CRÔNICAS

Malária, poesia e outros bichos

Em: 12 de Março de 2017 Visualizações: 16204
Malária, poesia e outros bichos

"Ah! a poesia aqui, / meu filho, / é uma doença tropical".

(Aldísio Filgueiras - Malária e outras canções malignas)

 

Numa linguagem delirante e febril que explode termômetros, o poeta Aldísio Filgueiras diagnostica ironicamente a poesia como uma patologia local. Essa relação da literatura e doença já havia sido explorada de outra forma, em 1910, pelo jornal The Porto Velho Marconigram, publicado em inglês, destinado aos trabalhadores estrangeiros da Madeira-Mamoré - a "ferrovia do diabo". O pequeno semanário trazia sob o titulo a frase em espanhol:

-  La vida sin literatura y quinina es muerte.

Agora, a ideia de que as duas juntas geram vida é reafirmada no livro "Malária no Amazonas: registros e memórias", lançado no sábado (10), às 11 hs, na sede do ICBEU em Manaus, pela Editora Valer, com grande afluência de público. No evento, antes da sessão de autógrafos, os dois autores se pronunciaram, assim como o médico Wilson Alecrim e este locutor que vos fala que faz aqui uma síntese do que foi dito.        

Os autores Auxiliadora Bessa Barroso e Raul Amorim, sanitaristas - ela educadora em saúde e ele malariologista - recuperam essa imagem de que, para a saúde, a literatura é tão vital quanto a quinina. Se faltar uma delas, a morte triunfa. A metáfora define bem o livro. Quinina aqui designa o combate à malária no Amazonas. E literatura é o relato escrito das experiências que ambos viveram como soldados nas trincheiras da Campanha de Erradicação da Malária (CEM), da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) e da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).

Se a memória sobre o combate travado contra a doença for apagada, a derrota é certa. É isso  que afirma Marcus Barros, ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas, médico com experiência de meio século como infectologista. "É muito importante para o controle dessa grande endemia, que recuperemos parte de sua história aqui na região, para que todos os envolvidos, atores e vítimas, aprendamos os mecanismos pelos quais poderemos controlá-la" - ele escreve na apresentação.

Duende da Amazônia

 

 

 

 

 

 

 

 

Foi o que fizeram os autores que saíram em busca da trajetória da malária pelo planeta até chegar na Amazônia, destacando o período da borracha, do final do séc. XIX aos anos 1950. Tiveram uma trabalheira porque os arquivos herdados pela FUNASA não foram preservados e parte da documentação foi destruída. Os dois pesquisadores buscaram então acervos pessoais de profissionais: relatórios técnicos, pareceres, diários de campo, formulários, dados estatísticos, resumos de reuniões, depoimentos verbais, fotografias, mapas, gráficos, registros de observações diretas. Há uma rica documentação iconográfica, com fotos do arquivo pessoal da autora.  

Construíram um texto agradável de ler, complementando fontes primárias com documentos oficiais do Ministério da Saúde e de outros órgãos: leis, decretos, portarias. Reconstituíram a viagem do sanitarista Oswaldo Cruz por ocasião da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1910, quando ele observou e estudou a doença, depois de praticar dezenas de autópsias no Hospital de Candelária. Os autores calculam que 6.200 óbitos de trabalhadores ocorreram só ao longo da linha de construção da ferrovia.

No cemitério de Candelária, pertinho do centro de Porto Velho, foram sepultados pelo menos 1.593 estrangeiros oriundos de 22 países, vítimas da malária denominada de "duende da Amazônia" por Oswaldo Cruz. Mas há um segredo lá enterrado que os autores não contam porque não são fofoqueiros, mas eu, que me amarro num bafão, vou mexericar. O Candelária, cemitério que só enterrava gringo, abriu exceção para uma única brasileira, Lydia Xavier, porque - dizem as más línguas - ela era amante de um engenheiro norte-americano. Seu túmulo tem inscrição em inglês. Pronto. Falei.

