CRÔNICAS

Lições de carnaval:última aula de Darcy Ribeiro

Em: 06 de Fevereiro de 2005 Visualizações: 20297
Lições de carnaval:última aula de Darcy Ribeiro

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Era segunda-feira, 17 de fevereiro de 1997. As imagens coloridas do carnaval ainda explodiam na televisão. Num quarto do hospital Sarah, em Brasília, o antropólogo Darcy Ribeiro, gravemente enfermo, se despedia de uma amiga, que o havia visitado, de manhã cedinho, acompanhada de um filho menor.
 
- Fica mais um pouco -  ele rogou. 
 
- Não posso, tenho de levar meu filho à escola.
 
Darcy segurou a mão do menino:
 
- Não precisa. Sou professor. Fica aqui, que hoje quem vai dar aula pra ele sou eu.
 
Com voz fraca, mas audível, proferiu, arfando, o que seria sua última lição:
 
- Fui um fazedor de universidades. Criei museus, bibliotecas, escolas, centros culturais. Nada disso teria o menor valor, se eu não tivesse criado também o sambódromo. Sei que é perigoso dividir a cultura em erudita e popular, mas às vezes é útil, como agora. Quem tem um olho na universidade, na cultura erudita, tem de ter o outro olho no sambódromo, na cultura popular, porque a cultura é como um pássaro, tem duas asas. Uma não é pior nem melhor que a outra, acontece simplesmente que uma não funciona sem a outra. Se faltar uma delas, o homem não pode voar, não decola.
 
Naquele mesmo dia, algumas horas depois, Darcy se despedia da vida. Lembrei-me de sua última lição, porque recebi de Manaus a carta de Apolo Ruiz, que se diz doutor em lingüística, espinafrando uma das asas da cultura: “Ninguém me convence que carnaval é cultura. Cultura é algo que me faz pensar. Mas o carnaval, que é só peito e bunda de fora, não me faz pensar. Posso até sambar na avenida, se estiver afim, mas sei que não estou participando de um ato cultural Cultura é teatro, cinema, literatura, artes plásticas, música. Transformar carnaval em cultura é, com todo respeito, coisa de intelectual de esquerda ultrapassado”.
 
Viva o Zé Pereira    

Parece que o leitor Apolo Ruiz está sendo demasiado intolerante, quando afirma, contundente, que ninguém o convence do contrário, ou seja, vai logo declarando, de saída, que não está aberto à discussão, não está disposto a se render diante de um bom argumento. De qualquer forma, vamos lá. Supunhetamos que o carnaval estivesse limitado só a “peito e bunda de fora”. E daí? As obras primas de Miguel Ângelo e Da Vinci também tem peito e bunda de fora, e nem por isso deixam de ser expressão cultural. Confesso que ambos – peito e bunda - me comovem, me fazem não apenas pensar, mas até sonhar.
 
Data vênia - como diria o saudoso jurista piauiense Orozimbo Nonato – você, meu caro Apolo Ruiz é, sinceramente, demasiado “peitófobo” e “bundófobo” para o meu gosto. De forma moralista, você diz que o carnaval não estimula o seu ato de pensar, mas quando escreve isso é porque já está pensando e foi provocado justamente pelo carnaval. Das duas, uma: ou você não acompanha as discussões sobre o que é cultura, ou não entende bulhufas de carnaval, ou talvez as duas coisas juntas. Diga lá: por acaso, você é doente do pé?
 
O carnaval é cultura, porque através dele o povo cria beleza, expressa alegria, manifesta sentimentos. No carnaval, estão representadas todas as formas de arte: dança, música, artes plásticas, pintura, escultura, poesia, literatura, teatro, drama. Até mesmo um poste se emociona com as músicas de compositores como Silas de Oliveira, Geraldo Babão e Carlos Cachaça. Um poste certamente se curva diante da elegância de dois magricelas – Delegado e Canelinha – deslizando como mestres-sala, ou com o rodopiar de duas porta-bandeiras como a Wilma Nascimento ou a Rita do Salgueiro.
 
