CRÔNICAS

Davi Kopenawa: a árvore que não envelhece

Em: 05 de Maio de 2019 Visualizações: 21790
Davi Kopenawa: a árvore que não envelhece

 "If I tell you stories all the time, I do not disappear".

(Patricia Portela - Scheherazade Flatland)

- Essa árvore lembra o tronco da Pore hi. Quando começa a envelhecer, troca de casca e fica nova outra vez. Ela descama pra se renovar. Por isso, não apodrece. Tem gente que é assim. Alguns pajés também nunca envelhecem, porque trocam de pele e se revigoram.  

Era 1º de maio. Estávamos no Campo de São Bento, em Niterói, onde na noite anterior Davi Kopenawa havia proferido a conferência “Ipa Theã Oni: Flecha para tocar o coração da sociedade não indígena”. Agora, no parque, ele observa cada detalhe daquela árvore majestosa – pau-ferro, segundo o jardineiro uma planta medicinal - que parecia a Pore hi dos Yanomami (Eugenia Flavescens ou Goiabinha), não pelo tamanho, mas pelo tronco duro e tortuoso, cuja casca se descola e se renova continuamente.

Carros trafegam nas ruas em volta do parque cercado por blocos de concreto dos edifícios. Longe de sua aldeia no sopé da “Montanha do Vento” (Watoriki), rio Demini, lá na fronteira com a Venezuela, Davi lê cada detalhe daquela árvore urbana na altivez dos seus vinte metros. Com olhar clínico, circula em volta dela, com quem conversa. Olha pra cima contemplando, silencioso, a copa onde galhos e folhas disputam a luz do sol. Apalpa e abraça o tronco liso cor de mármore, manchado como uma vaca malhada, mas aquele abraço afetuoso só enlaça a metade da base do tronco de três metros de diâmetro.

A árvore ferida

Foi ai que ele notou uma lesão no tronco descamado, decorrente de recente tentativa de assalto no parque. A árvore, como tantos outros seres inocentes no Rio, foi ferida por uma bala perdida. Ela passa bem, mas é mais um indício de que o céu pode desabar, como Davi já havia profetizado na abertura de seu livro “A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami”:

- “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger”.

“Os xamãs - ele prossegue - não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivos para sustentar o céu, ele vai desabar”.

Esse foi o tema central de sua conferência de encerramento do evento organizado pelo Centro de Artes UFF “Brasil: a margem 2019 – Teko Porã Cosmovisão e Expressividades Indígenas”, com exposições de artistas indígenas, filmes, encenações teatrais, minicursos, rodas de conversa, shows, oficinas, feira de artesanato e gastronomia. A “balbúrdia” da ciência e da arte durou uma semana e abriu esperanças no auditório lotado por quem chegou cedo. Porém – ai, porém - o corte de 30% das verbas da Universidade compromete sua reedição. Se não resistirmos, o céu começará a desabar.

O céu desaba

Muitas perguntas prolongaram por mais de três horas um encontro, no qual o conferencista foi aplaudido de pé. Uma delas feitas por alguém que indagou sobre o conteúdo do livro:

– “Leia que você vai saber” – respondeu bem humorado o autor, que depois autografou dezenas de exemplares.

Editado em 2015 em português, são 729 páginas com relatos de Kopenawa em língua Yanomami, recolhidos e traduzidos pelo antropólogo Bruce Albert com prefácio magistral de Eduardo Viveiros de Castro.  Trata-se de uma etnobiografia dividida em três partes: 1) “Devir outro” conta como Davi escutou os antigos xamãs que o iniciaram; 2) “A fumaça do metal” relata o contato dos Yanomami com os Napë (os brancos); 3) “A queda do céu” descreve a trajetória de Davi no mundo branco para denunciar a devastação da floresta e de seu povo, profetizando um futuro funesto para o planeta.  

Muitos temas foram abordados na conferência de Davi Kopenawa, entre eles o desastre ecológico, o aquecimento global, o garimpo, os massacres dos Yanomami, Krenak, Guarani e Waimiri-Atroari na época da ditadura, o agronegócio, a proposta de uma universidade indígena, os ataques contra a Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI) e o projeto de municipalização do governo Bolsonaro, que “quer nos matar, mas não é só com tiro, é de doenças, como já mataram minha família com o sarampo”.  

O povo da mercadoria

Diante da pergunta de um mestrando sobre os sonhos, o sábio Davi Kopenawa comparou as aspirações individuais da sociedade de consumo com a utopia de um mundo melhor para todos:

- O povo da mercadoria dorme muito, mas só sonha com ele mesmo. Sonha em comprar carro, casa, roupas, gasolina, tudo. Seu sonho é consumir, numa relação doentia com a terra, por isso ele mata a floresta, que não conhece, mas está viva e daí vem sua beleza. Se a floresta morre, nós e os napë morreremos com ela.  Os brancos talvez não ouçam seus lamentos, mas ela sente dor, como os humanos. Suas grandes árvores gemem quando caem e ela chora de sofrimento quando é queimada. Ela tem coração e respira.  Acho que vocês deveriam sonhar a terra.

