CRÔNICAS

A menina, o aborto, o bispo e nós, os excomungados

Em: 08 de Março de 2009 Visualizações: 14377
A menina, o aborto, o bispo e nós, os excomungados

Ela é apenas uma criança. De nove anos. Pesa 33 kg e mede 1,36 m. Vive em Alagoinha, a 230 km. de Recife. Lá, foi estuprada pelo padrasto. Ficou grávida de gêmeos. Os médicos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) constataram que a vida dela corria perigo e retiraram os fetos, interrompendo a gravidez na 15ª semana. Após o aborto, na quarta-feira, “ela ficou brincando com a boneca e o ursinho. Não sei se entende o que passou” – disse o diretor da Maternidade, Sérgio Cabral, que não tem culpa do nome que carrega.

Quem, com certeza, não entendeu bulhufas foi o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, 75 anos, recém-aposentado. Ele tentou convencer o pai biológico e a mãe da menina a desistirem do aborto. Fracassou. A Arquidiocese decidiu, então, que vai denunciar os pais da vítima ao Ministério Público, acusando-os de duplo assassinato. Sem chances, porque a legislação brasileira permite o aborto em vítimas de estupro até a 20ª semana de gestação e também no caso de ameaça à vida da mãe. De acordo com avaliação médica, o aborto é, portanto, duplamente legal.

O bispo, no entanto, está se lixando para as leis dos homens:

- “A lei de Deus está acima de todas as coisas e o aborto é um crime previsto nas leis de Deus”, diz, citando o Código Canônico, que em seu artigo 1.398 pune os que praticam o aborto com a excomunhão. Omite que não foi Deus, mas os homens que escreveram o Código. A proibição é, pois, da Igreja Católica Apostólica e Romana, que é uma criação histórica dos homens. Deus, coitado, não tem nada a ver com essa história, seu nome está sendo invocado em vão. Tem documento assinado por Deus com firma reconhecida no cartório? Tem? Ora, não me venha com chorumelas.

Não importa. O bispo mostrou que é o herdeiro legítimo da Inquisição e da intolerância. Sem levar em conta a situação real da menina, o bispo confundiu cinto com bunda e cipó com jerimum e excomungou todos os adultos que participaram da operação: os pais da menina, os médicos, o motorista da ambulância, o transportador da maca, as atendentes, os enfermeiros que esterilizaram os instrumentos cirúrgicos, as representantes de ongs em defesa da mulher, enfim todo mundo.

E o padrasto? Foi também excomungado? Necas de pitibiribas! Esse foi o único que escapou. Pressionado pelo Jornal Hoje, da Rede Globo, o bispo afirmou que o pedófilo estuprador, já preso pela lei dos homens, não foi excomungado pela lei divina:

- “Esse padrasto cometeu um crime enorme – admitiu – mas não está incluído na excomunhão. Ele cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente”.

Acredite se quiser. Mas o bispo disse essa besteira monumental e estarrecedora. Eu ouvi. Milhões de brasileiros são testemunhas. O bispo segue, assim, a máxima malufista do “estupra, mas não mata”. A excomunhão, que é a pena máxima da igreja, condena ao fogo do inferno pessoas misericordiosas, que tiveram compaixão com o sofrimento dos outros, mas poupa o estuprador. Aumenta assim nossa sensação de impunidade. Com esse senso de justiça, parece até que o Código Canônico foi escrito pelo ministro do STF, Gilmar Mendes, para livrar a cara do Daniel Dantas e dos latifundiários.

Baixando o nível

A fala episcopal teve repercussão internacional. Os jornais da Europa e dos Estados Unidos e as redes de televisão, como a BBC de Londres e a Karachi News do Paquistão, abriram manchetes com a declaração do bispo, que chocou a opinião pública e provocou indignação generalizada, mostrando a posição arcaica, retrógrada e rançosa da igreja, “que não se adequou à realidade do estado laico e da democracia”, como afirmou Cristina Buarque, secretária estadual da Mulher do Estado de Pernambuco.

Um dos médicos excomungados, Rivaldo Albuquerque, católico praticante, que assiste missa todo domingo, chova ou faça sol, lembrou que ele e seus colegas já foram excomungados pelo bispo Dom José desde 1996, quando foi inaugurado o serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual da UFPE. O médico mostrou, felizmente, que está cesar-maiando e andando para essa excomunhão e nessa questão não reconhece a autoridade do bispo, cuja postura é “inadequada e pouco humanitária”. Não se intimidou. Continuou seu trabalho.

