CRÔNICAS

Indo recolher os passos no Chile

Em: 03 de Setembro de 2023 Visualizações: 6336
Indo recolher os passos no Chile

Si vas para Chile / Te ruego, viajero / Le digas a ella / Que de amor me muero.  (Chito Faró, 1942)

Sim senhora, vamos ao Chile outra vez agora, 8 de setembro, em uma caravana de brasileiros que lá se exilaram em três levas. A primeira após o golpe de 1964. A segunda, da qual fiz parte, levada pelo AI-5, ambas no governo democrata cristão de Eduardo Frei. A terceira, na era Garrastazu, acolhida pelo governo socialista de Salvador Allende. Os chilenos solidários, que nos receberam de braços abertos, comprovam “cómo quieren en Chile al amigo cuando es forastero”.

Partiremos de várias cidades do Brasil. No Rio de Janeiro, o grupo de ex-exilados se reuniu sábado (26) no salão reservado da Taberna da Glória, que lotou. “Nunca vi família tão grande” – disse o garçom. O que ele viu foi apenas pequena amostra. Quantos foram os exilados? Calcula-se entre 3 até 4 mil pessoas, dos quais cerca de 500 formaram o grupo Viva Chile no WhatsApp. Desses, cerca de 100 voltaremos para agradecer em nome de todos a hospitalidade.

O grupo criado em maio pelo sociólogo Ricardo Azevedo e o matemático William Martani propiciou encontros e reencontros, veiculando milhares – eu disse milhares - de postagens sobre o exílio.  A última coisa ao me deitar e a primeira ao acordar era lê-las com sofreguidão. As narrativas, dolorosas umas, divertidas outras, tornaram-me um dependente anímico do Viva Chile.

Os relatos de violência, prisão e tortura me causaram seguidos pesadelos. E não fui o único a tê-los. Um dos administradores do Grupo, Beluce Bellucci conta isso ao descrever "O setembro de 1973 em Valdívia". Apesar disso, o que prevaleceu não foi nem a vitimização nem a glorificação de heróis individuais, mas a resistência coletiva, mostrando que no final, apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade. 

Pau-de-arara

Alguns exilados testemunharam o bombardeio do Palácio La Moneda, os tiroteios nas ruas, a busca de asilo em embaixadas, incluindo a do Panamá – um apartamento com três quartos pequenos que abrigou centenas de pessoas em pé, alternando horas de dormir. O economista Theotônio dos Santos e a socióloga Vania Bambirra doaram a própria casa para a Embaixada do Panamá, que abrigou mais de 300 pessoas, entre elas crianças e mulheres grávidas. A casa transformada depois em um centro de tortura, hoje é um museu de resistência.

Não convivi in loco com essa cruel realidade. Quando Pinochet emergiu das trevas, em setembro de 1973, eu já estava residindo no Peru. Só fui informado depois por amigos. O estarrecedor é que documentos oficiais atestam a participação da ditadura brasileira na preparação do golpe que derrubou Allende, desde 1970, quando o Itamaraty contatou militares chilenos de extrema-direita e espionou os exilados que, presos depois no Estádio Nacional, foram interrogados por agentes brasileiros da repressão.

Esses agentes torturaram não apenas seus patrícios, mas também os presos chilenos – segundo o jornalista Robert Simon, que se refere à incorporação do termo pau-de-arara no espanhol falado pela milicada chilena. Empréstimos lexicais revelam sempre as relações entre comunidades linguísticas. O léxico importado se referia ao método de tortura física, produto brasileiro de exportação.  

Esse tipo de “cooperação” foi uma política de estado, que poucos funcionários se recusaram a seguir, ao contrário do então embaixador da ditadura brasileira no Chile, Antônio Cândido Câmara Canto - guardem o nome do pilantra – que serviu com fidelidade canina à ditadura de Pinochet, de quem era amigo pessoal. Ele morreu em 1977 e virou nome de rua no bairro La Victoria, em Santiago, assim como no bairro de Piqueri em São Paulo, homenageado assim pelas duas ditaduras irmãs.

Luta pela memória

A rua de Piqueri parece esperar a eleição de Boulos para prefeito, mas a de Santiago – já está decidido pela subprefeitura chilena – vai mudar de nome e, por proposta do Viva Chile deve ser denominada rua Dr. Otto Costa Brockes, pediatra brasileiro preso e torturado no Estádio Nacional. Ele salvou filhos de tantas mães e examinou durante todo o exílio milhares de crianças de diferentes nacionalidades, conforme documentário da TV Senado.  

O Viva Chile vai inaugurar duas placas em Santiago: uma na embaixada do Brasil, que termina assim: “No Brasil e no Chile, ditadura nunca mais”. A outra na Praça Brasil nominando os brasileiros assassinados por Pinochet. Segundo William Martani, o grupo conta com o apoio do Itamaraty, do atual embaixador brasileiro no Chile, Paulo Roberto Pacheco e do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos). As placas já foram feitas e uma das atividades da caravana será a sua colocação.