Para Davi, essa é a razão pela qual o Napë não sonha tão longe quanto os Yanomami, cujo sonho é diferente, como o voo do gavião que voa alto, porque sabe que “foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cujas águas bebemos, foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Foi ele que criou os xapiri para nos proteger das doenças e da morte.

 Do auditório, Taily Terena perguntou o que Davi diria para os estudantes indígenas que vivem na cidade.

- Eu perguntaria: a comunidade autorizou vocês? É um projeto individual ou coletivo? A escola do governo é boa, é importante aprender o mundo do branco, como fez Joênia Wapixana, advogada, que luta por nós. A comunidade espera que quem se formou, advogado, médico, dentista, professor, volte pra ajudar. Vocês estão aqui no Rio de Janeiro e alguns não voltam. A minhoca come a alma dessas pessoas que se vendem. É assim que funciona o mundo dos brancos. Tem que ter cuidado, os políticos querem usar a escola para enganar a gente.   

Outra pergunta foi sobre as andanças de Davi Kopenawa, que já viajou pela Europa, França, Bahia, pelo mundo inteiro. Com bastante humor – ele é um tremendo gozador – contou que foi à Grécia com Aylton Krenak e que Atenas é uma cidade bonita, mas infelizmente tem muita coisa quebrada, muitas ruínas.

O narrador vive

No dia seguinte, chegando em casa acompanhado de José Ignacio Gomeza Gómez, o Iñaki Charrua, Davi viu algumas peças de artesanato. Tocou nas tramas dos tecidos de fibra de coco que enfeitavam a mesa e nas texturas das cabaças andinas, passou as mãos por esses e outros objetos, como que decodificando como foram feitos, seus matérias, suas técnicas.

Depois, fez um relato performático, quando se recostou na cadeira, quase se deitando, jogou a cabeça para trás, abriu os braços para as laterais, ele era a água que jorrava plena e que refletia a lua e o sol em risos que o atravessavam. Com uma das mãos fazia uma linha no meio do corpo, perpendicular aos braços abertos e ficou por algum tempo nessa posição, contando, repetindo, respirando, fazendo do seu corpo a imagem que queria descrever. Se Walter Benjamin assistisse o que eu vi e ouvi diria que o narrador ressuscitou. Ou então nunca morreu.  

Davi Kopenawa, grande narrador, pai de seis filhos, avô de oito netos, fundador da Associação Hutukara que representa os Yanomami, reconhecido internacionalmente, ameaçado de morte desde 2014, acumula saberes milenares e a força de uma resistência centenária, com sua juventude de sessenta e poucos anos. Com várias flechadas, tocou o coração não indígena. O xamã Davi Kopenawa, como a pore hi, não envelhece nunca. Resiste. 

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27 Comentário(s)