- “O povo quer uma igreja do perdão, do amor, da misericórdia, da caridade e da solidariedade. Tenho pena do nosso arcebispo que não conseguiu ter misericórdia por uma criança inocente, desnutrida, franzina, em risco de vida, que sofre violência desde os seus seis anos” – declarou Rivaldo.

Mas nem todo mundo ficou com pena do bispo. Muita gente ficou com raiva. Na internet, o House abriu uma página, perguntando: “O bispo José Cardoso Sobrinho é maluco? Ou boiola?”. Muitos internautas votaram.

Um deles atacou:

Um sujeito que excomunga os médicos responsáveis pelo aborto do feto de uma criança de 9 anos que foi estuprada, não merece crédito algum perante a sociedade. Não passa de um desqualificado moral e intelectual, que prega conceitos ultrapassados ao nosso tempo”.

Outro indagou: -  “Quem pediu a opinião desse sujeito? Quem se importa com o que ele fala?”

Na realidade, embora o "sujeito" Dom José Cardoso Sobrinho não se dê respeito, não concordo com a baixaria de ofendê-lo. Devemos ser caridosos com ele e ajudá-lo, criticando-o com argumentos. Afinal, ele não é “boiola”, nem “maluco”, o que não constitui, na nossa perspectiva, uma ofensa, mas foi proferida com essa intenção. Para usar uma categoria menos ofensiva e mais objetiva, ele é apenas, com todo respeito, um babaca, com cara de babaca, discurso de babaca, postura de babaca. Não é pastor do seu rebanho, mas um burocrata, funcionário obscurantista, preocupado com questões formais e não com a vida das pessoas. Para ele, dane-se o mundo e a menina, desde que o artigo 1.398 do Código Canônico seja cumprido.

Mitra e báculo

O bispo não esboça qualquer sentimento de piedade com a dor e o sofrimento alheio. Seu discurso em defesa da vida é tão demagógico quanto o de Silvio Berlusconi, no episódio recente da jovem Eluana Englaro, que durante 17 anos permaneceu em estado vegetativo, até que os médicos suspenderam sua alimentação e hidratação artificial, mantida através de uma sonda, deixando-a morrer, naturalmente, em paz, como pediu sua família.

Dom José, que diz falar em nome de Deus, é um homem extremamente vaidoso. Adora a pompa, a solenidade, a imponência, as vestimentas pontificais, os ornamentos episcopais, a alva de linho, a estola luxuosa, a sobrepeliz de rendas, a capa de seda, o anel de ouro, a cruz peitoral, o báculo de metal precioso, a mitra, que é o símbolo do poder e o solidéu – aquele gorro de cor violácea – com o qual ganharia qualquer concurso de fantasia carnavalesca. Talvez por isso seja tão apegado ao poder contra o qual jamais se manifesta.

O bispo – estamos em pleno Dia Internacional da Mulher – ofende e desrespeita todas as mulheres. Revela um machismo primário ao relativizar o crime do padrasto estuprador contra uma criança, que ele tinha a obrigação de proteger. Não deixa de ser corporativismo machista minimizar esse crime e invocar a natureza divina de um código escrito por homens, não como representantes do gênero humano, mas como machos.

Saudades de Dom Helder Câmara, o antecessor de Dom José. Já não se faz bispos como antigamente. Dá vontade de abrir uma página na internet: “Eu apoio a ação dos médicos de Recife e também quero ser excomungado por Dom José”. Sou o primeiro a me inscrever.

Um apelo: Dom José, deixe a menina brincar com sua boneca e o seu ursinho, deixe os médicos em paz, deixe de ser ranzinza, não seja leso, vá rezar, vá pedir perdão dos seus pecados, vá pedir inspiração a Dom Helder, vá excomungar o Collor, o Sarney, o Renan Calheiros e todas essas figuras sinistras que vem atentando contra a vida em nosso país, envolvidas em maracutaias e corrupção, matadoras de nossas esperanças. E se não for falta de respeito a um prelado – data vênia – digo, rimando, em nome dessa menina de nove anos, que ainda brinca de boneca: Dom José, vá cheirar seu pé.

P.S. – Crônica recolocada nas redes sociais em 13/06/2024, diante do projeto de lei que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prevendo uma pena muito mais dura à mulher que fizer o procedimento, hoje protegido por lei, do que para o homem que a estuprou. Segundo o projeto de lei, o aborto será igualado ao artigo 121 do Código Penal, de homicídio simples, que estabelece pena de prisão de seis a 20 anos. Enquanto que o crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, tem como pena mínima seis anos e máxima que pode chegar a apenas 10 anos, quando a vítima é adulta. A bancada evangélica, que  segue os passos do bispo José Cardoso Sobrinho, pede regime de urgência na Câmara para que a "lei de Deus" se transforme em lei dos "homens" - digo dos machos - no Brasil.

