E mesmo que toda a gente / fique rindo, duvidando
destas estórias que narro, / não me importo: vou contente
toscamente improvisando / na minha frauta de barro.
Luiz Bacellar (1928-2012)
.Quando o marechal Dutra presidia o Brasil, sendo governador do Amazonas Leopoldo Neves, o Pudico, e bispo de Manaus Dom João da Mata, um anjo desceu no n º 86 da Rua Bandeira Branca - um barraco de taipa e zinco - e disse ao seu morador:
- Não temais, Osmar. Já que sois fundidor de profissão, Marina, vossa mulher, dar-te-á um filho e chamá-lo-ás Rubens, o que será motivo de júbilo. Muitos alegrar-se-ão com o seu nascimento.
Eis que Marina ficou buchuda, e os parentes, apalpando-a, chamavam de João o fruto do seu ventre. Doente, sem poder falar, Osmar pegou uma tabuinha e escreveu nela:
- “Rubens é o seu nome”. Acrescentou: “Chamá-lo-ei assim. Fi-lo, porque qui-lo”.
Todos ficaram pasmados, vendo que ele falava como anjo. Anjos adoram mesóclise.
Ave, Marina, cheia de graça! O seu filho nasceu uma semana antes do filho de Maria. Era um sinal de que fora enviado, como precursor, para anunciar quem viria depois dele. Nada mais natural do que chamá-lo João Batista, a voz que clama no deserto. Mas o igarapé de Manaus, no Amazonas, não é o rio Jordão, na Galiléia. E foi aqui, no nosso bosteiro vivo, e não lá, no mar morto, que veio ao mundo o novo profeta, no dia 18 de dezembro de 1947. Por isso, em vez de João, foi batizado mesmo como Rubens. No plural. Afinal, ele não era um, era muitos, era tantos, e ainda por cima carregava duas frutas - lima e pera - na sua árvore genealógica: Rubens Lima Pereira.
Desde a infância, Rubens percorria becos, vielas e ruas vendendo broas, com um pregão inconfundível e único, só dele. Por isso, virou Rubem, no singular. Depois, foi-lhe acrescentado um apelido: “Rola”, porque quando o aperreavam muito, colocava a dita cuja pra fora da calça, balançando-a pra lá e pra cá, mas nunca em presença de donzela, por razões de respeito.
A única moça que viu a coisa balançar - e nunca se queixou - foi a Zilá, irmã do Guilherme P.V. conhecido como Porca Vadia. Mas isso são segredos que ninguém revela, nem sob tortura. O importante é que o bairro entendeu que mais vale uma rola na mão do que duas frutas voando e trocou o Rubens, lima e pêra, pelo Rubem Rola. Ficou, pois, Rubem Rola .
O broeiro e suas broas
O pai de Rubem Rola, seu Osmar Pereira, trabalhava numa fundição. Despediu-se cedo da vida, deixando Marina sozinha com cinco órfãos, todos broeiros: Fátima, Paulo Gaina, Rubem, Amélia e Jorge. O salário da viúva, como arquivista da SEDUC, não dava pra manter a família. O jeito foi criar uma pequena empresa artesanal, a Indústria de Gêneros Alimentícios Rolamar Ltda., assim denominada porque seus dois pilares eram, justamente, Rola na venda, e Marina na produção, ajudados por tios e primos: Paulo Tripa, Rui, Tupá e Irene - a famosa Miss Broa.
O segredo da broa era a combinação equilibrada de goma de macaxeira, leite, açúcar e canela. Tinha um cheiro afrodisíaco e se entregava sem resistência, derretendo na boca. Quando mudou de dentadura, não podendo mais comer pão, o ex-governador Gilberto Mestrinho, que morou no bairro, encomendava diariamente um tabuleiro de broas Rolamar, que ninguém mais poderá saborear, pois Marina, hoje aposentada, com mal de Parkinson, morando com sua filha Fátima lá na Matinha, não ensinou a receita. Tem uma broa similar, lá na feirinha de Aparecida, às terças-feiras, na banca em frente ao açougue do Luiz Enrolão. Mas aviso logo: não é a mesma coisa.
Despertando de madrugada para fabricar broas, Rubem cursou o primário no Cônego Azevedo, onde foi alfabetizado pela professora Teca Alencar.
- “Ele tinha boa memória, era inteligente, de boa índole, e só não rendia mais porque morria de sono” – ela conta.
De lá, saiu para trabalhar como auxiliar de serviços gerais no Sólon de Lucena. Seu diretor, Bartolomeu de Vasconcelos Dias, descolou em 1970 uma passagem num avião da FAB, e lá foi Rubem Rola voando para o Rio, onde morava sua tia Marisa, doceira, numa favela em Cordovil. Por medo da bandidagem, ele passava o dia trancado em casa, lendo a Bíblia e fazendo brigadeiros. Voltou pra Manaus, sem ter visto de perto o mar e o Cristo Redentor, mas com a barba crescida e a cabeça raspada.
