CRÔNICAS

Meu amigo Rubem Rôla

Em: 18 de Dezembro de 2005 Visualizações: 16848
Meu amigo Rubem Rôla

E mesmo que toda a gente / fique rindo, duvidando

destas estórias que narro, / não me importo: vou contente

toscamente improvisando / na minha frauta de barro.

Luiz Bacellar (1928-2012)

.Quando o marechal Dutra presidia o Brasil, sendo governador do Amazonas Leopoldo Neves, o Pudico, e bispo de Manaus Dom João da Mata, um anjo desceu no n º 86 da Rua Bandeira Branca - um barraco de taipa e zinco - e disse ao seu morador:

- Não temais, Osmar. Já que sois fundidor de profissão, Marina, vossa mulher, dar-te-á um filho e chamá-lo-ás Rubens, o que será motivo de júbilo. Muitos alegrar-se-ão com o seu nascimento.

Eis que Marina ficou buchuda, e os parentes, apalpando-a, chamavam de João o fruto do seu ventre. Doente, sem poder falar, Osmar pegou uma tabuinha e escreveu nela: 

-Rubens é o seu nome”. Acrescentou: “Chamá-lo-ei assim. Fi-lo, porque qui-lo”.

Todos ficaram pasmados, vendo que ele falava como anjo. Anjos adoram mesóclise.

Ave, Marina, cheia de graça! O seu filho nasceu uma semana antes do filho de Maria. Era um sinal de que fora enviado, como precursor, para anunciar quem viria depois dele. Nada mais natural do que chamá-lo João Batista, a voz que clama no deserto. Mas o igarapé de Manaus, no Amazonas, não é o rio Jordão, na Galiléia. E foi aqui, no nosso bosteiro vivo, e não lá, no mar morto, que veio ao mundo o novo profeta, no dia 18 de dezembro de 1947. Por isso, em vez de João, foi batizado mesmo como Rubens. No plural. Afinal, ele não era um, era muitos, era tantos, e ainda por cima carregava duas frutas - lima e pera - na sua árvore genealógica: Rubens Lima Pereira.

Desde a infância, Rubens percorria becos, vielas e ruas vendendo broas, com um pregão inconfundível e único, só dele. Por isso, virou Rubem, no singular. Depois, foi-lhe acrescentado um apelido: “Rola”, porque quando o aperreavam muito, colocava a dita cuja pra fora da calça, balançando-a pra lá e pra cá, mas nunca em presença de donzela, por razões de respeito.

A única moça que viu a coisa balançar - e nunca se queixou - foi a Zilá, irmã do Guilherme P.V. conhecido como Porca Vadia. Mas isso são segredos que ninguém revela, nem sob tortura. O importante é que o bairro entendeu que mais vale uma rola na mão do que duas frutas voando e trocou o Rubens, lima e pêra, pelo Rubem Rola. Ficou, pois, Rubem Rola .

O broeiro e suas broas

O pai de Rubem Rola, seu Osmar Pereira, trabalhava numa fundição. Despediu-se cedo da vida, deixando Marina sozinha com cinco órfãos, todos broeiros: Fátima, Paulo Gaina, Rubem, Amélia e Jorge. O salário da viúva, como arquivista da SEDUC, não dava pra manter a família. O jeito foi criar uma pequena empresa artesanal, a Indústria de Gêneros Alimentícios Rolamar Ltda., assim denominada porque seus dois pilares eram, justamente, Rola na venda, e Marina na produção, ajudados por tios e primos: Paulo Tripa, Rui, Tupá e Irene - a famosa Miss Broa.

O segredo da broa era a combinação equilibrada de goma de macaxeira, leite, açúcar e canela. Tinha um cheiro afrodisíaco e se entregava sem resistência, derretendo na boca. Quando mudou de dentadura, não podendo mais comer pão, o ex-governador Gilberto Mestrinho, que morou no bairro, encomendava diariamente um tabuleiro de broas Rolamar, que ninguém mais poderá saborear, pois Marina, hoje aposentada, com mal de Parkinson, morando com sua filha Fátima lá na Matinha, não ensinou a receita. Tem uma broa similar, lá na feirinha de Aparecida, às terças-feiras, na banca em frente ao açougue do Luiz Enrolão. Mas aviso logo: não é a mesma coisa.

Despertando de madrugada para fabricar broas, Rubem cursou o primário no Cônego Azevedo, onde foi alfabetizado pela professora Teca Alencar.

“Ele tinha boa memória, era inteligente, de boa índole, e só não rendia mais porque morria de sono” – ela conta.

