão amorosa em sua passagem por Manaus. Vai ver, deu uma cantada em alguma amazonense e foi rejeitado. Aliás, embora a noção de beleza mude em cada época e em cada cultura, a única foto do cara mostra que ele não era – digamos assim – nenhum galã. Se este lesão fosse do jurado no concurso Miss Universo, em Long Beach, em 1957, teria votado na peruana Gladys Zender contra a  amazonense Therezinha Morango.

Imaginem que ele escreve – e assina embaixo – que toda as moças de Manaus, no final do séc. XIX – tinham a “bunda baixa”, adoravam uma fofoca, eram feias e se vestiam sem o menor cuidado e, ainda por cima, cozinhavam mal. Eu, hein! O cara é que era um fofoqueiro extraordinário. Sobre os costumes existentes há cem anos, quando Manaus era uma cidade com 9 mil habitantes, ele comenta:

Encontra-se amiúde nas ruas de Manaus senhoras nativas seguidas por um ou dois pequenos pajens, negros ou índios, que carregam sobre a cabeça cestos redondos com roupas de mulher. Elas estão indo, neste momento, visitar algumas de suas comadres ou amigas e, como nesse país as visitas de uma vizinha a outra vizinha duram geralmente vários dias, elas trazem tudo o que é necessário para passar os dias”.

O viajante francês descreve a instituição de “passar o dia”, que continuava em vigor até há pouco tempo, em Manaus. Prossegue o seu relato, sem explicar como é que conseguiu entrar nas casas para observar as intimidades das moradoras:  

“Imediatamente depois de haver beijado a sua comadres, a visitante tira os sapatos, troca o seu vestido por uma bata e se deita, descalça, em uma das redes armadas na sala, que servem também de divã e de cama. Quando alguma necessidade obriga a senhora a descer da rede, ela calça umas pantuflas”.

De qualquer forma, parece que Monsieur Olivier demonstra certa capacidade de observação. Leio o que ele escreveu há pouco mais de um século e é como se estivesse vendo, hoje, as visitas que a tia Conceição faz à dona Elisa. Com uma diferença: a dona Elisa não tem escravas. Olhem só o que o autor continua escrevendo:

“Uma velha negra cozinha, certamente uma culinária pouco sofisticada, cujos principais elementos são o peixe do rio, o feijão que é originário da América do Sul e a farinha de mandioca. Geralmente, apenas os homens se sentam à mesa. As mulheres preferem, durante o almoço ou o jantar, comer de cócoras sobre as esteiras que servem de tapete no chão”.

Pepe Galleta

Enfim, desde aquela época o jaraqui frito imperava com o baião de dois e a farinha.

O relato de Olivier Ordinaire constitui, na realidade, uma excelente fonte para os historiadores e pessoas interessadas na região no período da borracha, tanto na Amazônia peruana, quanto na brasileira. Mas ao transcrever aqui alguns trechos do seu livro, acabo deslocando-me da realidade atual. Acontece que faz quinze dias que não leio jornais do Brasil, nem vejo telejornais brasileiros. Os jornais peruanos nos tratam como nós a eles: um silêncio total, com raras exceções.

Por isso, não sei o que acontece no nosso país, nem o que está rolando no Congresso Nacional. Como estão as negociações para a reforma da Previdência? O sibilante companheiro Vicentinho se enfrentou com o pelegão Luis Antonio de Medeiros? Qual a perspectiva do projeto SIVAM no Senado? Das notícias locais, nem falar. Estou absolutamente desinformado. Não sei se o César Bonfim continua mamando nas tetas públicas, com o descarado apoio do prefeito Eduardo Braga. Ignoro se o Lupércio Ramos continua dando porrada nos meninos de rua. Não sei como a Escola de Samba de Aparecida vai descer no carnaval.

Em compensação, tive a oportunidade de assistir o “Pepe Galleta” declarar seu amor por Irene, na telenovela “La próxima víctima” que é, neste momento, a coqueluche da TV peruana. “Pepe Galleta” é o nome do Zé Bolacha, personagem vivido por Lima Duarte, que não entende “puerra ninguna” de terceiro ciclo.

Depois disso, só o carnaval. Na próxima coluna já estaremos no Brasil, ouviu Josué?

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2 Comentário(s)

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Viviana Gelado comentou:
20/03/2020
Muito interessante e divertida! Vou ler com meus alunos em Literatura hispanoamericana 3, no próximo semestre. A disciplina é sobre o contraponto entre cultura rural e cultura urbana. E aproveito para incluir crônicas escritas por hispanoamericanos e por viajantes, sobre a vida cotidiana, especialmente nos séculos xix e inícios do xx. Obrigada pela referência do viajante!, que eu não conhecia
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Ivânia Neves comentou:
18/03/2020
Bessa, precisamos tanto registrar nossos olhares sobre o curso desses rios que atravessam a Pan-Amazônia. Parece que esta é uma experiência só dos estrangeiros. Mas no segundo semestre, se o coronavírus deixar, vamos lá!
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