O profeta e a bíblia
Broa é feita de goma, leite e açúcar. Já profecia se faz com Bíblia, barba e cabeça raspada. O anúncio das duas exige voz forte. Rubem, profeta, aposentado por invalidez, predica aos berros, no meio da rua, como quem oferece broas. Diariamente visita dona Vera, uma comerciante portuguesa, entrevada há anos numa cama, sob os cuidados do genro, de apelido ‘Boneco '. Sai de lá bradando:
- Raça de víboras, a árvore que não produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo. Preparai os caminhos do Senhor e endireitai suas veredas! Boneco, produz bons frutos, Boneco! Compra um ar-condicionado pra Dona Vera, Boneco! Vós morais de graça na casa dela, deixai de ser miserável, Boneco.
Na sua peregrinação diária, ele vê a viúva do senador João Bosco batendo papo com a irmã do Lelé. Aí, grita:
- Mosa e Neide, rezai o terço e fazei penitência, em vez de fazer fofoca , porque está próximo o reino dos céus.
Assusta o cantor Estevão Santos, clamando:
- Estevinho, vou contar que você disse que a Zilá tem bunda empinada! Eu não sou baú, Estevinho! Cachorro do mato não procura poste. Crê no Evangelho, Estevinho!.
Do Aguimar, ele cobra:
- Completou-se o tempo, o Reino de Deus está próximo ! Quem tem duas túnicas, dê uma ao que não tem! Quem tem dois pratos de pirão, compartilhe com seu irmão ! Aguimar, divide teu pirão !
As crianças adoram o Rubirola, talvez porque ele seja muito brincalhão, pacato e dócil. Prestativo, recolhe o lixo nos becos onde o caminhão da coleta não entra, compra jornal, carrega objetos, vai ao supermercado e recusa pagamento por esses pequenos serviços. Religioso, não perde uma novena. Um dia, eu vi – ninguém me contou – dona Elisa e minha amiga Vânia Tadros na igreja. Entre as duas, Rubem, barbudo, careca e com unhas grandes como o Zé do Caixão. Os três cantavam, afinados:
- “Viva a Mãe de Deus e noooossa, sem pecado concebiiiida”.
Delicado, Rubem nunca esquece os aniversários dos amigos. Outro dia chegou na casa do Lê, cantando parabéns. Levava uma caixa de guaraná, de presente. Rubem nos dá lições cotidianas de generosidade e ternura.
De sacanagem, o pessoal provoca:
- Rubirôla, quem são os doidos do bairro?
Ele, sem qualquer modéstia, se coloca como o primeiro da lista:
- Eu ... o Jaú , a Ana Careca, o Solaninho... Às vezes acrescenta: “...a Bambi, a Cida, a Tchose-Tchose”, que são suas colegas da 41ª Seção eleitoral, do Cônego Azevedo, conhecida como ‘a urna dos malucos '.
Esse Rubem Rola é mesmo engraçado. Vive fingindo que é doido pra poder dizer algumas verdades que ninguém quer ouvir. A doidice fingida é um hábeas-corpus preventivo. Ele, que votou no PT, lamenta:
- Tuta, cara, a situação do país tá phoda. O Lula tá pisando na bola, cara! Não paga a dívida atrasada com o povo brasileiro, mas tá pagando adiantado pro FMI. O Bush e o Bin Laden vão acabar acertando o Lula.
Rubem toma remédio controlado, administrando sua maluquez, misturada com sua lucidez. Doidos são os outros:
- O Babá é maluco, cara ! Passa pela ponte Rio-Niterói todo dia, se aquela porra cair, quero ver neguinho poliglota, que ensina inglês pros índios, pedindo penico.
Dorme e acorda cedo. Às 18:00 horas, fica na janela, muito na sua, olhando a banda passar, sem falar com ninguém. Mandou recado:
“ Diz pro Babá botar meu nome no Diário ”.
Hoje, dia de seu aniversário, ouço uma voz que baixa do céu, dizendo pra ele:
- Eis meu filho muito amado em quem ponho minha afeição e toda a minha complacência.
Dedico a crônica ao amigo, irmão, quase-cunhado, Rubem Rola, com quem compartilho idade, aversão por sapatos e desconfiança de sujeitos normais.
P.S. – A charge é do Tuta, que me avisa: na semana passada, morreu César Bandeira, 67 anos, deixando viúva Vaneide Pacheco, três filhos e três netos. O bairro está triste, de luto.