CRÔNICAS

A humanidade dos índios: nós quem, cara pálida?

Em: 02 de Fevereiro de 2020 Visualizações: 12936
A humanidade dos índios: nós quem, cara pálida?

Os brasileiros aceitaram passivamente, sem questionamento, como se fosse

sua, aquela versão que o colonizador português deixou sobre os índios.   

 (Marcos Jiménez de la Espada, 1890)

A genial descoberta feita pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, de que “o índio está evoluindo e se tornando um ser humano igual a nós”, ainda não foi patenteada na Associação Brasileira de Antropologia (ABA). De qualquer forma, podemos extraoficialmente confrontá-la com as conclusões da Comissão Científica do Pacífico que andou investigando o assunto no séc. XIX em nome da monarquia espanhola. Assim, saberemos se essa tendência de “humanização” faz parte dessa memória histórica, consultando os relatórios da expedição que cruzou a cordilheira dos Andes até o rio Napo e desceu o rio Amazonas, em 1865, para analisar a biodiversidade e as culturas indígenas.

Vários expedicionários deixaram depoimentos, entre eles o zoólogo e historiador espanhol Marcos Jiménez que, por ser Espada, se torna insuspeito às hostes terraplanistas, embora o médico e antropólogo Manuel de Almagro, por ser cubano, possa não ser confiável.  Eles passaram em setembro de 1865 por Tabatinga (Am), quando constataram a existência de povos tão distintos como os Ticuna, os Omagua, os Kambeba. Lá encontraram a expedição científica norte-americana comandada por Louis Agassiz da Universidade de Harvard, com quem trocaram informações.

Diante da enorme diversidade cultural ao longo do rio Amazonas – diferentes línguas, religiões, saberes, organização social, arquitetura, etc. - os espanhóis sacaram logo de saída ser falsa qualquer conclusão que afirma “o índio é isso” ou “o índio é aquilo”, pois o índio genérico não existe, conforme constataram in loco. Existe o Yanomami, o Krenak, o Xavante, o Guarani. É operação idêntica à de colocar no mesmo saco, em contexto similar, espanhóis, franceses, alemães, ingleses como se fossem todos iguais por serem “europeus”, ignorando as particularidades de cada nação. Portanto, se faz necessário saber qual povo “está evoluindo e se tornando um ser humano igual a nós”.  

O “selvagem” desumanizado

Jimenez de la Espada iniciou a expedição achando que iria encontrar povos “selvagens, atrasados, luxuriosos e bestiais”, como está registrado no Tratado Descritivo do Brasil (1587) escrito pelo cronista luso do séc. XVI, Gabriel Soares de Souza. No entanto, durante a viagem foi desmantelando os preconceitos. Descolonizou sua cabeça ao se defrontar na época com conhecimentos avançados equivalentes aos compartilhados hoje por Raoni e Davi Kopenawa, que nesse momento estão dando conferências na Universidade de Oxford, no colóquio internacional sobre políticas ambientais, realizado de 31 de janeiro a 2 de fevereiro no Reino Unido.

A expedição espanhola constatou que cada sociedade indígena produz saberes, ciência, arte refinada, literatura, poesia, música, filosofia, religião, e transita por diferentes campos do conhecimento: botânica, zoologia, medicina, astronomia, agricultura, classificação e uso do solo, reciclagem de nutrientes, métodos de reflorestamento, melhoramento genético de plantas cultivadas, pesticidas e fertilizantes naturais, manejo da pesca. A expedição enviou ao Museu de Ciências Naturais de Madri mais de 80 mil exemplares da natureza e das culturas, que foram classificados pelos ameríndios, o que deixaria de boca aberta Lineu, o pai da moderna taxonomia.

Portanto, no séc. XIX as nações ameríndias estavam longe de “ser iguais” a Bolsonaro, que não domina tais saberes. E no séc. XVI? Jiménez de la Espada, professor da Universidade Central de Madri, que morreu em 1898, reorientou seu estudos e dedicou os últimos trinta anos de sua vida a estudar as fontes históricas sobre as antigas culturas americanas. Por razões até nacionalistas, decidiu mergulhar nos arquivos para verificar o que diziam os primeiros espanhóis que viajaram pela Amazônia, desde Vicente Pinzón, que “descobriu” a foz do grande rio, em janeiro de 1500, antes mesmo de Cabral aportar por aqui, passando pelas viagens de Orellana (séc. XVI) e Úrsua-Aguirre (séc. XVII).

O Brasil moderno

Lendo as informações etnográficas das crônicas de viagem, Jiménez de la Espada constatou que há 500 anos, os povos da Amazônia eram diferentes entre si e dos espanhóis, mas já estavam repletos de humanidade. Embora preconceituoso, Frei Carvajal, cronista de Orellana, cego de um olho, viu no séc. XVI o que Bolsonaro não consegue ver com dois olhos no séc. XXI. Registrou organizações sociais sofisticadas, o intenso comércio intertribal, a agricultura de várzea que revelava o conhecimento do ciclo do rio, técnicas de armazenamento que protegiam os alimentos durante a enchente e a cerâmica dos Tapajós, cuja beleza ele comparou à da China e da Grécia.