O poeta popular Miguezim de Princesa, paraibano radicado em Brasília, já escreveu até um cordel sobre o fato recente do aborto da menina de nove anos. Reproduzo aqui as duas estrofes finais do citado cordel:

“Milhões morrendo de Aids: /
É grande a devastação, /
Mas a igreja acha bom /
Furunfar sem proteção /
O padre prega na missa /
que camisinha na lingüiça /
É uma coisa do Cão./
E esta quem me contou /
Foi Lima do Camarão/
Dom José excomungou / 
A equipe de plantão,/
A família da menina /
E o ministro Temporão, /
Mas para o estuprador, /
Que por certo perdoou, /
O arcebispo reservou /
A vaga de sacristão”.

 

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9 Comentário(s)

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Geraldo Souza Caleffi comentou:
19/06/2024
Em nota oficial, a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), apoiou a aprovação do projeto, mas o bispo emérito de Blumenau (SC), dom Angélico Sândalo Bernardino, declara no dia 19/06/2024 que o projeto de lei que equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio, incluindo em casos de estupro, é “uma distorção da realidade”. “Simplesmente punir a mulher sem discutir com profundidade uma situação tão complexa é uma leviandade. É uma precipitação legalista. É querer resolver pela lei um problema muito mais amplo e vasto”, diz o religioso, um dos mais respeitados da Igreja Católica. Ele argumenta que o momento para a análise do tema pela Câmara dos Deputados, em regime de urgência, também é inapropriado. “Uma questão complexa como o aborto não pode ser debatida às vésperas de uma eleição. Qual é a motivação desses políticos que defendem essa proposta?”, pergunta dom Angélico. “Não sou juiz da CNBB. Mas a minha posição é esta”, afirma. Anteriormente, ele foi bispo auxiliar de dom Paulo Evaristo Arns em São Paulo e esteve envolvido com a Pastoral Operária nos anos 1970
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Rômulo Camargo comentou:
14/06/2024
kkkkkkk. Está cesar-maia (cagando) e andando. kkkkk
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Juarez Silva (Manaus) comentou:
13/06/2024
Magistral e atual ????????????????????????????????
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Celeste Corrêa (13/06/2024) comentou:
13/06/2024
Ai, mano, ainda estou meio que em estado de choque diante da aprovação, desse projeto, melhor dizendo, desse crime hediondo cometido pelos parlamentares com a justificativa sórdida, perversa de estar defendendo a vida... que vida? E a vida de uma criança que ainda nem tem um útero maduro para gestar um filho, e, ainda por cima, é vítima duplamente: vítima de um canalha estuprador e vítima de uns canalhas que se dizem representantes do povo. Estou arrasada, olha.
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Blanca Camargo (13/06/2024) comentou:
13/06/2024
Esse ataque do Congresso me tirou do eixo. Um projeto de lei quer obrigar meninas e mulheres vítimas de estupro a levar a gravidez resultante desse crime adiante. Me ajuda assinando e compartilhando pra mais pessoas no zap? - https://secure.avaaz.org/campaign/po/urgencia_nao_a_gravidez_infantil/?whatsapp
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Valdiva Araujo comentou:
19/08/2020
Gratidão, José Bessa. Choramos. E precisamos também rir de nossas humanidades tacanas de mesquinhez por tantas vezes. Sua crônica é uma forma alegre e bem humorada capaz de contribuir com a expansão da consciência coletiva.
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Heliete Vaitsman comentou:
18/08/2020
Bom você lembrar que ele não é maluco, é só humano, muito humano. Como o criminoso... Mas escrever isso, os céus me livrem, só dá confusão (e os céus tb me livrem de citar H Arendt!).
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José Almeida comentou:
25/09/2018
Sua Eminência, com todo o respeito, é mesmo um babaca. Não é porque foi sagrado bispo que isso o isenta de besteiras.
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mario comentou:
11/06/2010
Apezar de tanto tempo depois do fato ocorrido,concordo plenamente com o sr. bispo de olinda que excomungou os medicos e todos que participaram deste ato do aborto,o sr bispo cumpriu sim a sua autoridade como bispo da igreja catolica,se ele ñ tivece feito isto ele iria dar conta junto a Deus,como os medicos vão prestar conta e eu ñ quero estar na pele destas pessoas a ñ ser que se arrependem do que fizeram.
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