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Vera Lucia Kauss comentou:
09/05/2019
Texto maravilhoso!!!! Quanta sabedoria, quantas afirmações que conhecemos, mas que a ignorância e a cobiça de muitos não conseguem entender...
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Bartomeu Melià S.J. comentou:
06/05/2019
Gracias, Davi. Com a ajjuda de nossos antepassdos que a pele de nosso espírito nunca envelheça. Che py'a iteguive desde o mais profundo de minhas entranhas. Bartomeu Melià, s.j.
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Rodrigo Martins Chagas comentou:
06/05/2019
Boa noite, professor Bessa, tudo bem? Linda crônica professor !!! E ao ler fiquei feliz e admirado com tamanha sabedoria do Davi Kopenawa, um verdadeiro poeta. Quem dera todos tivessem o conhecimento e respeito pela natureza como ele tem. Outro fato que gostaria de destacar é que as fotos ficaram ótimas, adorei! Um abraço querido professor! PS: Professor, agora eu tenho uma nova meta de vida: ter uma estante de livros tão bonita e repleta de livros como a que o senhor tem. Um dia eu chego lá.
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Francisco Foot comentou:
05/05/2019
Excelente, meu caro Bessa. Muito obrigado por essa crônica certeira como flecha! Vou repassar a meus estudantes do IEL-Unicamp. Grande abraço, FFH
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Patricia Cerqueira comentou:
05/05/2019
That is true!!!!!! "If I tell you stories all the time, I do not disappear". (Patricia Portela - Scheherazade Flatland)
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Ivânia Neves comentou:
05/05/2019
Meu querido, você é um homem sem definição, mas se precisasse lhe definir em um único adjetivo, sem titubear, diria: “É um poeta!”
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Marlene Silva comentou:
05/05/2019
Boa tarde! Que linda essa crônica. Eu fiquei de boca aberta com tanta sabedoria e muita verdade. As universidades já estão sucateadas, e o governo ainda quer cortar verbas não podemos ficar calados, eu tenho visto várias reportagens sobre os cortes de verbas, temos que gritar. Agora com o celular estou "reaprendendo"a escrever.
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Alexandre de Oliveira Pimentel (via FB) - comentou:
05/05/2019
Texto lindo e poético de José Bessa sobre essa grande força da natureza, o xamã Davi Kopenawa
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Ademario Ribeiro comentou:
05/05/2019
Meninas, meninos eu vi! /O céu não vai (mais) desabar/ e só há uma dupla que impeça/ O Kopenawa chamada Davi/ Um José chamado Bessa.../ Eu vi!!!
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Ana Claudia Leocadio comentou:
05/05/2019
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Magela Andrade comentou:
05/05/2019
li, muito bonito, será que é o quê a gente conhece tb por MULATEIRO? A foto aí é mto parecida. Lembrei do campus de Humaitá, no terreno tem muitas delas. Volta a ser uma árvore linda quando as cascas se renovam.
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Celeste Correa comentou:
05/05/2019
Emocionante, mano...quando eu leio relatos como esse eu fico muito mexida de forma paradoxal. Sinto tristeza, revolta, esperança, admiração...mas que bom que eu ainda sinto, que eu não perdi a capacidade de reflexão, de indignação, mas também de esperança e de fé na humanidade do Davi, do Boff, a tua...me recuso a ter um olhar de desânimo que esse governo está tentando nos imputar. Não. A força é bastante desigual, o capitalismo selvagem é cruel, mas precisamos ser como a Pori hi. Eles dilapidam, destroem muitas cascas, nós descascamos, mas precisamos aprender a nós renovar, a nós reinventar. Precisamos lutar pela dignidade e pela sobrevivência do planeta, e para isso, é importante não perdermos de vista para os três T que o nosso querido Boff falou nessa semana ao ser homenageado pelo MST: terra, trabalho e teto. Face a miséria da política, a esperança não pode morrer. Sigamos na luta com fé!
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Renata Bessa Respeita comentou:
05/05/2019
Tio, que crônica linda! Muito importante esse trabalho da propagação da cultura indígena e divulgação do que está acontecendo com os nossos irmãos e nossa natureza, através do relato de quem vive isso bem de perto, no seu dia-a-dia. O grande Davi me tocou na alma com suas observações de tanta sabedoria! Tio, essa crônica me fez ressucistar muitas coisas que pareciam ter morrido dentro de mim.... Muito obrigada!
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Reinaldo Zuardi (via FB) comentou:
05/05/2019
Davi Kopenawa Yanomami ! Há uns 30 anos na luta !!!
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Eva Johannessen (via FB) comentou:
05/05/2019
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Júlia Muniz (via FB) comentou:
05/05/2019
Davi é um ser de luz perfumado e encantado, simplesmente inesquecível. Estive com ele a um ano atrás e ainda guardo o prazer daquele encontro mágico. Difícil é explicar
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Leandro Durazzo (via FB) comentou:
05/05/2019
O pau-ferro (não sei se a mesma espécie da foto) é uma árvore muito benquista aqui no sertão indígena do nordeste, pra chás e lambedores tanto na floresta quanto na caatinga, eis a ciência da mata
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Elisa Freire comentou:
05/05/2019
Nossa, em tempos áridos essa crônica aquece a alma!
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Daniel Rosenthal (via FB) comentou:
05/05/2019
Eu tive a sorte de estar lá. A sorte e o privilégio. O Davi Yanomami é realmente um ser extraordinário, um sábio, prendeu a atenção do publico
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Mariana Kutassi comentou:
04/05/2019
Bessa, querido!! Já mergulhei em sua crônica, sensível e saborosa, e só temos que agradecer à arvores-seres que teimam em não envelhecer, para sacudir as folhagens de mundos diversos. Voce e Davi fazem par, nesse assoprar de ventos à humanidade, teimosos por insistencia, e não tementes, ao gritarem as injustiças, a tudo e a todos que querem emperrar a potencia da vida. E do Viver Bem! Força e muita saúde!
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Felipe Berocan Veiga comentou:
04/05/2019
Ficou uma beleza sua crônica, Bessa, estava esperando por ela!
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Veronica Aldé comentou:
04/05/2019
grandes sábios! atentos e trabalhadores ... narradores cantores com suas flechas de luz!
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Veronica Aldé comentou:
05/05/2019
essa bala perdida no tronco da árvore da praça é o triste espelho de nossa sociedade...que se escute os pajés e se mude a rota à tempo...
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Antonio Veríssimo da Conceição comentou:
04/05/2019
Belas historias e experiencias que os mestres nos ensinam na Universidade da Vida
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Ana Melo comentou:
04/05/2019
Relato incrível! Experiência encantadora! Impossível não tocar o coração!
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Ana Maria Paixao comentou:
04/05/2019
Que bom rever o Davi com o senhor. Fiquei muito feliz. Um abraço para os dois.
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Airam Sá Xavier comentou:
04/05/2019
ah... se eu soubesse que ele estava em solo de nikiti... Abraços e muito respeito a Davi.
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