CRÔNICAS

Na maloca, uma câmera na mão

Em: 15 de Novembro de 2015 Visualizações: 14222
Na maloca, uma câmera na mão

(De Rio Branco -Acre) Não sei se o Wewito Piyâko ainda se lembra. Já faz tempo, numa aula do curso de formação de professores indígenas no Acre, contei a história do funcionário que no ano 3.000 é transferido compulsoriamente para outra galáxia. "O exílio é de-fi-ni-ti-vo" - lhe advertiram. Desesperado com a viagem que não tinha volta, arruma na mala tudo aquilo que pode matar as saudades do planeta terra: objetos, cheiros, sabores, sons, imagens. No final, por sugestão da autora, a museóloga Blanca Dian, indaguei:

- Se os desterrados fossem vocês, o que levariam na bagagem para não esquecer a maloca?

- Uma câmera e o que ela já registrou - respondeu Wewito de bate-pronto, no meio de tantas outras respostas dadas por seus colegas indígenas. Argumentou que numa câmera cabe todo o mundo ashaninka: gente, bichos, floresta, beleza, canto, poesia, dança, festa, histórias, saberes, reza, toda a água e todos os peixes dos rios Amônia e Juruá, o tracajá cozido no casco e a banana verde ralada, mas cabem ainda as cidades, a humanidade inteira, o céu, as estrelas, o universo. Cabem o riso, os sonhos, a memória.  

E o que é o que já coube na câmera do Wewito? Com 22 anos, esse professor e cineasta documentou o cotidiano dos ashaninka em "Shomõtsi" (2001), considerado uma obra-prima por Eduardo Coutinho e "No tempo das chuvas" (2000). O manejo dos recursos naturais está em "A gente luta, mas come fruta" (2006) e o universo das crianças "No tempo do verão" (2013). Além disso roteirizou "Floresta Viva", "Aprendizes do futuro" e "Caminho para a vida" (2004) e participou com outros de "Uma aldeia chamada Apiwtxa".

Portanto, ideias na cabeça ele já tinha, e muitas, mas quem foi que colocou a câmera em suas mãos? Foi Vincent Carelli, um documentarista franco-brasileiro de 63 anos, criador, em 1986, do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA) com sua mulher, a antropóloga Virgínia Valadão (1952-1998), que nos deixou na saudade.

Vídeo nas aldeias

A vida continua. O Video nas Aldeias formou Wewito em três oficinas realizadas nas aldeias do Acre, permitindo que documentasse o universo ashaninka, mas também outros mundos. Com Zezinho Yube, um hunikui da mesma escola de cinema indígena e sua esposa Jarlene, eles viveram mais de um mês na favela do Pereirão, no Rio de Janeiro, filmando o cotidiano de seus moradores que está no documentário "Troca de Olhares" (2009), exibido nas universidades cariocas.

Índios de diversos povos participaram das oficinas, cada uma com duração intensiva de um mês. A formação deles é dividida em quatro etapas: roteiro, captação de imagens, avaliação das imagens e edição. Depois, cada aluno cria um projeto de realização, que é acompanhado pelo núcleo de produção do VNA, em cuja sede situada em Olinda (PE) se faz a produção, a finalização e a distribuição dos vídeos, que circulam entre os índios e não-índios: escolas, televisão, centros culturais, universidades, museus.

Agora, o criador dessa escola de cinema, Vincent Carelli, que colocou a câmera nas mãos dos cineastas indígenas, será homenageado nesta segunda (16) na abertura do 6º Festival Internacional do Filme Etnográfico do Recife, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Virginia, certamente, há de lá estar.

A homenagem é merecida, porque o VNA, que já recebeu 70 prêmios nacionais e internacionais, permitiu que os índios se apropriassem da câmera filmadora para valorizar seu patrimônio cultural e territorial, ressuscitando formas de vida esquecidas que eram dadas como mortas. O seu acervo tem cerca de 7 mil horas de imagens, com mais de 80 documentários, metade de autoria indígena, com uma estética e uma linguagem próprias, que mostram o ponto de vista deles.

