.“Crimes da terra, como perdoá-los? (...) O meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima”. (Carlos Drummond)
Fecha os olhos, leitor (a), e pensa rapidinho no político mais corrupto do Amazonas. Pensou? É esse mesmo! Imagina, agora, que o dito cujo acabou de morrer. O velório é na Assembléia Legislativa. Deputados, senadores, secretários, autoridades civis, militares e eclesiásticas, empreiteiros e empresários, prefeitos do Juruá e do Purus, todo mundo com cara compungida, falando baixinho, fingindo tristeza.
O Almir Neves capricha nos funerais. Coroas de flores com frases grandiloqüentes cobrem o caixão. Os belões, os azedos, os lupércios, os berinhos, os paus derneys e derleys, todos bacabeiros, todos emocionados, fazem discursos transmitidos por emissoras locais de rádio e tv. A retórica retumbante apresenta o dito cujo como o grande herói da nossa história, o cara que fez, aconteceu e coisa e tal. Só de imaginar, já me dá até vontade de chorar.
É impressionante como a morte tem o poder de purificar as pessoas, transformando vigaristas em santos. De repente, a biografia do morto é maquiada e retocada. Antes mesmo de subir pela última vez o boulevard Amazonas, ele se torna personagem histórico e passa a ser nome de avenida, de escola, de bairro, de hospital, de maternidade. Nós – eu e tu, leitor (a) - olhamos o caixão e sabemos que lá dentro está um refinado pilantróide, um patife de marca maior. Mas não podemos dizer nada.
Será que podemos contar em voz alta as falcatruas do morto e estragar – digamos assim – a festa do velório? Como fazer um contra-discurso para restaurar a verdade? É válido esculhambar a memória de um defunto? Ninguém comete tamanha indelicadeza, pelo menos enquanto o cadáver está quente. Afinal, um morto é um morto. Diante da morte, por respeito à dor da família, é preciso baixar as armas.
Capirotíssima Trindade
Com o ditador Augusto Pinochet, morto domingo passado, não precisamos ter esses cuidados. Ele nunca pediu perdão, não é amazonense e sua família não lê este Diário do Amazonas. Portanto, nada de fingimentos, podemos sentar a ripa e afirmar que ele, Hitler e Bush formam a capirotíssima trindade mais execrável do século XX. Sua família, herdeira das contas no exterior, tentou transformá-lo em herói. Não colou.
Pinochet é responsável pela tortura, desaparecimento, dor e sofrimento de milhares de chilenos. Cometeu muitos crimes contra a humanidade, planejou seqüestros e homicídios com a “Operação Condor” e a “Caravana da Morte”, cometeu genocídio e terrorismo de Estado. Seus pecados bradam aos céus e pedem a Deus vingança. Quem viu os cadáveres dos chilenos boiando no rio Mapocho, em Santiago, jamais esquecerá.
Uma de suas vítimas foi o general Carlos Prats, comandante do exército chileno no governo Allende. Logo depois do golpe militar, Prats e sua mulher foram assassinados por uma bomba colocada em seu carro pela polícia chilena, em Buenos Aires, onde estavam exilados. Outra vítima foi o cantor Victor Jara, cujas mãos foram cortadas com requintes de crueldade. Mas Pinochet cometeu crimes não só por razões ideológicas. Ele também roubou e construiu uma fortuna pessoal.
Hoje nós sabemos que, além de sanguinário, Pinochet foi um gatuno, uma ratazana voraz, conforme indicam os processos movidos contra ele por evasão fiscal, uso de passaporte falso, contas secretas em bancos dos Estados Unidos no valor de mais de 23 milhões de dólares. Isso não impediu que alguns jornais o elogiassem, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo “milagre econômico chileno”.
Que milagre foi esse? O escritor e diplomata cubano, Lisandro Otero, lembra que as companhias mineradoras Kennecot e Anaconda, cujo lucro líquido anual era de 200 milhões de dólares, foram nacionalizadas pelo governo Allende, que realizou também a reforma agrária em um país onde apenas três mil famílias eram donas de oitenta por cento das terras.
O milagre de Pinochet consistiu em dar um golpe militar, com apoio da CIA e dos Estados Unidos, desrespeitando a vontade popular, para devolver às mineradoras norte-americanas o monopólio da exploração do cobre e restituir a terra aos latifundiários. Ele entregou o país aos grandes grupos financeiros, quebrou as organizações sindicais, acabou com o direito de greve e outras conquistas trabalhistas, aumentando a pobreza dos trabalhadores. O resto é conversa fiada, ‘son porotos granados’.
Muerto de mierda
Dizem que, antes de morrer, o moribundo recorda os momentos mais importantes de sua existência, e vê imagens passando diante de seus olhos como se fosse um filme. Suspeito que quando chegar minha vez, as cenas que vivi no Chile ocuparão uma boa parte do filme, embora minha passagem por lá tenha durado somente noves meses. É que foi em um momento histórico muito especial.
Era final de 1969 e início de 1970. Milhares de exilados brasileiros foram recebidos fraternalmente pelos chilenos, que compartilharam conosco a casa, a comida, o vinho, a música, a alegria, os sonhos. “Si vas para Chile, te ruego viajero, que digas a ella, que de amor mi muero”, dizia a canção. Como foram generosos os chilenos! Dormi em casas de pessoas desconhecidas, que nunca havia visto antes, que me acolheram e comigo dividiram o pão, só porque eu era exilado.
Assisti o comício da Unidade Popular, que sagrou Allende como candidato a presidente da República. Vi e ouvi o discurso de Pablo Neruda, retirando sua candidatura. Uns trinta artistas plásticos chilenos, ali, na hora, pintaram um grande mural no palanque. Os jovens e os trabalhadores ocuparam as ruas, bailando cueca, cantando, festejando o sonho de construir uma pátria sem miséria. Os chilenos estavam enamorados da vida, apaixonados pela perspectiva de mudança. Santiago era uma festa colorida.
Por isso, nessa semana, participei do júbilo nacional quando vi na televisão uma grande parte do povo chileno ocupar a Praça de Armas, a Alameda e a Praça Itália, em Santiago, festejando a morte do tirano com cartazes, bandeiras e faixas, como antigamente. Abri solitariamente uma garrafa de vinho e daqui, do Brasil, bebi com eles. Meu coração enfrentou quatro horas de fila ao lado do artista plástico Francisco Prats, neto do general Carlos Prats, só para, junto com ele, cuspir no caixão de Pinochet.
O poeta uruguaio Mário Benedetti publicou um poema “Obituário com hurras” no qual chama todos os inocentes, os danificados que gritam de noite e sonham de dia, os pobres congelados e os que abrigam fantasmas para comemorar a morte do crápula. “Vamos a festejarlo, a no volvernos flojos, a no olvidar que éste es un muerto de mierda”.
Hoje, leitor (a), não quero rezar o Pai Nosso para não ter de perdoar a quem tanto nos tem ofendido, sem nunca nos pedir perdão. Ao contrário, Pinochet, seu filho e seu neto, do mesmo nome, se vangloriam e se gabam dos crimes hediondos. Por isso, fico com o poema de Carlos Drummond: “Crimes da terra, como perdoá-los? (...) O meu ódio é o melhor de mim. Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima”.