CRÔNICAS

Pirulito e desembargador: Molestando crianças

Em: 25 de Fevereiro de 2018 Visualizações: 22569
Pirulito e desembargador: Molestando crianças

Ai do homem que escandalizar uma criança. Se a tua mão direita te escandaliza, corta-a e lança-a fora de ti;

porque é melhor que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno (Mateus, V: 29-30).

Ninguém desconfiava que o velho Pirulito molestava sexualmente sua própria filha, a Tininha, que tinha 5 ou 6 anos. Afinal, ele era insuspeito: puxava a reza em família antes e depois de cada refeição, era zelador do Apostolado da Oração - Seção Masculina e toda primeira sexta-feira do mês arrastava seu filho, o Pirulitinho para, juntos, assistirem a missa dos homens às 5 hs da manhã. Comungava, contrito, com a medalha do Sagrado Coração de Jesus no peito e a fita vermelha em volta do pescoço, cantando:

- Levantai-vos, soldados de Cri-iiiisto. Eia avante nas sendas da glória.

Por isso, o bairro de Aparecida ficou perplexo quando sua cunhada, dona Neném, esbaforida, saiu correndo pelos becos gritando:

- Eu vi! Eu vi! Eu vi o pirulito do Pirulito. Ele estava na rede com a filha fazendo imoralidade. 

Ninguém o conhecia pelo nome de João. Durante anos, percorreu as ruas da cidade vendendo pirulitos enrolados em papel colorido enfiados em um tabuleiro furado. Fazia ponto na Praça da Saudade, esperando as crianças saírem da escola. O apelido ficou mesmo depois que, já viúvo, arrumou um emprego de lavador de garrafas e empacotador, com carteira assinada, na Fábrica Miranda Correa, que fabricava a cerveja amazonense XPTO. Lá era tido como trabalhador assíduo e responsável.

Por isso, foi difícil admitir a denúncia da dona Neném. Na época, Pirulito, católico praticante, homem de fé, soldado de Cristo e funcionário exemplar desqualificou a cunhada, jurando que era doida, que estava inventando, despeitada porque ele, viúvo, se recusara a casar com ela. Em quem acreditar? O bairro se dividiu. Na ocasião, ninguém ouviu a Tininha.

Esqueletos da família            

Muitos anos depois, durante caminhada no calçadão da Ponta Negra, Tininha já adulta confirmaria tudo ao desinformado irmão que chorou copiosamente, culpando-se por não ter podido protegê-la do pai libidinoso. Ela contou que o abuso começara em 1950 e caqueirada dentro da fábrica de cerveja no Plano Inclinado, réplica de um imponente castelo da Baviera com seis andares, torre e escada de caracol de 200 degraus, construído em 1910, no esplendor da borracha, às margens do igarapé de São Raimundo, próximo ao terminal do bonde. Para lá ela foi levada pelo pai num domingo festivo. 

- Lá de cima dá pra ver toda a cidade – convidou Pirulito, que trabalhava no térreo. Subiram e lá abusou da menina, pela primeira vez, prometendo dar-lhe rótulos da XPTO com a figura da águia, além de pinchas -  tampinhas da garrafa com o mapa do Amazonas e seus rios. O abuso se repetiu muitas vezes e só parou graças aos gritos de dona Neném. Mas a polícia arquivou a queixa como era de se esperar em uma sociedade extremamente machista. A Cervejaria Miranda Correa foi vendida para a Brahma, Pirulito morreu impune, dona Neném, com fama de doida, subiu pela última vez o Boulevard Amazonas, Pirulitinho e a irmã ficaram com seus traumas nesse vale de lágrimas.

A doença do Pirulito - que se existe inferno deve estar lá – é mais frequente do que se imagina, embora “os esqueletos guardados no armário” fiquem escondidos pelo “muro de pedra entre os membros das famílias” que, como no poema de Drummond, nem sempre permitem “escalpelar os mortos”.  O caso é real, mudei o cenário para não expor os dois irmãos protagonistas que estão vivos. Ele veio à tona, quando na última quarta-feira (21) um escândalo similar explodiu na mídia do Amazonas, envolvendo um avô e sua neta.

