CRÔNICAS

Rogélio: os doidinhos não te esqueceremos

Em: 22 de Maio de 2016 Visualizações: 22823
Rogélio: os doidinhos não te esqueceremos

Ele era um marginal no sentido mais belo e profundo da palavra. Vivia à margem. Era um ribeirinho da terceira margem do rio. Rogelio Casado Marinho Filho, 63 anos, médico psiquiatra, artista, dramaturgo, cartunista, cinegrafista, fotógrafo, blogueiro, boêmio e festeiro, amigo e encrenqueiro, brigou ao lado dos índios, dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos sem-terra, dos sem-teto e dos moradores de rua, mas sobretudo dos "sem razão" - os portadores de doença mental. Saiu da vida lutando. Parece até que escolheu o dia para o último adeus: o enterro foi na quarta (18), Dia da Luta Antimanicomial.

Depois de cursar medicina na Universidade Federal do Amazonas, na década de 70, Rogelio fez residência médica no Instituto de Psiquiatria Social de Diadema (SP), de onde retornou a Manaus com ideias revolucionárias da antipsiquiatria. Trouxe-nos David Cooper, Ronald Laing e Franco Basaglia que criticavam o tratamento inapropriado, excludente e carcerário dispensado a tais pacientes. "A loucura - ele dizia - é uma doença, mas o louco não é doente. Doentia é a relação dele com a família e a sociedade e é essa relação enferma que deve ser tratada".

Foi uma lufada de vento libertário arejando o Amazonas em plena ditadura militar. Com Silvério Tundis e Manuel Galvão, Rogelio iniciou a luta antimanicomial em nossa terra, propondo uma reforma psiquiátrica radical. Exercitou a solidariedade permanente com aqueles que sofrem a forma mais completa de solidão - a loucura - buscando retirá-los daí e colocá-los no estado de "dualidão", uma solidão a dois, como queria Nietzsche citado em seu blog. Defendeu os pacientes do Hospital Eduardo Ribeiro da violência, do choque elétrico, da prisão. Conquistou aliados para a causa.

Orgulho louco

Solidário, reuniu quem sofria de transtornos psíquicos, os seus familiares, os técnicos de saúde mental e os simpatizantes na Associação Chico Inácio - filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial - que fundou para lutar pela inclusão dos loucos na vida da cidade. No seu blog, inaugurado num 18 de maio - et pour cause - registrou carinhosamente as lembranças dos doidinhos locais. Participou das conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde mental, atuando na linha de frente. Denunciou os agentes da violência institucional dentro do hospício.

O tamanho da sua indignação contra o preconceito, a exclusão e o horror dos hospícios era calibrado pela ternura que mantinha em relação aos pacientes. Na direção do hospital psiquiátrico, organizou um projeto de terapia ocupacional que produziu uma tonelada de alimentos plantados pelos pacientes e, quando demitido, fez greve de fome acorrentado à sua mesa de trabalho, o que deu mais visibilidade à luta. Depois, coordenou o Programa Estadual de Saúde Mental e contribuiu para elaborar a proposta de Lei de Saúde Mental sancionada em 2007.

Festeiro, participou da fundação da Banda Independente da Confraria do Armando (BICA) e, no carnaval, organizou o Bloco Unidos do Eduardinho que reunia os pacientes e malucos-beleza de Manaus, concentrados na esquina da rua 24 de maio com a avenida Eduardo Ribeiro, além de outras manifestações: paradas do orgulho louco, abraços simbólicos, audiências públicas, exposições de fotos, seminários, cursos. Fotografou, registrou e documentou as lutas sociais no Amazonas, criando um rico acervo de interesse para a pesquisa histórica.

Ali onde havia alguém sofrendo, lutando, resistindo, ali estava Rogelio Casado, que ajudou ainda a fundar a Associação dos Amigos de Manaus (Amana) e o movimento SOS Encontro das Águas.

Picica Análise

É Freud, mas tenho a honra de ter inventado com ele a Picica Análise. Conto como foi. Depois de uma longa convivência iniciada nas assembleias dos professores da APPAM e da ADUA em que ele estava lá, participando e fotografando, a amizade se consolidou em outros movimentos: na oposição sindical dos metalúrgicos, na Pastoral Operária com o padre Guidotti, na luta indígena e no jornal Porantim que chegou a publicar fotos de sua autoria, no movimento Alma Negra com o Nego Nestor, na fundação do PT e também na luta contra o internamento forçado nos hospícios.

Algumas crônicas dominicais que escrevi foram reproduzidas no blog Picica, uma delas intitulada "A Fábrica de Loucos", de 1995, apresentada por ele anos depois em nota generosa que exibo agora como uma medalha no HISTÓRICO do site Taquiprati. Lá ele me trata de compadre porque, numa festa junina, ao redor de uma fogueira na Praça XIV, de pura farra brincamos: "Santo Antônio disse, São Pedro confirmou, que nós seremos compadres, porque São João mandou". Compadres ficamos, sacramentando a amizade. Compadres de fogueira.