De lá, saiu para trabalhar como auxiliar de serviços gerais no Sólon de Lucena. Seu diretor, Bartolomeu de Vasconcelos Dias, descolou em 1970 uma passagem num avião da FAB, e lá foi Rubem Rola voando para o Rio, onde morava sua tia Marisa, doceira, numa favela em Cordovil. Por medo da bandidagem, ele passava o dia trancado em casa, lendo a Bíblia e fazendo brigadeiros. Voltou pra Manaus, sem ter visto de perto o mar e o Cristo Redentor, mas com a barba crescida e a cabeça raspada.

O profeta e a bíblia

Broa é feita de goma, leite e açúcar. Já profecia se faz com Bíblia, barba e cabeça raspada. O anúncio das duas exige voz forte. Rubem, profeta, aposentado por invalidez, predica aos berros, no meio da rua, como quem oferece broas. Diariamente visita dona Vera, uma comerciante portuguesa, entrevada há anos numa cama, sob os cuidados do genro, de apelido ‘Boneco '. Sai de lá bradando:

- Raça de víboras, a árvore que não produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo. Preparai os caminhos do Senhor e endireitai suas veredas! Boneco, produz bons frutos, Boneco! Compra um ar-condicionado pra Dona Vera, Boneco! Vós morais de graça na casa dela, deixai de ser miserável, Boneco.

Na sua peregrinação diária, ele vê a viúva do senador João Bosco batendo papo com a irmã do Lelé. Aí, grita:

- Mosa e Neide, rezai o terço e fazei penitência, em vez de fazer fofoca , porque está próximo o reino dos céus.

Assusta o cantor Estevão Santos, clamando:

- Estevinho, vou contar que você disse que a Zilá tem bunda empinada! Eu não sou baú, Estevinho! Cachorro do mato não procura poste. Crê no Evangelho, Estevinho!.

 Do Aguimar, ele cobra:

- Completou-se o tempo, o Reino de Deus está próximo ! Quem tem duas túnicas, dê uma ao que não tem! Quem tem dois pratos de pirão, compartilhe com seu irmão ! Aguimar, divide teu pirão !

As crianças adoram o Rubirola, talvez porque ele seja muito brincalhão, pacato e dócil. Prestativo, recolhe o lixo nos becos onde o caminhão da coleta não entra, compra jornal, carrega objetos, vai ao supermercado e recusa pagamento por esses pequenos serviços. Religioso, não perde uma novena. Um dia, eu vi – ninguém me contou – dona Elisa e minha amiga Vânia Tadros na igreja. Entre as duas, Rubem, barbudo, careca e com unhas grandes como o Zé do Caixão. Os três cantavam, afinados:

“Viva a Mãe de Deus e noooossa, sem pecado concebiiiida”.

Delicado, Rubem nunca esquece os aniversários dos amigos. Outro dia chegou na casa do Lê, cantando parabéns. Levava uma caixa de guaraná, de presente. Rubem nos dá lições cotidianas de generosidade e ternura.

De sacanagem, o pessoal provoca:

- Rubirôla, quem são os doidos do bairro?

Ele, sem qualquer modéstia, se coloca como o primeiro da lista:

 - Eu ... o Jaú , a Ana Careca, o Solaninho... Às vezes acrescenta: “...a Bambi, a Cida, a Tchose-Tchose”, que são suas colegas da 41ª Seção eleitoral, do Cônego Azevedo, conhecida como ‘a urna dos malucos '.

Esse Rubem Rola é mesmo engraçado. Vive fingindo que é doido pra poder dizer algumas verdades que ninguém quer ouvir. A doidice fingida é um hábeas-corpus preventivo. Ele, que votou no PT, lamenta:

- Tuta, cara, a situação do país tá phoda. O Lula tá pisando na bola, cara! Não paga a dívida atrasada com o povo brasileiro, mas tá pagando adiantado pro FMI. O Bush e o Bin Laden vão acabar acertando o Lula.

Rubem toma remédio controlado, administrando sua maluquez, misturada com sua lucidez. Doidos são os outros:

- O Babá é maluco, cara ! Passa pela ponte Rio-Niterói todo dia, se aquela porra cair, quero ver neguinho poliglota, que ensina inglês pros índios, pedindo penico.

Dorme e acorda cedo. Às 18:00 horas, fica na janela, muito na sua, olhando a banda passar, sem falar com ninguém. Mandou recado:

“ Diz pro Babá botar meu nome no Diário ”.

