Qual anúncio os povos da floresta e dos rios esperavam ouvir dos representantes de oito países da Cúpula da Amazônia, que assinaram a Declaração de Belém na quarta (9)? No mínimo, um discurso sobre energia limpa e sustentável diferente daquele feito em 1962 pelo então governador do Amazonas, Gilberto Mestrinho, na inauguração da Companhia de Eletricidade de Manaus (CEM), quando não atendeu o pedido de uma criança de 10 anos do bairro de Aparecida.
A súplica do menino chamado Cordeirinho se conserva na lembrança de alguns velhos moradores do bairro. Já a fala de Mestrinho está gravada no papel. Faz parte de 50 mil itens do arquivo Memória da Eletricidade da Eletrobrás, que possui ainda biblioteca com 12 mil livros e periódicos, além de documentos orais com mais de 300 depoimentos. Este acervo gerou pesquisas e exposições, que renderam a publicação de mais de 100 livros sobre o setor elétrico.
São esses documentos que permitem reconstituir a história da matriz energética de Manaus, incluindo a inauguração da nova usina da CEM, na rua Wilkens de Matos, bairro de Aparecida, ocorrida num momento em que Manaus estava mergulhada na escuridão, com racionamentos constantes de energia elétrica. No entanto para produzir energia, a CEM dependia de combustíveis fósseis como o petróleo.
O problema começou a ser resolvido parcialmente com a criação, em 1956, da Companhia de Petróleo do Amazonas (COPAM) pelo empresário I.B. Sabbá, mas Manaus continuou enfrentando crises energéticas agudas até a inauguração da termelétrica da CEM pelo governador Mestrinho, que em seu discurso fez a apologia do petróleo, embora moradores do bairro reclamassem da poluição sonora, da água e do ar.
Petro óleo
Quase 30 mil pessoas presentes na Cúpula da Amazônia, em Belém, realizada pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), esperavam um discurso diferente daquele pronunciado por Mestrinho há mais de 60 anos. Os tempos agora são outros, mas nem tanto. A declaração final contém alguns avanços, mas decepcionou ao não adotar medidas contundentes para a defesa do bioma e do clima.
Os avanços se referem ao compromisso da Pan-Amazônia de combater o crime ambiental, que ultrapassa fronteiras e de monitorar o uso da terra, além garantir os direitos indígenas sobre o território que ocupam com a obrigatoriedade de consultá-los em projetos que os afetam, tal como previsto pela Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
No entanto, a Declaração de Belém não atendeu as expectativas no que se refere à limitação do desmatamento, “um ideal a ser alcançado na região”, diz o texto, de forma muito vaga, sem estabelecer metas ou prazos para a preservação da floresta e para a redução das emissões de carbono. Sob os protestos dos movimentos socioambientais, não foi aprovada a proposta da Colômbia para que os oito países proibissem a exploração de petróleo na região.
Em fala recente, Lula manifestou que quer “continuar sonhando com a possibilidade de exploração de petróleo na Foz do Amazonas”, o que para o presidente colombiano, Gustavo Petro, é um pesadelo, um “contrassenso sem sentido”, que libera muito CO2 na atmosfera, aumenta o efeito estufa e concorre para o aquecimento global. O discurso dele foi, como se diz, “no olho” – comentou uma militante ambientalista nascida em Aparecida, hoje residente em Roma, de onde acompanhou a Cúpula da Amazônia.
Canelas Frescas
E onde é que nessa história entra o encontro de Mestrinho com o Cordeirinho? O cenário foi o Plano Inclinado, uma área onde a Manáos Tramways & Lighting conhecida como Manaustrã havia instalado, em 1896, a primeira usina de eletricidade de Manaus. depois ocupada pela Cervejaria Miranda Corrêa, fabricante da XPTO, pelos galpões da Serraria Hore e de outras serrarias do grupo Sabbá.
O desencontro foi assim. A gente criou um time infanto-juvenil no Beco da Bosta, o Canelas Frescas Futebol Clube. Mas não tínhamos equipamento, nem dinheiro para comprar onze camisas, cujo modelo havia sido criado pelo Tuta. Quando soubemos que o governador viria ao bairro para inaugurar a CEM, decidimos pedir dele que doasse o uniforme do time. Escalamos o Cordeirinho como porta-voz.
No dia do evento, tocava o jingle “Gilberto é amigo da criança, Gilberto é a nossa esperança”, enquanto o governador descia de um carro preto sem capota lá no Plano Inclinado. Encontramos uma brecha no meio da multidão e empurramos o Cordeirinho, nosso emissário, que ficou frente a frente com o “amigo da criança”.
- O que você quer, meu filho – disse Mestrinho acariciando a cabeça do garoto.
- Dinheiro - respondeu meio envergonhado.
- Quanto? Para quê?
- Para comprar um picolé de groselha – gaguejou o Cordeirinho que, embora intimidado, ainda escolheu o sabor, inspirado no sacolé ou dindin caseiro vendido pela Leonor.
Não tenho trocado – respondeu o governador. E sumiu em direção ao palanque protegido pelos correligionários do PTB.
Dessa forma, o Canelas Frescas perdeu a oportunidade de ter um equipamento. Os craques do time, comandados por Etelvino, cobraram do Cordeirinho. Ele confessou que na última hora teve vergonha de pedir os uniformes muito caros e optou por algo barato e pessoal. Quem pede pouco, fica sem nada – uma lição a ser aprendida pelos 8 países que assinaram a Declaração de Belém, pedindo um picolé de groselha. Nem isso. Um mero sacolé ou dindin.
P.S. Manoel Bessa Filho (1931-2003)
– Jesus Cristo teve pai na terra?
- Não, somente mãe que foi a Virgem Maria.
O diálogo é do Catecismo da Igreja Católica, que a gente aprendia ainda criança e que foi assim parodiado, com muito humor, pelo padre Manoel Bessa:
- Manezinho teve pai na terra?
- Não, somente mãe que foi a dona Maria.
A mãe de Manoel Bessa Filho, minha avó Maria Elisa, ficou viúva uma semana antes do seu filho caçula nascer. Professor, padre, juiz, vereador, casado três vezes, 5 filhos, muitas vezes tio, era carinhoso e muito amado por seus sobrinhos. Sua missa de 7° dia foi celebrada neste sábado (12). As nossas divergências políticas nunca impediram o exercício do afeto mútuo. As lembranças são muitas. Quando fui preso no meu retorno do exílio, em 1977, ele foi corajosamente me visitar, num gesto de solidariedade. Que descanse em paz!