Lydia e as vítimas da malária não leram o artigo que Oswaldo Cruz publicou no "The Porto Velho Marconigram", com descrição e classificação da doença no alto Madeira. A matéria da primeira página da edição de 19 de novembro de 1910 descreve ainda a luta do dr. Garrett, com um tamanduá no meio da floresta quando "a fera, com uma pata poderosa, rasgou a bota do médico e feriu-lhe a perna". Os bichos se defendiam da forma que podiam daquele enorme desastre social que foi a construção da ferrovia, uma espécie de Belo Monte da época.   

O Carapanã

A ferrovia nunca funcionou, muitos trabalhadores jovens morreram e outros foram expulsos por animais revoltados com a intrusão predatória. A malária ficou. De lá para cá, o combate contra o mosquito transmissor teve altos e baixos. "Infelizmente as perspectivas são sombrias por ser uma doença que atinge predominantemente a população de baixa renda, de áreas rurais e de exclusão social" comenta no livro o médico diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, Bernardino Albuquerque.

Isso fica claro quando os dois autores usam como fontes os relatórios produzidos por eles próprios na época em que atuaram ativamente nas instituições de controle da malária. Dão um testemunho pessoal de suas vivências. Analisam o esforço mundial concentrado para a erradicação da doença e o trabalho desenvolvido no Amazonas. Para isso, encontraram ainda uma manancial de dados no Boletim Informativo do Setor Amazonas da CEM - O Carapanã - cuja coleção lhes permitiu reconstruir uma boa parte da luta.

O Serviço Nacional de Malária (SNM), criado em 1941, fazia borrifação intradomiciliar, coletava sangue, distribuía antimaláricos e efetuava censos nas residências cadastradas, identificadas porque em suas portas eram pintadas com três letras azuis a sigla SNM, traduzidas pelos cabocos da oposição como "Severiano Nunca Mais", em referência à candidatura de Severiano Nunes, da UDN (vixe, vixe), que foi prefeito, deputado estadual e federal, além de senador.

O livro que acaba mexendo com a memória da minha geração, trata do advento do DDT e da polêmica em torno do seu uso. Está tudo lá: o emprego do sal cloroquinado iniciado em 1959  com os problemas técnico-operacionais daí derivados, a abertura de grandes rodovias e a implantação de projetos de mineração com graves consequências sobre a saúde dos colonos assentados na região. O balanço geral é trágico. Wilson Alecrim, médico e ex-coordenador da SUCAM, lembra no prefácio que milhares de nordestinos pereceram tragicamente na floresta amazônica, vitimados pelas enfermidades endêmicas, entre elas a malária - "a rainha das doenças".

É assim que a malária é conhecida, diz Pedro Tauil, professor da UnB, ele também apresentador do livro, que aliás conta com comentários de um timaço de autoridades reconhecidas no tema. "A leitura desse livro enriquece a compreensão dos determinantes da incidência da malária na Amazônia, bem como das medidas de controle adequadas à realidade da Região" - escreve Tauil. O leitor vai concordar.  É um livro de interesse dos historiadores, dos cientistas sociais, do pessoal da área de saúde, dos ambientalistas, mas também de qualquer pessoa que ama a Amazônia.

A experiência da luta pela erradicação da malária pode ajudar na  batalha que se trava hoje e que, segundo os autores, está sendo perdida por nós.  "O Anopheles darlingi e o Plasmodium, durante o período estudado, mostravam-se tão fortes na Amazônia, como o Aedes aegypti e o Zika se apresentam hoje no Brasil" Nos anos 70-80, "os indicadores da malária se elevaram significativamente em toda a Região Amazônica, e áreas já consideradas livres foram surpreendidas com o restabelecimento da transmissão dessa doença. Na cidade de Manaus, onde há 13 anos não se registravam casos autóctones, a malária foi reintroduzida, a partir de 1988, em locais de expansão da periferia urbana (ocupações-Zona Leste)". O livro é um alerta para os perigos que estamos enfrentando.