Suspeito que o conceito de cultura do Apolo Ruiz é aquele mesmo do “senso comum”, que acha a nona sinfonia de Beethoven superior ao “bumbum-paticumbum-prugurundum”. É a visão do Robério Braga, vulgo Berinho, secretário estadual de cultura, para quem o compositor russo Rachmaninov é infinitamente melhor que o Zuzuca. Berinho finge conhecer e amar de paixão a Sinfonia nº 2, porque dessa forma cria a ilusão de que é um cidadão internacional, mas em casa, escondido, rebola ouvindo “Tengo-tengo, Santo Antônio e chalé, minha gente é muito samba no pé”?
 
Na ponta da sapatilha

Afinal, o que é cultura? Mais de duzentas definições foram reunidas, em 1967, pelo psicólogo social Abraham Moles. Apesar das divergências, todas elas destacam a dimensão simbólica da produção cultural, onde cabem Beethoven, Walter Alfaiate, Mozart, o saudoso Gargalhada, Margot Fontaine, as passistas Narcisa e Roxinha do Salgueiro, Rudolf  Nureyev, Serrinha, o Lago dos Cisnes, a escola de samba, a ópera, o balé, a cuíca, o surdo, o tamborim, o oboé, o fagote, a caldeirada, a feijoada, o caviar e o jaraqui frito.
 
No entanto, aqueles que não discutem o tema, ou os que não usufruem dos bens culturais, acham que a cultura é algo inatingível, um produto superior, que não pode ser criado por pessoas comuns, pelos deserdados da terra, por um zé-mané qualquer. Confundem ‘cultura’ com ‘escolaridade’. Por isso, quem pensa assim, despreza o carnaval, o futebol, o jogo-de-bicho, e não os vê como produtos que são da elaboração humana, capazes de satisfazer necessidades não apenas materiais, mas intelectuais, psicológicas, afetivas.
 
Eunice Durhan, professora da USP, observou com muita propriedade que apesar de totalmente equivocada, essa definição tem o mérito de valorizar a cultura, de reconhecer o seu caráter refinado. No entanto, a antropologia fez um movimento para demonstrar que esse refinamento está presente não apenas no saber produzido por algumas pessoas, mas se estende a todas as produções humanas, a todos os comportamentos sociais. A cultura está num quadro de Picasso da mesma forma que na preparação de um bolo, na tecnologia de ponta que fabrica computador, como nas técnicas refinadas de artesanato indígena.
 
Meu caro Apolo Ruiz, você ficará assustado ao tomar conhecimento da quantidade de dissertações de mestrado e de teses de doutorado sobre o carnaval, que foram defendidas nos últimos anos, no Brasil e no exterior. Deixe a arrogância de lado, leia dois ou três trabalhos de antropologia sobre o carnaval (Roberto da Matta, Maria Clementina Pereira Cunha, Maria Laura Viveiros de Castro) e pegue no ganzê, pegue no ganzá. Vá pra avenida. Faça como a Ana Botafogo e sambe na ponta da sapatilha, porque Darcy Ribeiro tem razão: o pássaro da cultura não pode decolar com uma asa só.
 
P.S. 1 – O criador do site Taquiprati, José Amaro Jr., e sua esposa Janaina, acabam de colocar no mundo a Ana Beatriz, “uma fofura”, segundo o testemunho das fotos.
 
P-S. 2. O governo Lula completa hoje 767 dias, sem que tenha sido homologada a demarcação, em áreas contínuas, da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.

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11 Comentário(s)

