CRÔNICAS

Escola, índios na cidade: cemitério de línguas

Em: 02 de Janeiro de 2005 Visualizações: 10898
Escola, índios na cidade: cemitério de línguas
- « Nós somos como um pássaro no mundo ». Dessa forma, o velho tuxaua, lá da aldeia do Andirá, em Maués, se apresentou ao pesquisador Nunes Pereira, em 1939. Suas palavras, atravessando várias décadas, ficaram martelando o tempo todo na minha cabeça, durante recente reunião com índios sateré-mawé, na comunidade onde moram, no bairro Santos Dumont, em Manaus.
 
E isso porque a frase, de um lado, expressa a ideia de liberdade – o pássaro voando de galho em galho. Mas, de outro, sugere também fragilidade e abandono - o passarinho longe do ninho, desenraizado, perdido no mundo. A imagem de passarinhos nas avenidas de grandes cidades cortadas por um trânsito infernal, voando não de galho em galho, mas de fio elétrico em fio elétrico e fazendo seus ninhos nos postes de luz.
 
Liberdade e abandono: essa continua sendo a imagem daqueles Sateré-Mawé que migraram para Manaus, onde criaram duas aldeias urbanas: uma no Santos Dumont e outra no Tarumã. Nessas aldeias, eles renunciaram a algumas atividades e mantiveram outras. Não fazem roça, mas produzem artesanato, organizam festas, rituais e pajelanças, rezam, cantam, dançam, recebem seus parentes, transmitem sua literatura oral e, sobretudo, continuam falando a língua materna, no âmbito doméstico, enquanto usam o português para se comunicar com os de fora. Mas até quando isso poderá ser feito na selva de pedra e asfalto da cidade de Manaus?

Bilingüismo no asfalto
 
Esses índios urbanos, moradores da cidade, estão preocupados com o futuro. Diariamente, atravessam ruas, pegam ônibus, frequentam escola, compram comida, vendem sua força de trabalho e seu artesanato, veem televisão, escutam rádio – tudo isso prioritariamente em português. Por isso, pensando em preservar a língua materna, decidiram – por conta própria - contratar um professor bilingüe para dar aulas na língua do povo sateré-mawé. A coisa funcionou por algum tempo, mas não foi pra frente, porque não tinham mais como pagar o professor. Agora, os saterezinhos freqüentam uma ‘escola de branco’.
 
Como é que a escola pública de Manaus está tratando os seus alunos indígenas? A diferença é respeitada ou é ignorada? Sabemos muito pouco sobre essa questão, que agora vem sendo estudada pela Universidade Federal do Amazonas, através de um projeto orientado pela doutora Lucíola Cavalcante e desenvolvido por Maria do Céu Freire, mestranda em educação. Foi essa última que organizou, em outubro, reunião informal com líderes sateré-mawé, que reivindicaram professor bilíngüe e escola diferenciada, tal como está definido na Constituição de 1988.
 
Na hora em que os líderes indígenas - Moisés, Terezinha e Bonifácio – faziam suas reclamações, lá fora, na rua, passava um carro de som, gritando de forma estridente e agressiva o nome do candidato Amazonino Mendes, que disputava o cargo de prefeito de Manaus com Serafim Correia. Pensei: “Com o Negão Mendes, os índios estão fritos”. Então, prometi: - “Se o Serafim ganhar, no dia em que assumir a Prefeitura, nós vamos lá cobrar dele a contratação de um professor indígena”. O Serafim tomou posse ontem. Hoje, estamos aqui, tentando pagar a promessa feita aos Sateré-Mawé.

As aldeias urbanas
 
Serafim Correia é o primeiro prefeito com condições intelectuais, afetivas e morais para tratar a questão dos índios urbanos de Manaus, que hoje são aproximadamente 20 mil, segundo estimativas da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Eles formam ‘aldeias urbanas’ mais ou menos organizadas, como os Sateré-Mawé no Santos Dumont, os Ticuna na Cidade de Deus, os Tukano no bairro da Compensa, e famílias de diferentes etnias do alto Rio Negro – Baniwa, Piratapuia, Tariana, Tuyuka, Desana, Baré - espalhadas por outros bairros periféricos da cidade.
 