O capitão Bolsonaro nunca visitou uma aldeia indígena e certamente nunca leu um livro sobre o tema, o que é compreensível, porque afinal “livros têm muita coisa escrita”. Então, de onde ele tirou essa ideia de que “o índio está evoluindo e se tornando um ser humano igual a nós”? Talvez da única indígena que ele conhece, Ysani Kalapalo, que o acompanhou na comitiva da Assembleia Geral da ONU. Ela, realmente, parece estar se tornando um ser humano igual a ele, mas esse fato não lhe permite generalizar.

Já que livros “têm muita coisa escrita” e “tem que suavizar aquilo”, transcrevemos uma única frase de Darrell Posey, etnobiólogo que viveu com os Kaiapó. Darrell, que nasceu na pátria do Trump a quem Bolsonaro tanto venera e obedece, escreveu:

“Se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma “ponte ideológica” entre culturas, que poderia permitir a participação dos povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno”.

O bobo mau

O capitão quer, no entanto, dinamitar essas pontes construídas em parceria com universidades nacionais e estrangeiras. As organizações indígenas já se manifestaram, entre elas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) que através de Sônia Guajajara protocolou representação na Procuradoria-Geral da República contra Bolsonaro pelo crime de racismo. Seu assessor jurídico Luiz Eloy Terena condenou o “resquício colonial que domina a cabeça do presidente”. Lideranças e intelectuais indígenas também protestaram.

O escritor Daniel Munduruku no artigo “Quem tem medo do bobo mau?”, afirma que “não se pode esperar que nasçam pérolas de latrinas mentais”. Ailton Krenak argumenta que “quando falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem que é folclore; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover [...] eles dizem: não, uma montanha não fala. Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para serem resíduos da atividade industrial e extrativista”.

A artista plástica e ativista ambiental Narubia Werreria, do povo Iny (Karajá) da Ilha do Bananal, considera o – digamos assim – pensamento de Bolsonaro “débil historicamente, humanamente e cientificamente retrógrado” como dizer hoje que “a terra é plana”. Ela se dirigiu diretamente ao presidente: “Jair, me compare a um animal, mas não me compare a você e à sua suposta humanidade. Os animais conseguem ter mais empatia e racionalidade que vocês que, para nós, são vermes que alimentam sua ganância destruindo a vida na terra, todas as espécies e a sua própria, chamando isso de civilização”.

Bolsonaro não passaria num exame do ENEM, nem mesmo com correção revisada por Weintraub. O que tem dentro da cabeça dele e de muitos brasileiros que o seguem? A ideologia preconceituosa deixada pelo colonizador. Nesse caso, eles se desnudam, mostram despreparo e ignorância.  Diz-me o que pensas sobre os índios e eu dir-te-ei quem és. 

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20 Comentário(s)