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Wanda Medrado Abrantes comentou:
12/02/2024
Depois de aposentada da universidade, aprecio com muito mais gosto o ouvir e o contar histórias, tal como acontece nesse período de Carnaval. Que história linda sobre a última aula do Darcy Ribeiro. Quantas reflexões sobre cultura, na sua dimensão acadêmica e popular., tornando o saber muito mais rico. A vida é mesmo surpreendente, ao desvelar tantas camadas de significações, como fazem os enredos, a música, a dança, as artes plásticas, sem contar os bastidores dos barracões, com histórias narradas pelos trabalhadores da folia das Escolas de Samba, valeu!
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Juliana Venturelli comentou:
17/02/2017
Sempre que ouço essa história contada pessoalmente pelo prof. José Bessa, é como se eu recebesse pílulas de otimismo. Um dia, quem sabe, a gente faça uma farofada nas Universidades e as alas se abram para todxs, todxs mesmo, sem exceção.
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Juliana Venturelli comentou:
17/02/2017
Amo essa história!!!!!!!!! Que você continue contando, contando e contando para que a gente continue acreditando e tendo esperança nesse país!!!!!
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Franklim Rodrigues de Sousa comentou:
05/10/2016
Realmente, professor. Há pessoas que tomam para si sua opinião sobre determinado assunto, e deste, cria \"verdade\". Talvez não estejam errados quanto ao fato de se posicionar, mas o ato de \"determinar\", neste caso, o que é ou não cultura. O que levanto aqui, e que chamou minha atenção, foi a questão de vermos a escolarização confundida com cultura. Eu não consigo desassociar a educação da cultura, pois percebo que há diferença, mas como aprofundar as questões educacionais, ou seja, se apropriar de um conhecimento que muitas das vezes não são nossos é separarmos dos contextos culturais e históricos envolvidos no processo? Algo que vou aprofundar e esta relação da cultura e educação como forma, incluse, de desconstruir mazelas sociais, como o consumismo, racismo, homofobia, entre outras. Como discutido na aula do dia 03/10/16, a diferença da \"cultura\" e cultura é o indivíduo considerar a sua como mais importante é banalizar a do outro, sem muito saber ou nada.
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Marcia Livia Gomes (via FB) comentou:
05/02/2016
Bons sonhos, professor,. Bons Sonhos!!,,,,
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Juliana Venturelli (via FB) comentou:
05/02/2016
a questão que me rodeia é se há de fato peitos e bundas mesmo... porque é tanto silicone!
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Pablo Freitas comentou:
04/02/2016
Essa história da última aula do Darcy para uma criança ouvi da minha mãe, Catarina Fontes, que conheceu e trabalhou com Darcy Ribeiro, quando foi vice-governador do estado.
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Ana comentou:
01/05/2014
O Darcy tem razão, o pássaro da cultura não voa com uma asa só. Essa ideia também poderia servir de inspiração para o desenvolvimento do país, pois sem os povos indígenas, a população mais pobre, sem o respeito e reconhecimento dos direitos deles o Brasil não decola.
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David Almeida comentou:
05/07/2013
Meu queridíssimo, Ribamar Bessa Freire, fui aluno de sua sobrinha Ana Paula, e sempre li suas cronicas, não todas, claro! Você é o máximo, maravilhoso, nunca tinha tido oportunidade de lhe dizer, com receio das respostas...rsrsrs, Mas agora criei coragem, pronto,! Disse o que sempre tive vontade. Seu texto é fantástico. Quanto ao Apolo, pelo que eu li, se ele tem essas duas asas nunca voou nem vai voar, pois não sabe que pra voar, as duas tem que estar em sincronia com a liberdade do voo... Um abraço. OBS: Gostaria de receber suas cronicas por e-mail se for possível...
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David Almeida comentou:
05/07/2013
Meu queridíssimo, Ribamar Bessa Freire, fui aluno de sua sobrinha Ana Paula, e sempre li suas cronicas, não todas, claro! Você é o máximo, maravilhoso, nunca tinha tido oportunidade de lhe dizer, com receio das respostas...rsrsrs, Mas agora criei coragem, pronto,! Disse o que sempre tive vontade. Seu texto é fantástico. Quanto ao Apolo, pelo que eu li, se ele tem essas duas asas nunca voou nem vai voar, pois não sabe que pra voar, as duas tem que estar em sincronia com a liberdade do voo... Um abraço. OBS: Gostaria de receber suas cronicas por e-mail se for possível...
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Arabi e Osiris Silva comentou:
14/04/2012
Você cresceu muito. De assistente de marmita do Geraldão, no bairro de Aparecida, em Manaus, a um dos maiores cronistas do Brasil foi um passo e tanto. Sentimos muito orgulho de haver sido seus colegas de Estadual e amigos até hoje. Grande abraço. Arabi e Osiris Silva
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