Levaremos flores aos túmulos de Allende e de Victor Jara, além de cumprir uma extensa agenda política vinculada à luta pela memória. Visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos e à exposição de fotos de Evandro Teixeira a ser inaugurada no dia 10, atividade no Estádio Nacional, manifestação com velas acesas em memória dos mortos e desaparecidos, com performance teatral, música, danças, falas.

Na taberna da Glória

Tudo isso foi conversado na reunião da Taberna da Glória, onde todos cantamos Los Hermanos de Atahualpa Yupanqui observados pelo garçom Loyola, que tinha razão: somos uma grande família. “Yo tengo tantos hermanos, que no los puedo contar”.

O repertório musical incluiu ainda “Volver a los 17” de Violeta Parra. Juro – quero ver minha mãe mortinha no inferno se minto – que enquanto cantávamos, eu me sentia o próprio Milton Nascimento, vi o Chico Buarque na voz do Chiquinho Mendes, meu querido colega da Escola de Comunicação, naquele momento o Caetano era o Tuca ou o Gaiola, a Gal podia ser a Mônica Rabelo, a Márcia Fiani ou as ausentes Angelina e Leda Gitahy. A Mercedes Sosa era a Solange Bastos ou a Flávia Cavalcanti.

O retorno ao Chile será uma forma de “volver a los diecisiete, después de vivir médio siglo”. No mundo andino, que concebe o tempo como circular, ao chegar a uma certa idade as pessoas voltam aos lugares por onde passaram para “recoger los pasos”. É esse caminho de volta que faremos agora, os cem exilados, como uma forma de revisitar a história. “Eso es lo que sentimos nosotros en este instante fecundo”.

Referências:

  1. Roberto Simon:  O Brasil Contra a Democracia, Editora Companhia das Letras, 2021
  2. O médico Otto Brockes aborda aspectos de sua experiência durante o golpe que depôs pres. chileno – YouTube  https://www.youtube.com/watch?v=Mdo3SxFSnJY
  3. Emir Sader. O golpe militar no Chile 30 anos depois. 11 /09/ 2003 https://www.sintrajusc.org.br/30-anos-depois-leia-aqui-artigo-do-sociologo-emir-sader-sobre-o-golpe-militar-no-chile/

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24 Comentário(s)