- O olhar externo sobre os índios sempre teve a tendência de focar e pontuar o que é exótico. Já a produção indígena traz um sentimento oposto. Isso humaniza os índios, aproxima as pessoas - disse Vincent em entrevista a Fabio Ferron e Sergio Cohn.

O antropólogo Lévi-Strauss, fascinado com o filme "O amendoim da cutia" dos índios Panará (Mato Grosso), elogiou seus realizadores Paturi e Komoi em carta a Carelli:

- "Esse é de longe o melhor filme que já vi sobre índios da América do Sul. Tudo é acertado: a escolha dos temas, das locações, o enquadramento. A qualidade das imagens é notável. Temos a sensação de ver a vida indígena de dentro”.

É do Carelli

Carelli seria Vicente, se sua mãe não fosse francesa, já que o pai é brasileiro. Nascido em Paris, já era Vançã quando veio para São Paulo aos cinco anos. Fez ciências sociais na USP, trabalhou na Funai, publicou reportagens e fotos em revistas brasileiras, colaborou com o Centro de Documentação (CEDI) e com o Instituto Socioambiental (ISA), fundou com outros antropólogos o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), andou de ponta à ponta por esse Brasil, percorreu aldeias, realizou oficinas, capacitando e equipando as comunidades indígenas com novas tecnologias.

Neste caso, em casa de ferreiro, o espeto é mesmo de ferro. Os métodos de trabalho nas oficinas foram documentados em 16 curtas realizados por Vincent, entre outros "Video nas Aldeias" (1989), que mostra como os Nhambikuara, Gavião, Tikuna e Kaiapó incorporaram o uso do vídeo aos seus projetos culturais e "O Espírito da TV" (1990) sobre os impactos da televisão nos Waiâpi (Amapá). O seu documentário "Corumbiara" (2009), um longa metragem que investiga o massacre ocorrido no sul de Rondônia, é de tirar o fôlego e conquistou o título de "Melhor Filme" no Festival de Cinema de Gramado.

É um privilégio os índios terem o Vincent, o Brasil ter o Vincent. O que ele fez já justifica a passagem de alguém pelo planeta (além de alimentar minhas aulas na universidade). A homenagem a ele é extensiva a toda equipe do VNA que em diferentes momentos contribuiu para formar os índios, entre os quais Virgínia Valadão, Mari Corrêa, Ana Carvalho, Amandin Goisbault, Altair Paixão, Dominique Gallois, Ernesto Carvalho, Fábio Menezes, Gabriel Mascaro, Leonardo Sette, Marcelo Pedro, Tatiana Almeida, Tiago Torres, Sérgio Bloch, Tutu Nunes, Olivia Sabino  e outros.

Em Rio Branco (AC), onde na última quarta-feira (11) participei do Simpósio sobre Línguas e Literaturas Indígenas organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Acre, a homenagem a Carelli foi saudada com alegria. Lá procurei Wewito, mas não o encontrei. Queria saber dele se a homenagem ao Carelli é mesmo do Carelli. Seus colegas confirmaram: é do Carelli.

P.S. - Está lá na página do VNA http://www.videonasaldeias.org.br/2009/ mas não será demais concluir essa homenagem a Carelli com os nomes dos cineastas indígenas que ele formou:  Zezinho Yube Kaxinawá,  Maru Kaxinawá, Tadeu Siã Kaxinawá, Josias Maná Kaxinawá, Vanessa Ayani Kaxinawá, Amunegi Kuikuro, Asusu Kuikuro, Mahajugi Kuikuro, Maricá Kuikuro, Takumã Kuikuro, Araduwá Waimiri, Kabaha Waimiri, Iawysy Waimiri, Sanapyty Atroari, Wamé Atroari, Sawá Waimiri, Ariel Guarani-Mbya, Patricia Keretxu Guarani-Mbya, Germano Benites Guarani-Mbya, Jorge Morinico Guarani-Mbya, Benki Pinhanta Ashaninka, Isaac Pinhanta Ashaninka, Wewito Piyãko Ashaninka, Caimi Waiassé Xavante, Divino Tserewahu Xavante, Jorge Protodi Xavante, Jaime Llullu Manchineri, Kambrinti Suya Kisêdjê, Kamikia Kisedje, Kokoyamaratxi Kisêdjê, Whinti Kisêdjê, Yaiku Kisêdjê, Karané Ikpeng, Kumaré Ikpeng, Natuyu Ikpeng,  Kasiripinâ Waiãpi, Komoi Panará, Paturi Panará.