A fogueira permitiu que meu compadre fosse personagem de algumas crônicas. Na Mansão do Tarumã, ele foi convocado a fazer leitura "picica analítica" do caráter do então governador Amazonino Mendes. Lá está escrito: "Dar pissica, em língua amazonense, significa dar palpite. Quem dá pissica é palpiteiro enxerido. Portanto, reconheço que o que vamos fazer com ajuda de meu compadre, o pissica analista Rogélio Casado, é pura pissica análise". Assim, pudemos entrar no cérebro do Amazonino para ver o que tinha lá dentro. Nem Freud e Jung seriam capazes de tal façanha.

Há um mês, o câncer levou a companheira de luta e mãe de seu filho Juan, de 9 anos. De todos os lados surgiram nas redes sociais amigos fieis que ficaram a seu lado. Logo depois, ele foi internado com complicações pulmonares. Sua morte deixou a todos nós com o coração apertado. O historiador Juarez Silva destacou sua presença constante nos movimentos sociais, com sua câmera e o indefectível colete de fotógrafo, às vezes com o chapéu panamá, mas sempre com o também indefectível rabo de cavalo, em sua potente motocicleta no mais puro estilo "hell´s angels".

Essa é a imagem que vai ficar dele. O sistema bem que tentou fisgá-lo e engravatá-lo, sem sucesso, graças a Deus. Em 2011 defendeu o mestrado com a dissertação "Cidade e Loucura: espacialização da "doença mental" e o processo de desinstitucionalização psiquiátrica na cidade de Manaus".  Na UEA, foi pró-reitor de extensão - uma área também marginal - permanecendo sempre na terceira margem. Em verdade em verdade vos digo, não se faz mais gente solar como Rogelio Casado, que vai fazer falta a todos nós, os doidinhos de Manaus, que não o esqueceremos.

P.S. - Agradeço a todos os amigos do Facebook - Elaize, Gleice, Juarez, Magela, Astrid, Simão Pessoa, Mario Adolpho e tantos outros que postaram fotos, textos e charges por mim pirateadas. Agora, vamos todos apadrinhar e amadrinhar o Juan.

 

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18 Comentário(s)