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MARIA PAULA LEAL comentou:
08/09/2023
Emocionante. Voltei a 1973 quando em julho fui ao Chile. Foi uma viagem de visita a um exilado. Passei 14 dias convivendo com outros. Não esqueço.
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MARIA PAULA DE Oliveira Bonatto comentou:
07/09/2023
Que lindo encontro Bessa e companheiros! Que essa família reúna forças para alimentar nossas lutas!!! Grata por toda a resistência até hoje! Abraços a todos e todas!
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Rui Martins comentou:
06/09/2023
Opa, nessa eu gostaria de ir, mesmo se saí por Paris. Foi lá que conheci o Bessa. Seria uma bela oportunidade de conhecer o Chile, Bom, agora é tarde, vi tarde demais. Para os que vão boa vigem e curtam bastante. Fico torcendo daqui de Berna, na Suíça.
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rodrigo comentou:
06/09/2023
Que fotaça essa da capa. O encontro foi histórico na Taberna da Glória. Será uma viagem que trará muitas lembranças e com certeza grandes momentos, estou louco para saber tudinho. Estarei desde ja coladinho aqui no Taquiprati para saber de todos os detalhes da viagem ao Chile. Um abraço querido professor
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Maria do Céu Bessa Freire comentou:
05/09/2023
Aí, mano, eu chorei ao saber dessas vidas através dos teus escritos. Tanta vida, tanta história pra contar e reviver sentimentos... eu adoraria fazer parte disso, mas vou me emocionando com o teu olhar... que essa viagem sirva pra enterrar de vez os fantasmas do horror, e fazer surgir muitas vidas, que as ditaduras não conseguiram matar. Não é a toa q vcs estão aqui, nesse lugar, nesse tempo, para plantar flores em terrenos de horror. DITADURA NUNCA MAIS, NEM NO BRASIL E NEM NO CHILE
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Juliana comentou:
04/09/2023
Boa viagem!! Muita emoção :)
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Susana Grillo comentou:
04/09/2023
Bessa, que crônica linda e que iniciativa potente! Que todos recolham seus passos nessa trajetória de luta e resistência com muita alegria! Um grande abraço.
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Célia De Moura Borges comentou:
04/09/2023
Um viagem ao passado! Ontem mesmo estava lendo do assassinato terrível que sofreu Victor Jara. Foi a ditadura mais violenta da América do Sul.
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Vera Nilce Cordeiro Correa comentou:
04/09/2023
Estou indo ,daqui do Paraná, neste grupo, já ando me emocionando com as histórias vividas e contadas por muitos para nós no wats
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Luciana Grether (via FB) comentou:
03/09/2023
Bessa, estivemos com Maria e conversamos sobre esse momento de reunião precisa e preciosa no Chile que está prestes a acontecer. Que Emocionante ler aqui seu texto e dimensionar esse contexto.
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Sirlene Bendazzoli comentou:
03/09/2023
Querido José Bessa, não me dei conta e não me organizei para ir ao Chile, o que me deixa triste. Gostaria de ir para agradecer a acolhida de tantos brasileiros e entre eles minha irmã que presa e perseguida aqui, viveu como tantos refugiados, momentos de luta no apoio ao governo Allende. Depois, com o golpe, o caminho foi buscar abrigo numa embaixada até conseguir deixar o país. Minha mãe esteve no Chile duas vezes sendo a última nas vésperas da queda da democracia chilena. Vivi intensamente esse período, ouvi com carinho discos de grupos que colocavam sua arte a serviço do povo. Eu precisava ir para agradecer e homenagear. Se puder lembre desta minha mensagem, agradeça e festeje por mim também. Ela ficaria feliz.
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Maria Jose Silveira comentou:
03/09/2023
Que beleza, Bessa! Não estive no Chile, mas é como se estivesse! Caminemos, pues!
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
03/09/2023
E nós (eu e Zezé) acompanhando em Lima o desenrolar do golpe (a vã esperança que o general Prats resistisse), tristes e temerosos, e felizes depois que os brasileiros começaram a chegar.
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Celeste Corrêa comentou:
03/09/2023
Mano, que coisa linda esta crônica. Tu sabes que esse é um assusto que sempre me emociona muito. Estou viajando contigo desde o nascimento do grupo, e, a cada relato teu sobre essa viagem, me faz viajar contigo também. Eu penso que o Brasil, e todos os países da América Latina que viveram os horrores da ditadura, têm uma dívida histórica principalmente para com os familiares dos "desaparecidos" por esse regime cruel. E, para esse grupo que viveu esse contexto de horror, a revisitacao da história será uma caixa de memórias que vai além das tantas emoções que certamente vcs viverão. Revisitar esse passado significa também um ato de resistência representado no "Poeminha do Contra" do Quintana: esse canalhas passaram, vocês, passarinhos. Esses dias serão únicos, por isso façam muito barulho, cantem músicas, pois vocês são o símbolo da resistência. Deem bastante visibilidade para que as novas gerações possam conhecer esse período .duro e lutem para que a história não se repita. DITADURA, NUNCA MAIS!!
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Tania Pacheco comentou:
03/09/2023
PUBLICADO EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL - https://racismoambiental.net.br/2023/09/03/indo-recolher-os-passos-no-chile-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Dora Vargas comentou:
03/09/2023
Babá (José Ribamar), chego a sentir arrepios, mas os sinto pela emoção de tão linda proposta. Um viva à coragem, à memoria, à homenagem, à esperança! Queria ser uma mosquinha para acompanhar, assistir vocês e me alegrar junto com vocês por tanto! Receba o meu abraço e admiração, extensivo a todos, todas..... obrigada!
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Valter Xeu comentou:
03/09/2023
PUBLICADO EM PATRIA LATINA https://patrialatina.com.br/indo-recolher-os-passos-no-chile/
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Luiz comentou:
03/09/2023
José...chorei e pensei no que me disse um dia desses a Jessie Jane ;quando afirmei que a nossa "revanche é inevitável ". Respondeu que a REVANCHE é estarmos vivos e atuantes.. Chorei pq clandestino não tem amigos. Que foto enocionante.
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Angelina Teixeira Peralva comentou:
03/09/2023
Uma ressalva: os que primeiro se asilaram no Chile, em 1964, como meu tio Ib Teixeira, ali chegaram ainda no governo Alessandri. Eram tempos em que a tradição de asilo ainda era na América Latina uma política de Estado, independente das orientações políticas de cada governo. E isso me parece algo importante a destacar.
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Taquiprati comentou:
03/09/2023
Sim, Angelina, vc tem razão em chamar atenção para a tradição de asilo independente de posições ideológicas ou políticas. Fui verificar e efetivamente o Frei só assumiu no início de novembro de 1964. Quem governava o Chile era Alessandri, a quem EL CLARIN, irreverente e panfletário, chamava de LA VIEJUJA. Tenho de memória algumas manchetes do Clarin que nem tenho coragem de publicar, algumas até ligeiramente homofóbicas, ligeiramente, mas homofóbicas.
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Solange Bastos comentou:
03/09/2023
Que beleza de reportagem a do Bessa! Também gostei de conhecê-lo e à filha!
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Flávia Cavalcanti comentou:
03/09/2023
Conheci o Bessa no dia 26, na Taberna. Foi o primeiro a chegar, acompanhado da filha e sobrinha. Que encanto de pessoa, gentil, bem humorado. Gostei de graça. Agora leio sua crônica, seu registro afetivo desse encontro de exilados. Como disse a Vera, que beleza de texto, a tua cara. Parabéns, Bessa, que bom ter te conhecido.
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Vera Vital Brasil comentou:
03/09/2023
Que beleza de matéria, Bessa! Era o que faltava! Alguém que esteve lá no dia 26 trazendo tudo isso que vc conta! Adorei!
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Ana Silva comentou:
02/09/2023
Aguardo notícias das atividades no Chile. Linda, linda
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