Hoje, dia de seu aniversário, ouço uma voz que baixa do céu, dizendo pra ele:

-  Eis meu filho muito amado em quem ponho minha afeição e toda a minha complacência.

Dedico a crônica ao amigo, irmão, quase-cunhado, Rubem Rola, com quem compartilho idade, aversão por sapatos e desconfiança de sujeitos normais.

P.S. – A charge é do Tuta, que me avisa: na semana passada, morreu César Bandeira, 67 anos, deixando viúva Vaneide Pacheco, três filhos e três netos. O bairro está triste, de luto.

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10 Comentário(s)

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Maria do Carmo Cardoso comentou:
09/12/2021
Bessa, quando li a chamada para a crônica, lembrei de Rubilota, pensei se não seria sobre esse jogador do Vasco transferido para o Paissandu, se não me falha a memória. Não era! Mas foi interessante conhecer mais um personagem bessiano. Gosto muito dessas crônicas.
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Luiz Pucú comentou:
09/12/2021
Professor, tuas estórias malocadas nessa estoria é mesmo coisa de doido apaixonado pelo instante...quando me envolvo na leitura de tal jeito íntimo que sinto cheiro e ouço as vozes ROLANDO pelo tempo que você com mestria sabe buscar na tua biblioteca onde reside o potencial pedagógico do paradoxo. Paideguaço....
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Armando Barrella comentou:
07/12/2021
Sensacional essa crônica, só quem vive/viveu a Aparência conhece o peso semântico do Rubem. Lembro tantos causos do Rubem, mas uma em particular na esquina da Bandeira Branca com a Alexandre Amorim, ele gritava pra todos ouvirem, "dona Maria da padaria morreu, "fulana de tal" recebeu e deu o pino no pão que comeu". Essas tiradas, esses improvisos eram únicos do Rubem. Kkkkkk
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Lázaro Thiago comentou:
07/12/2021
Faltou a Eliana Toscano irmã do Rui e da Irene a miss broa, parabéns pelo texto, que linda homenagem, agora ele pode descansar, que aonde estiver possa está em paz...
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Mazinho Bacaba comentou:
18/08/2013
Em todas as cronicas e memórias feitas sobre o bairro de aparecida,todos os autores estão de parabéns,mas esquecerão do garoto Mazinho(Bacaba) finho de D.Lourdes e Sr. Armando Valois (Dr. Valois) que em 1968 foram mora no Rio de Janeiro,Meu abraços a todos> Bacaba Contato de Mazinho Bacaba
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Paulino Pereira (1) comentou:
10/07/2011
Ribamar, quero lhe parabenizar pelo texto. Sou amigo de seu sobrinho Pão Molhado e sobrinho de Rubem Rôla. Confesso que fiquei emocionado com a breve historia de minha família, cheguei a lagrimar quando teceu comentários sobre minha vó Marina (que Deus a tenha), sou filho de Amélia e fui criado com Fátima e João no bairro da Matinha, infelizmente não pude presenciar a época em que vendáamos broa, mas minha mãe Fátima sempre conta algumas destas e fico vislumbrando em meu imaginário.
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Paulino Pereira (2) comentou:
10/07/2011
Fiquei surpreso e como sempre muito orgulhoso de todos eles e agradeço pela excelente homenagem que fez ao Rubens e também acredito que este usa seu modo maluco de ser para poder contar o que bem entende a todos. Abraços!!!
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Paulino Pereira comentou:
10/07/2011
Ribamar, quero lhe parabenizar pelo texto. Sou amigo de seu sobrinho pão molhado e sobrinho de Rubem Rôla. Confesso que fiquei emocionado com a breve historia de minha família, cheguei a lagrimar quando teceu comentários sobre minha vó Marina (que deus a tenha), sou filho de Amélia e fui criado com Fátima e João no bairro da Matinha, infelizmente não pude presenciar a epoca em que vendiamos broa mas minha mãe Fátima sempre conta algumas destas e fico vislumbrando em meu imaginário. Fiquei surpre
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Gilson Corrêa comentou:
09/01/2011
Babá, parabéns irmão. Tua crônica regasta de maneira brilhante e exemplar a inocência e a perspicácia de um anjo-amigo que grita livre pela Bandeira Branca, brincando na paz e alegria da nossa saudosa Aparecida.
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Antônio Eduardo Maia de Souza comentou:
25/12/2010
Parabéns pela excelente crônica. Sua forma de escrever é fantástica, vais delineando o tempo e o espaço com coisas paralelas que enriquecem o texto como um todo.
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