OBS - As fotos pertencem ao arquivo pessoal da autora, exceto as coloridas que são de autoria de Amaro Jr. e Janaína Souza da Uga Internet Branding, e a da borrifação domiciliar, de autor desconhecido.

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12 Comentário(s)

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Raul Amorim comentou:
17/03/2017
Companheiro Bessa, como lhe disse pessoalmente leio frequentemente suas cronicas que são publicadas no DIÁRIO DO AMAZONAS, nos dias de domingo.Quanto aos seus comentários em sua cronica sobre o livro MALÁRIA NO AMAZONAS, em resumo mostra a importância do conhecimento, sobre uma doença que nos assola, desde o período colonial até os dias atuais e tudo que tem sido feito, apesar das dificuldades para combate-la. O conhecimento da historia de qualquer agravo, onde a malária tem destaque, mostra que não devemos esquecer o passado e assim aprendendo com seus erros e acertos, termos condições de programar no presente e no futuro, os meios necessários e possíveis para controla-la. No mais, finalizo dizendo que sua cronica foi excepcional e de uma linguagem também delirante e febril, associando a malária com a literatura.
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Auxiliadora Bessa Barroso comentou:
17/03/2017
Belíssima síntese, professor Bessa! Jamais conseguiria colocar, neste pequeno espaço, aspectos dos mais importantes do livro, de maneira tão amena e ao mesmo tempo fiel! Pinça textos dos autores e de seus colaboradores com a sua perspicácia de pesquisador e a sua sagacidade de jornalista, penetrando no âmago da questão principal do livro: malária no Amazonas. Alinhava as ideias de forma tão atenta que confere à crônica, absoluta coerência. Destaco a sua interpretação da metáfora da literatura – quinina, com sabedoria e poesia, e é aí que realmente “define o livro”! Parabéns, Professor! Obrigada, meu primo!
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Vera Lucia G. Pereira Lima comentou:
15/03/2017
Prezado José Bessa, Li sua coluna sobre o lançamento do livro “Malária no Amazonas: registros e memórias” e fiquei encantada com sua análise em breves palavras. Trata-se de um verdadeiro e justíssimo chamamento à leitura do livro! Após ler a coluna, minha vontade foi largar outros afazeres e me “atracar” com a obra agora publicada. Conheço Maria Auxiliadora, a nossa Dodora, de longa data! Não apenas nos tornamos grandes amigas, como, pudemos viver parcerias acadêmicas bastante produtivas na área da promoção da saúde. Desconhecia, entretanto, a extensão e profundidade de seu trabalho como sanitarista e educadora em saúde pública. Estive presente no lançamento e fiquei maravilhada de presenciar o encontro de tantos profissionais que contribuíram bravamente no esforço de combate à malária, enfrentando toda sorte de limitações, porem movidos pela paixão pelo trabalho que realizavam! Esse livro é de grande valor e interesse, como você bem afirma, para profissionais de saúde, educadores, historiadores, e para o público interessado em conhecer um pouco mais da realidade brasileira. Foi importantíssimo resgatar e divulgar o trabalho realizado! Parabéns pela divulgação através de sua prestigiosa coluna.”
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José Luiz comentou:
14/03/2017
Nos tempos em que o famigerado Aedes aegypti faz uma farra federal, devastando vidas e saúde do povo brasileiro, sempre é bom tomar conhecimento do esforço desenvolvido pelos heroicos sanitaristas para erradicar a malária desde as na Amazônia. Parabéns à minha amiga Dodora e ao Raul Amorim pela iniciativa de publicar o tão importante \"Malária no Amazonas: registros e memórias\", que deveria servir de inspiração para superar a incompetência ao combate dos vetores que grassa no eixo Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo, inclusive agora chegando ao Rio de Janeiro e ameaçando toda a população.
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Raimundo Piola (via FB) comentou:
14/03/2017
