CRÔNICAS

Escola Tukano: a anta fofoqueira e os sábios

Em: 20 de Novembro de 2005 Visualizações: 11614
Escola Tukano: a anta fofoqueira e os sábios

No início de novembro tive o raro privilégio de subir o rio Tiquié, afluente do Vaupés, e de entrar no santuário da Terra Indígena Alto Rio Negro (AM). Lá, ministrei uma oficina de história para professores e alunos da aldeia Bote Puri Bua. Convivi, por mais de uma semana, com os índios Tukano da Escola Yupuri e de suas salas de extensão, mas também com uma anta fofoqueira, que vivia tomando porres de caxiri e comendo folhas de imbaúba. Essa anta bêbada é um dos personagens dos mitos sagrados, narrados pelos velhos sábios – os kumu .

A oficina, que discutiu o ensino de história, foi organizada pela Associação da Escola Tukano Yupuri (AETY), em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN) e com o Instituto Socioambiental (ISA). Nela trabalhamos documentos escritos e iconográficos existentes em arquivos nacionais e estrangeiros, que falam da história regional e da história indígena do Tiquié, mas também cruzamos as evidências arqueológicas com as informações contidas nas narrativas orais, que fazem parte da tradição indígena. 

Enciclopédia Tukano

Durante a oficina, que durou quase 60 horas, nove velhos da comunidade, sentados num banco, contaram o que sabem de sua história. Descreveram a criação do mundo e da humanidade, a chegada dos ancestrais, o nascimento dos pássaros e das plantas, a fabricação das primeiras flautas sagradas e de outros instrumentos musicais, o surgimento dos cantos, dos benzimentos e das ervas medicinais, a localização do território dos ancestrais, a origem do fogo, da mandioca, dos artefatos de pesca, as técnicas de construção das malocas.

A curiosidade dos jovens lembrava muito o “Tesouro da Juventude”, uma enciclopédia do século passado, que fez sucesso entre a geração de 1950-60. As perguntas eram as mais variadas: de onde vem o vento? Como se forma a chuva, o dia e a noite? Por que existem rios de água branca, de água preta, de água transparente e vermelha? O que tem dentro das nuvens brancas, pretas e azuis?

Os velhos não deixaram uma só pergunta sem resposta. Suas histórias, narradas com riqueza de detalhes, iam dando as mais variadas informações sobre o comportamento dos animais, os hábitos dos peixes, os tipos de planta, a classificação da flora e da fauna, as doenças e as formas de curá-las, os costumes, as festas, as danças, a culinária, os objetos e seus usos, o namoro, o casamento, o parto.

Essas narrativas constituem uma verdadeira enciclopédia dos Tukano, cobrindo diferentes campos do conhecimento: biologia, botânica, zoologia, ictiologia, agronomia, medicina, antropologia, religião, história, geografia, astronomia. Os saberes indígenas, ignorados durante muito tempo pela sociedade brasileira, estão sendo agora valorizados através de sua publicação em português. A FOIRN já editou sete volumes da `Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro', entre os quais a `Mitologia Sagrada dos Tukano Hausirõ Porã`.

A mitologia tukano é hoje conhecida pelo leitor brasileiro, porque antes de morrer, o velho kumu Akuto, também conhecido como Joanico Azevedo, contou essas histórias para seu filho Ñahuri (Miguel Azevedo) e para seu neto Kumarô (Antenor Azevedo). Eles gravaram em fita cassete e transcreveram em tukano, traduzindo depois para o português, com a orientação e a revisão do antropólogo Aloizio Cabalzar, do ISA. Outro velho, Feliciano Azevedo, ainda vivo, também participou com algumas narrativas, traduzidas e revisadas por seu filho, Vicente Azevedo, coordenador local da Escola Tukano Yupuri.

Documentos de arquivos

As informações proporcionadas pelos velhos Tukano foram cruzadas com as evidências arqueológicas e com as pesquisas realizadas por um professor da USP, Eduardo Neves, que escavou sítios do Vaupés para sua tese de doutorado, defendida em 1998. Ele estima que os Tukano ocupam a região há pelo menos três mil anos e acredita que os sítios arqueológicos dos rios Papuri e Tiquié, embora pequenos e com pouca cerâmica, podem conter dados importantes sobre os povos que ai viveram.

Mas os professores e alunos da Escola Yupuri, participantes da oficina de História, entraram em contato também com alguns documentos existentes em arquivos nacionais e estrangeiros, dois dos quais de meados do século XVIII, trabalhados pelo historiador norte-americano Robin Wright, professor da UNICAMP, que publicou recentemente o livro “História Indígena e do Indigenismo no alto Rio Negro”.

O primeiro documento é o relato de um dos últimos jesuítas que esteve na região, o padre Ignácio Szentmartonyi, nascido na Croácia. Astrônomo e matemático, ele foi enviado por Dom João V para a Amazônia a fim de trabalhar na delimitação das fronteiras. Acabou sendo preso e deportado para Lisboa em 1777. Escreveu um documento em latim, cujo original está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com informações sobre geografia, localização de aldeias, dados linguísticos e etnográficos registrados por comandantes de tropas escravistas e pelo capelão de escravos indígenas.

O segundo documento faz parte da coleção conservada no Arquivo Público do Pará, em Belém, com cópia nos arquivos do Museu Amazônico, da Universidade do Amazonas. Trata-se de um registro oficial das tropas de resgates que escravizaram índios do Rio Negro, de junho de 1745 a maio de 1747, entre os quais muitos índios tukano e tuyuka, que foram transportados para Belém do Pará.

Trechos de outros documentos existentes no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e no Arquivo do Itamaraty também foram usados na oficina. O que fez mais sucesso, no entanto, foi o livro do viajante alemão Theodor Kock-Grunberg, traduzido pelo padre Casemiro Beksta, descrevendo as culturas do rio Tiquié naquela época. Esse livro, intitulado ‘Dois anos entre os índios (1903-1905)', acaba de ser publicado pela Editora da UFAM. Apresenta muitas fotos tiradas na época pelo próprio Kock-Grunberg, onde podem ser vistas as malocas tradicionais, as flautas sagradas, os adornos e onde são descritos os processos de fabricação de mandioca e seus derivados.

Finalmente, os professores da Escola Yupuri tiveram a oportunidade de ver, discutir e analisar um documentário de 1938, filmado por Thomaz Reis, da Comissão de Fronteiras, intitulado ‘Em viagem pelo Rio Negro', que faz parte do acervo do Museu do Índio do Rio de Janeiro, mostrando as malocas, as danças e os índios do médio e alto Tiquié. Depois da oficina, os professores Tukano manifestaram desejo de recuperar essa documentação que se encontra em instituições sediadas em Manaus e no Rio de Janeiro.

O leitor que chegou até o final deve estar perguntando: e a anta fofoqueira que usava óculos? Pois é, a gente ia falar dela, mas dei tantas voltas que o espaço acabou. Fica para uma próxima crônica, em que será relatada a subida das moscas e mosquitos pelo Tiquié, em suas canoas, que eram caroços de umari. Por isso, no tempo de umari, dá muito mosquito, mosca e pium.

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1 Comentário(s)

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Ana Stanislaw comentou:
23/12/2014
Simplesmente linda! Adorei, Bessa. Quero conhecer a história dá anta fogueira.
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