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Herbert comentou:
17/09/2016
Soube do falecimento do Rogélio lendo seu texto. Justíssima homengem. Diante da morte, você disse tudo o que devia ser dito.
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Murilo Nonato de Carvalho (via FB) comentou:
22/05/2016
Prezado, creio que seria oportuno fazer um apelo aos pacientes do doutor Rogélio Casado para deixarem registrado aqui seus depoimentos. Gostaria também de saber qual instituição aí do Amazonas vai conservar o rico acervo sobre a historia recente das lutas sociais
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Elvira Eliza França comentou:
22/05/2016
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Thiago de Mello comentou:
22/05/2016
Leitor feliz das crônicas deste irmão que me deu a Vida, quero distinguir esta por, digamos, 17 motivos, dos quais me satisfaço com dois: a beleza da criação literária e o alegre domínio do nosso idioma , a serviço da Picica ,, que guia os olhos do autor para enxergar o que a vida só entrega para quem sabe os seus segredos.
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Paulo Figueiredo (via FB) comentou:
22/05/2016
Comovente, de grande sensibilidade e beleza, a crônica do José Bessa - José Ribamar Bessa Freire sobre o nosso Rogélio Casado, perda sentida por todos nós que o amávamos, doidinhos sobreviventes da aventura da existência.
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Nelson Peixoto (via FB) comentou:
22/05/2016
Meu amigo José Bessa! Tuas palavras mostram para nós que a missão de vida do Rogério foi muito evangélica no sentido de serviço realizado de forma profética em seu fervor ético pelos \"sem razão\" e outros à margem da sociedade sana, poderosa, rica e casta!
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Carmen Lucia Pessanha (VIA fb) comentou:
22/05/2016
Não o conhecia. Mas como gostei de ler sobre ele! Deve realmente ter sido uma pessoa admirável! Que Juan tenha padrinhos e madrinhas para acompanhá -lo de perto e com afeto.
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Astrid Lima (via FB) comentou:
21/05/2016
Oi, acabei de ler o teu Taquiprati sobre o Rogelio e eis que a dor desses dias (re)volta sem possibilidade de diminuir, pelo menos não hoje. Para algumas pessoas é dificil explicar como é essa dor assim tão carne viva apesar da distancia, seja geografica ou temporal., apesar de não pertencer mais á cotidianidade. Eu tento responder que é coisa de migrante, essa saudade sem fim de algo que não existe mais, aquela cidade parada no tempo, congelada no espaço. Eu vim de uma Manaus onde havia a dona Alice, o seu Gaucho, Nestor , Paulinho Graça, lene, Anibão, Narciso e tantos, tantos outros. Eu nunca vivi Manaus sem a presença deles. Então nunca pude realmente me acostumar à ausencia deles. É, a gente nem percebe, pelo menos eu não tinha ideia, de que a morte dele nos abalaria tanto, tens razão, talvez fosse o seu seu \"solar\", essa curiosidade, gentileza e capacidade de \"amar gente\" como diz o herman, ser solar.Bom, a minha Manaus está ficando repleta de fantasmas. Um \"apelo\" que o Nestor fez pra mim muitos anos atrás e que estou fazendo agora a alguns poucos amigos que me restam: eu não gostaria de viver num mundo sem voce, portanto não morra antes de mim, viu?
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Geraldo Peixoto (via FB) comentou:
21/05/2016
É isso aí meu irmãozinho, eu conheci bem de perto a luta desse cara...ousou como psiquiatra romper paradigmas anacrônicos, inclusive no trato das dependências químicas...Os doidinhos da ns cidade perderam um baluarte da luta antimanicomial...ele já está questionando noutro espaço...Viva!
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Gerusa Pontes de Moura comentou:
21/05/2016
Que bom que em vários cantos deste imenso Brasil, sempre existiu espíritos como deste irmão que deixa mais que uma história, um legado. Entrei para a Educação através de um concurso público em Saúde Mental, não sai mais, foram anos participando com a escola dos movimentos que tiraram os pacientes dos pavilhões psiquiátricos para as residências terapêutica, e que hoje, graças ao nosso bom Deus, não se interna mais como antigamente. Tenho certeza que o céu está mais estrelado do antes.
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José Alberto Duarte (via FB) comentou:
21/05/2016
Rogério foi um grande companheiro, participou da fundação do PT de forma decisiva, combateu a ditadura militar, foi contra qualquer tipo de golpe, inclusive esse dado agora que engaveta a democracia e coloca no ministério uma lista de envolvidos na Lava-Jato. Quem bateu panela antes e parou de bater agora é porque claramente não está contra a corrupção, mas contra o PT do qual Rogelio foi um militante sempre.
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Vânia Novoa Tadros comentou:
21/05/2016
ROGÉLIO CASADO NÃO APENAS FALAVA, MAS REALIZAVA AÇÕES EFICIENTES E EFICAZES. NÃO FAZIA ALIANÇAS INCOERENTES, NEM AO MENOS TEMPORARIAMENTE. ERA DIGNO, ATIVO, LINHA DE FRENTE NA SUAS LUTAS. SUA DOÇURA NÃO ERA TRADUZIDA EM PALAVRAS, PORÉM AMAVA OS SEUS PACIENTES E MORREU DE AMOR PELA ESPOSA. PALMAS ROGERIO! PARA VOCÊ EU BATO PALMAS E ELOGIO. PENA QUE JÁ SE FOI. ESTAMOS FICANDO À CADA DIA MAIS POBRES DE PESSOAS DIGNAS DE ELOGIOS E RESPONSAVEIS PELO QUE PREGAM E REALIZAM.
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Soraia Magalhães comentou:
21/05/2016
Ele, o Rogélio, foi um dos primeiros a abraçar a causa do Movimento Abre Biblioteca, assim como você José Bessa. Como bem escrita nesta belíssima crônica/homenagem, o Rogélio estava presente registrado lutas e esteve conosco no dia do Abraço pela reabertura da Biblioteca Pública do Amazonas. Um dia, ele até parodiou dizendo que era Soraia com seu Exército de Brancaleone. Não coloquei minha tristeza no Facebook, pois não sabia como expressar a sensação de perda por essa figura que era de todos nós, mesmo quando não éramos tão próximos, Agradeço a querida maluquinha Astrid Lima que abrandou meu coração no dia em que tomamos conhecimento de sua partida..
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Eloína Santos (via email) comentou:
21/05/2016
Aplausos pra ele. Vi o filme sobre a Nise Silveira e adorei. Ela é seu amigo merecem ser mais conhecidos. Abraço. Eloina
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Ana Stanislaw comentou:
21/05/2016
Simplesmente, linda!! Obrigada por compartilhar suas memórias, sentimentos, emoções.
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Magela Ranciaro (via FB) comentou:
21/05/2016
ROGELIO... bem que o céu poderia esperar, mais um pouco! Já li, é excelente!
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Maria Magela Mafra de Andrade Ranciaro comentou:
21/05/2016
Como não se emocionar: Fui às lágrimas... Como diria Maria Alice, minha mãe. Ave, palavras!
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Juarez Silva comentou:
21/05/2016
Sempre maravilhoso e grato pela parte que me toca....????
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