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Francisco Foot Hardman comentou:
08/02/2020
Meu Caríssimo Bessa: Daqui da distante China, minha gratidão emocionada a esta tua maravilhosa e incisiva crônica, como os tempos sinistros brasileiros exigem. Grande abraço, Francisco Foot
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Ana Silva comentou:
05/02/2020
Bravo, excelente e oportuno texto. Aplausos! Do bozo não podemos esperar muita coisa, só destruição.
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Anne Oliveira comentou:
04/02/2020
Uma notícia dramática: Pastor confirma convite e Funai deve ter evangelizador em chefia de índios isolados https://www.brasildefato.com.br/2020/01/31/pastor-confirma-convite-e-funai-deve-ter-evangelizador-em-chefia-de-indios-isolados#.XjipUIACLPk.whatsapp. A evangelização praticada após a "descoberta do Brasil" foi uma arma contra os índios. Podemos conceder que, na época, não se possuia conhecimentos antropológicos como hoje, mas foi uma arma muito "bem vinda" para os colonizadores . Muitos índios morreram por terem perdido suas referências e o que os ligava à sua cultura. Estamos vivendo um retrocesso histórico à época da colonização e o o objetivo é: ou os índios evoluem para ficar "seres humanos como nós" (Bolsonaro), o que vai permitir comprar (barato) suas terras da mesma forma que se pode comprar o terreno do vizinho, ou eles morrem (e a terra deles fica livre para o agronegócio grillar).
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Rodrigo Martins comentou:
03/02/2020
Boa noite professor Bessa, tudo bem? Professor, as vezes penso: como um cidadão como esse conseguiu ser eleito com tamanha facilidade? A frase desse presidente é uma ofensa a todos os povos indígenas e a nós que queremos um Brasil plural e com mais oportunidades. Professor, muito interessante esse Tratado Descritivo do Brasil de 1587 do cronista Gabriel Soares de Souza. Abs querido professor. PS: Para quem quiser ler com mais precisão o Tratado Descritivo do Brasil de 1587 do autor português Gabriel Soares de Souza que o querido professor Bessa citou nessa crônica, envio esse link com o PDF do mesmo: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003015.pdf
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Anne Oliveira comentou:
03/02/2020
Conclusão: não há a menor possibilidade de Bolsonaro evoluir , dele se tornar um ser humano igual aos nossos índios de cultura tão rica e diversa.
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Maria Nilva Olavo (via FB) comentou:
03/02/2020
Bozo e índio são água e óleo, jamais se misturam.
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Jully Anna Pereirinha De Araújo Lima comentou:
03/02/2020
Isso nem pode se dar o nome de gente, são homúnculos, com o pensamento medieval, ou mais arcaico ainda! O Brasil é cultural e mesmo sem dinheiro se faz Cultura, eu sei pois vivo em um meio desses, mesmo que não haja fomento, a cultura vive e se faz, mas ser reconhecido o patrimônio cultural levará o nosso país a ter mais turistas internacionais e dará mais lucro do que o agronegócio do tempo da colonia, o Brasil precisa investir nas suas cores e não explorar a natureza para lucrar, e os índios negros cara pálidas, ergueram tudo isso aqui, os portugueses só trouxeram pragas e mortes, se fossem ditos gente, não assassinariam os índios nem escravizariam em nome do rei menos ainda de Deus!
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Maria Do Carmo Lourenço (via FB) comentou:
03/02/2020
Já ouvi alguns bocais lá no Sul de Minas dizerem: índio pra que? Não serve pra nada! Deveriam viver como pessoas normais. E, também: artista pra que, não serve de nada... E olha que é gente estudou! Gente que acha que tem que acabar com a floresta Amazônica pra construir fazendas porque acham que só o agronegócio é que dá lucro ao Brasil.
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Gerardo Leite Santiago (via FB) comentou:
03/02/2020
Saberes de nações que convivem com a natureza, em paz e harmonia
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Wanderley Ruas (via FB) comentou:
03/02/2020
Nessa foto vejo vários seres humanos, e só um asno de camisa amarela.
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Neuza Roque(via FB) comentou:
03/02/2020
Saberes que o infeliz que ocupa a presidência deveria saber ...
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Edna Miudin Guerreiro (via FB) comentou:
03/02/2020
Nenhum povo indígena quer sequer se parecer com o articulador tatibitati que temos a nos dirigir.
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Juliana comentou:
03/02/2020
¿Quién diría que un texto así sería necesario en pleno inicio de esta década?! Gracias por escribirlo, gracias por recordar que el tiempo ha pasado y que el pensamiento de una persona y sus seguidores representa la ideologia del siglo XVI y no nuestro tiempo. Gracias por darle voz a la humanidad indígena, es decir, a la humanidad de nuestros tatarabuelos y nuestra propia humanidad.
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Valter Xeu comentou:
02/02/2020
Publicado em Patria Latina. http://www.patrialatina.com.br/a-humanidade-dos-indios-nos-quem-cara-palida/
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02/02/2020
Muito bom recuperar o que os índios disseram hoje com o que os cronistas disseram ontem para colocar pra escanteio voces sabem quem
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Celeste Correa comentou:
01/02/2020
Mano, as redes sociais evidenciaram a mediocridade do capitão e dos seus seguidores, que cotidianamente abrem a boca e vomitam seus dejetos fétidos carregados de preconceitos, sem qualquer compromisso com a verdade ou com a ética. Sem nenhum freio civilizatório, Bolsonaro dinamita pontes construídas entre as culturas, desrespeitando todos que pensam diferente e que não "rezam na sua cartilha". É notório que ele não passaria num exame do ENEM, nem mesmo com correção revisada por Weintraub tamanho é o seu despreparo e ignorância, mas ele está aí, dinamitando pontes e destruindo tudo de forma metafórica e literal, sem nenhum freio porque ele é peça de um projeto político que atende a grandes interesses, projeto de pretensões globais de construção de uma nova internacional conservadora como o dos EUA e do Chile.
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MARCIA PARAQUETT FERNANDES comentou:
01/02/2020
Vc hoje se superou, querido Bessa. Parabéns, Marcia
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Pietra Dolamita (via FB) comentou:
01/02/2020
E ainda somos humanos, mas Indígenas , ainda bem!
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Rosario Valencise Gregolin (via FB) comentou:
01/02/2020
Ótimo texto para compreender as visões ideologocamente racistas sobre os índios no Brasil
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Maria Luiza Santos (via FB) comentou:
01/02/2020
Recomendo a leitura da crônica do meu querido Professor José Bessa. Fonte de conhecimento e agradável leitura
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