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9 Comentário(s)

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Taquiprati comentou:
10/12/2017
A 6 de dezembro de 2017, o príncipe Constantin dos Países Baixos apresentou o principal prêmio do Príncipe Claus em conjunto ao cineasta e ativista indígena Vincent Carelli (Brasil) A cerimônia de premiação do Príncipe Claus foi realizada na presença de membros da família real holandesa no palácio real de Amsterdã, Vincent fez o seguinte discurso: Vossas majestades, vossas altezas reais, excelências, ilustres convidados, Quero dizer-vos como me sinto honrado por receber este prémio de prestígio. Quero agradecer às pessoas que me nomearam, ao júri para me escolherem e felicitar os meus colegas laureados presentes aqui. Todos nós temos enfrentado grandes desafios nos nossos próprios países com criatividade e empenhamento. Gostaria também de felicitar o fundo do Príncipe Claus por se concentrar na cultura e no desenvolvimento, porque é através da intervenção cultural que construímos pontes para superar as intolerâncias raciais, de género, religiosas e culturais. Sinto-me feliz por este reconhecimento, mas sinto-me muito triste por ver o nosso presidente não eleito do meu país a retirar os nossos direitos civis, a vender os nossos recursos naturais, a destruir a nossa indústria e a levar as terras tradicionais Espero que este prémio me dê mais força para me levantar e, com milhões de cidadãos brasileiros, restaurar a democracia e reconstruída o nosso país. - Obrigado.
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Juliana Almeida comentou:
10/03/2016
O Vídeo nas Aldeias é certamente a experiência mais visionária do indigenismo nos anos 1980-1990. Os frutos colhidos desde lá demonstram isso. Parabéns ao Vincent pelo belíssimo trabalho. O reconhecimento é mais do que merecido.
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Olivia Maria Maia comentou:
16/11/2015
Belo registro. Vou divulgar para meus conterrâneos "acreanos". (pôxa! estive na UFAC no I Coloquio de Visibilidade Feminista. Voltei pra BSB exatamente no dia 11. Gostaria muito de ter te encontrado. E desfrutar de um abraço fraterno, do jeito que os nortistas tanto gostam). Abraços
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Susana Grillo comentou:
15/11/2015
Muito merecida a homenagem a Carelli, sua equipe e, por extensão, aos muito cineastas indígenas formados por ele numa iniciativa de muita persistência e resultados que vão muito além de filmes produzidos - geram protagonismo indígena em se auto-referenciarem, ajudando na educação para as relações interétnicas, descobrindo os patrimônio culturais, historicos e comunitários dos Povos Indígenas. Viva Carelli, viva Vídeo nas Aldeias !!!
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Ana comentou:
15/11/2015
Muitas informações excelentes!!!!! Só temos a te agradecer, Bessa!
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Bene Carvalho comentou:
14/11/2015
Gostei, Bessa. Os antropólogos diziam que os índios não gostavam se serem fotografados. Diziam que roubavam a almas deles. Hoje, talvez, eles tenham se acostumados com que esses brinquedos dos ditos civilizados e acham que o mundo cabe nas lentes de uma máquina fotográfica, ou - para ser mais moderno - no seu aparelho celular.
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Eloina Santos comentou:
14/11/2015
Linda história. Os índios sabem das coisas essenciais e nós outros buscamos o material.
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Ana Stanislaw comentou:
14/11/2015
Adorei, Bessa. Linda homenagem. Vicent, com a câmara na mão e, o Bessa, com sensibilidade e inteligência, fazendo essas maravilhosas crônicas. Alento, nesse mundo tão violento.
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Gustavo Tupinambá (via FB) comentou:
14/11/2015
Para textos bons como os desse site a gente arranja um tempo. Valeu professor Bessa! Publique na página do Taqui Pra Ti quando puder, para divulgarmos ela com os links do site. Abraços
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