O mal pela raiz

A advogada Luciana Pires denunciou ao Ministério Público (MP/AM) o desembargador aposentado Rafael de Araújo Romano, 73, seu sogro, de ter abusado sexualmente da própria neta desde os 7 anos, quando morava na casa dele, até recentemente durante as visitas que o avô lhe fazia, uma das últimas em 2016, em Fortaleza (CE), onde ela reside agora com a mãe.  Por medo, a menina, que tem agora 15 anos, teria silenciado. No dia 8 de fevereiro último, em visita a uma amiga em um hospital, decidiu pedir socorro à mãe.

Contou que o avô tocava nas suas partes íntimas, de forma demorada. Percebeu o abuso quando estava sentada em uma cadeira de balanço dentro do quarto dele, que começou a alisar suas pernas até à calcinha. “Esse homem chegava a machucar os seios da minha filha, além de arranhá-la com a barba. Algumas vezes cheia de marcas, mas nunca imaginaríamos que fosse abuso” – disse a mãe.

Acontece que Rafael Romano, como o Pirulito, é insuspeito. Entrou para a magistratura em 1977 e durante três décadas foi - ironicamente? - titular do Juizado da Infância e da Juventude no Amazonas e relator da “Operação Estocolmo”, em 2012, que investigava uma rede de exploração sexual de menores no Amazonas, com envolvimento de políticos, empresários, parlamentares e do prefeito de Coari, Adail Pinheiro, que foi por ele condenado a mais de 10 anos de prisão por pedofilia.

O pai da menor, Rafael Romano Jr., também advogado, inicialmente acreditou na filha e entrou em parafuso, indignado com o assédio, segundo os “prints” da conversa mantida com Luciana e por ela divulgado. Mas depois publicou nota repudiando a acusação. A mãe, que levou a menina a um psiquiatra antes de fazer a denúncia, já foi tachada de “insana” e de “vingativa” por estar se divorciando do filho do desembargador, que jura inocência. Em quem acreditar?

Linchamento

A família está sofrendo com o linchamento nas redes sociais, onde sempre aparecem "justiceiros” exigindo condenação. O acusado, no entanto, merece o benefício da dúvida, especialmente porque o Brasil não esqueceu a acusação improcedente feita em 1994 aos proprietários da Escola Base em São Paulo massacrados pela mídia sensacionalista. A acusação não tinha qualquer fundamento, a Rede Globo e outras emissoras foram condenadas a pagar indenização, mas a escola foi depredada e várias vidas já estavam destruídas.

Manifestar dúvidas não significa desqualificar a denúncia, que parece consistente, mas exigir investigação séria e rigorosa para apurar o ocorrido, o que nem sempre acontece nesses casos, devido à natureza dos fatos, ao machismo e ao corporativismo do Judiciário. Se o desembargador, porém, for inocente – ele pode ser inocente – sua inocência não será comprovada com insultos tachando a mãe como “doida e vingativa”.  Supondo que seja assim, quem foi que disse que loucos rancorosos são necessariamente mentirosos?  De qualquer forma, o depoimento da menina merece ser levado em conta.

Mas se for verdade a acusação – pode ser verdade - o desembargador, como o Pirulito, seria um doente, o que não o exime de responsabilidade e, portanto, de punição, na medida em que teria consciência de seu estado patológico. Nesse caso, melhor seria ter seguido o conselho do evangelista Mateus, cortando o mal pela raiz para não escandalizar a criança, a quem ele tinha a tríplice obrigação de proteger: como adulto, como juiz e como avô.

P.S. - VER TAMBÉM "ERA UMA VEZ UMA ÁGUIA NEGRA"- 

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1186-barbara-era-uma-vez-uma-aguia-negra

 

 

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12 Comentário(s)