Esses 20 mil indígenas foram ignorados até hoje pelo poder público municipal e se tornaram invisíveis para o conjunto da população manauara. As pessoas desinformadas ainda acreditam que “lugar de índio é no mato”, e que se ele vem morar na cidade, então “deixa de ser índio”. Esse papo furado – segundo o antropólogo da Universidade de Brasília, Stephen G. Baines – “é fruto de preconceito humilhante, que congela o índio no tempo e no espaço, colocando-o em oposição à vida urbana e relegando-o ao atraso, à pobreza e à ignorância”.
 
O preconceito fica evidente, quando sabemos que nesse momento em que você lê esse artigo, línguas indígenas estão sendo faladas em diversos bairros de Manaus. Crianças brincam, sofrem, choram e riem em tukano, baniwa, nheengatu – que foram, aliás, consideradas línguas co-oficiais em São Gabriel da Cachoeira. Algumas mães adormecem seus filhos, embalando-os na rede com canções de ninar em uma língua indígena. Alguma avó conta para o seu neto, na periferia de Manaus, histórias sobre a origem da noite, dos bichos, do mundo. Esses fatos – por si sós – justificam uma ação da prefeitura para fortalecer essas línguas, que podem estar “anêmicas”, do ponto de vista demográfico, mas não estão necessariamente “moribundas”.

O direito de cantar
 
Ninguém ignora que o novo prefeito tem graves problemas para resolver, entre os quais os mais urgentes são o sistema de transporte urbano, apodrecido pela corrupção, a coleta de lixo, que já começa a feder, e o abastecimento de água nas zonas carentes. No entanto, o destino dos índios urbanos, de suas línguas e de suas culturas é também uma questão prioritária, porque essas línguas são portadoras de saberes, de literatura, de poesia, de beleza. O estudo delas vem mostrando sua importância não apenas para os índios, mas para toda a humanidade. Quem diz isso é Aryon Rodrigues, linguista de renome internacional:
 
“Se as políticas de desenvolvimento – ou a falta delas – continuarem a determinar a rápida extinção das línguas amazônicas, é mais provável que fenômenos raros ou únicos, mas de importância crítica para a melhor compreensão da linguagem humana, desaparecerão sem sequer terem sido identificados”.
 
Manaus não pode ser o cemitério de línguas indígenas, nem o túmulo desse patrimônio cultural. Serafim, ao contrário de seus antecessores, não tem pinta de coveiro. A escolha do novo Secretário de Educação, José Dantas Cyrino, despertou esperanças de que é possível mudar. Ele tem a oportunidade única de realizar gestão inovadora e de formular uma política municipal de educação indígena. É preciso fazer um censo dos índios da cidade, criar as primeiras escolas urbanas diferenciadas e bilíngües do Brasil, dotá-las de um currículo intercultural, montar um pequeno quadro de professores indígenas urbanos e cuidar de sua formação. Se fizer isso, Manaus será referência para o resto do país.
 
Nos últimos anos, os índios vêm ocupando bairros de muitas cidades brasileiras, de pequeno, médio e grande porte. Lábrea, no Purus, tem 16 mil habitantes, dos quais 4 mil são índios de diversas etnias. Manacapuru abriga no seu perímetro urbano centenas de Apurinã. Em Altamira, no Pará, moram 1.800 índios de nove grupos étnicos. Boa Vista (RR) tem áreas indígenas dentro da Pintolândia, Raiar do Sol e até mesmo na lixeira da cidade, habitadas por Makuxi e Wapixana. Fortaleza mantém os Tapeba, no bairro de Caucaia. Os Kaiowá, em Dourados, os Terena em Campo Grande, os Kaingang em várias cidades do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e até mesmo cerca de 1.000 Pankararu, de Pernambuco, ocupam favelas de São Paulo, como Real Parque e Paraisópolis. O mundo urbano está cheio de pássaros. É necessário garantir-lhes o direito de cantar.
 
P.S. – Lula vai receber da Assembléia Legislativa o título de “Cidadão do Amazonas”. É bom lembrar ao autor da proposta, deputado Sinésio Campos (PT), que entre “os relevantes serviços prestados pelo presidente Lula à nossa região”, não consta ainda a homologação da Reserva Indígena Raposa/Serra do Sol, em área contínua, que o presidente da República vem empurrando com a barriga há 731 dias em que governa. Essa, ele ainda está nos devendo.

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