É. A malária voltou com força. Parece que os mosquitos estão alegres porque perceberam que os recursos destinados a combatê-los estão sendo desviados,. Manaus, na periferia, tá cheia de malária.
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Astrid comentou:
14/03/2017
A malária, nos meus tempos de interior, não era tão frequente. Acontecia de passar rente, rente a nós, como com a dona Socorro, do flutuante embaixo do nosso porto. Lembro ela na cama (havia uma cama no seu flutuante/mercearia) o corpo tremendo e banhado de suor. Malária, alguem disse, uma palavra desconhecida para mim moleca naquela beira de Solimoes. Não conhecia nem mesmo a \"hora\", só lembrava minha mãe correndo para fechar as janelas perto do entardecer, nos chamando para entrar, porque para ela, mulher de cidade, se aquele lugar era perigoso de dia, de noite era, definitivamente, hostil.
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Ana Stanislaw comentou:
12/03/2017
Linda, poética e sensível crônica. Que maravilha, apresentado dessa forma, a leitura do livro se torna obrigatória. rsrs Parabéns aos autores!
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Renato Athias comentou:
12/03/2017
Bessa, obrigado! Super legal a tua resenha. Isso me fez lembrar outros tempos na minha adolescência. A criação da CEM (Campanha pela Erradicação da Malária, dentro do DNERU ( Departamento Nacional de Endemias Rurais) e que depois viria a ser a SUCAM, que meu pai (Salomão Athias) e outros sanitaristas importantes citados no livro e me lembro também do Dr. Dourado em Manaus, um dos fundadores do Hospital Tropical. Essas foram foram figuras importantes na Amazonia. Color de Mello em 1990, acaba com a SUCAM e cria a FNS, que depois viria a ser a FUNASA. E acho que ele também acabou com uma metodologia que estava dando certo. Mas, o que é lembrado, ainda hoje são os Guardas de Endemias da SUCAM. Esses sim... andavam em todos os lugares, iam em todos os sítios para destruir focos de malária. Quando estava organizando o livro com os textos de Curt Nimuendajú ( Reconhecimento dos Rio Içana, Ayari e Uaupés.....) sobre os povos indígenas do Rio Negro, procurei elaborar um mapa com os nomes dos lugares que Nimuendajú havia passado em 1927. Todos os nomes dos lugares estavam, no texto de Nimuendajú, estavam escrito em Nheengatú, e os Baniwa, Uanano, Tariano, Tukano e Kuripako atuais não sabiam os nomes em nheengatu, apenas em suas línguas, Pois bem, quem conseguiu me ajudar na elaboração desse mapa foi um antigo guarda de endemias que trabalhou na SUCAM nos anos setenta/oitenta, nessa região, que havia viajado por os lugares desses esses rios. Gostaria de deixar esse registro nessa crônica maravilhosa. O Museu da FUNASA em Brasília merece ser atualizado com os os depoimentos desses heróis amazônicos que por décadas combateram os focos de Malária.
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Marilza De Melo Foucher (via FB) comentou:
12/03/2017
Tua paixão pelo trabalho descrito no livro é um sinal de alerta para a prevenção da saúde pública. Um salva vidas.
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Sebastião Mendonça (via FB) comentou:
12/03/2017
Esse livro vem sendo trabalhado há bastante tempo, e seu lançamento programado bem antes do surto que nos alarma. Parabéns aos autores, pela iluminada coincidência.
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Soraia Rodrigues (via FB) comentou:
12/03/2017
Lendo assim dá até vontade de comprar o livro, mas faltou uma informação básica: onde e como adquiri-lo, quanto custa?
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Nelson Peixoto via FB) comentou:
11/03/2017
Julio Schweickardt, esse estudo como a literatura, poesia e saúde nos fascinam. Leia que certamente sintoniza com tua tese de doutorado. José Bessa é um dos nossos mais criativos cronistas sociais da melhor estirpe nativa. Cada palavra tem a ternura bem humorada e seriamente comprometida com a ciência, a sociologia e a história dos nossos povos originários e muito mais!
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