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Armando Soares (via FB) comentou:
26/02/2018
Ontem, conversando com uma amiga, ela me observou, que as obras do Dalcídio Jurandir entre outros está eivada de historias de incesto. Inclusive, chegamos a observar a lenda do boto, que não deixa de ser histórias que perpassam por incestos entre outros.
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Renato Guarani Kaiowá Souto (via FB) comentou:
26/02/2018
Há dez anos venho lutando contra esses monstros que estupram e mutilam nossas crianças e adolescentes, e de fato e vejo que no Amazonas é assim, uma terra sem lei. Onde Impera o medo. Reina a impunidade. Prevalece a falsa ordem do suborno, da propina, do descalabro moral. O dinheiro espúrio que desmoralizou o homem pobre e fraco e colocou na vitrine varias criança sem direito à infância, ao sorriso ingênuo; às ilusões; aos sonhos; sem direito ao presente e, menos ainda, ao futuro.
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Renata Curcio Valente (via FB) comentou:
26/02/2018
Lindo texto. Sensível, com ótima análise da complexidade dos fatos.
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Luiz Fernando Souza Santos (via FB) comentou:
26/02/2018
: O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS NO AMAZONAS TEM COMO ALIADO UM SILÊNCIO ASSUSTADOR DA SOCIEDADE LOCAL.. Quando trabalhei/pesquisei no Parque Nacional do Jaú havia um homem que abusara de sua enteada e das filhas que teve com esta e a mãe dela. Foi pai dos filhos das filhas dele. Havia no rio um silêncio triste sobre isso. Ninguém ousava sequer pronunciar o nome deste homem. Silêncio que matava a infância numa tapera na curva do rio Jaú. O caso do prefeito pedófilo em Coari é emblemático. Os crimes eram cometidos à luz do dia, diante dos olhos de todos, mas o silêncio de policiais, juízes, políticos, religiosos, etc. formavam os alicerces do altar monstruoso onde as crianças eram imoladas. Agora, vem à tona o caso de uma jovem que desde os sete anos de idade sofria abusos do avô paterno em Manaus. Como trata-se de um magistrado, blogs e jornais cuidam para apresentar a mãe que denunciou como uma ressentida que não aceita o fim do casamento e forjou esta história. É o mesmo enredo asqueroso de sempre. O silêncio que mata se impõe. Mesmo em minha TL, tão prolixa em denúncias e manifestações de indignação quando este tipo de crime ocorre em outras plagas, distantes daqui, quase ninguém ousa comentar. A cidade erguida no encontro do rio Amazonas com o Negro, está em silêncio conivente. Silêncio, silêncio, silêncio..
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Otacílio Orofino (via FB) comentou:
25/02/2018
Parece que as pessoas ficam encagaçadas, com medo de falar. O silêncio se revela até aqui nos comentários. Pouca gente se pronunciando diante de um caso tão grave que devia exigir de todos uma cobrança, pressionando a Policia e os tribunais a punirem os culpados.
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graça barreto comentou:
25/02/2018
SE REVIRAR OS PROCESSOS DA VARA ESPECIAL DE MENOR LÁ ESTÁ ATRÁS DO ARMÁRIO OU NO FUNDO DA GAVETA A HISTÓRIA DE UM PROSTÍBULO DE CRIANÇA EM PETRÓPOLIS...... SEM MAIS PALAVRAS
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Ana Silva comentou:
25/02/2018
Adorei o texto, oportuno e muito bem escrito.
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Moyses Laredo comentou:
25/02/2018
Muito bem estruturada e escandalosamente bem escrita a sua crônica. Parabéns e que nos brinde com outras tantas, e nem precisa ser verdade como essa, conte-nos causos para nos embriagar com a sua verve poética amazônica. Aubrigado como diz o cabôco.
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Maria Celina Muniz Barreto comentou:
24/02/2018
Sei da importância de se abordar o problema e divulgar esses crimes, mas é muito difícil lidar com realidade tão cruel e doentia. Você foi hábil em seu relato, mesmo assim, o que fica é uma dor difusa no peito pelo sofrimento da menina.
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Clelia Bessa (via FB) comentou:
24/02/2018
Arrasou! Temos muitos pirulitos soltos por aí. Que a verdade prevaleça e a justiça seja feita.
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Pablo Cortes (via FB) comentou:
24/02/2018
Bicho, tá excelente. Pode ser que depois da "apuração" da história do Pirulito passemos ao Quebra Queixo de todos nós. Imagina se a fila de pessoas encorajadas crescer com outras denúncias! Tá excelente a crônica porque convida à reflexão. Acompanho tudo com muita dificuldade de isenção porque o meu coração é mesmo de criança e bate por elas.
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Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (via FB) comentou:
24/02/2018