CRÔNICAS

Kátia Abreu, a Pelicão do Planalto

Em: 11 de Janeiro de 2015 Visualizações: 23982
Kátia Abreu, a Pelicão do Planalto
Pedro Américo. Do sobrenome eu não lembro, mas o nome era Pedro Américo, mais conhecido como Pelicão. Por onde andará o Pelicão? Faz mais de 55 anos que dele não tenho notícias. Seu pai, rico fazendeiro de Roraima, queria porque queria um filho padre e o internou no seminário redentorista de Coari (AM). Sua chegada naquele celeiro de meninos pobres foi espetacular, triunfal. Trazia seis malas cheias de roupa fina e cara, incluindo onze camisas coloridas de um time de futebol, joelheiras e tornozeleiras. Com isso, apesar de ruim de bola, ganhou o lugar de goleiro titular da seleção do seminário.
O apelido surgiu numa sessão de Hora Amadora, organizada a cada semestre, com programação que incluía esquetes teatrais, canto, dança, narrativas e recital de poesia apresentados pelos alunos mais exibidos.  Em sua primeira atuação, Pedro Américo, vestindo espalhafatosa camisa de seda estampada de onça, contou a história dramática do pelicão, ave de grande porte, sanguinária, bico comprido, que não encontrando peixes para se alimentar, mata os próprios filhotes e bebe com avidez o sangue deles. Tanta crueldade provocou lágrimas em cascatas no distinto público.
Ninguém ali conhecia aquela história, salvo Aristides, o Xerife, leitor contumaz do Tesouro da Juventude que se apressou em subir ao palco e dizer que estava tudo errado. Não era pelicão. A ave, parente do biguá e do mergulhão, se chamava pelicano. E não matava a prole. A contrário, na falta de comida, furava o próprio peito para extrair o sangue com que alimentava seus filhotes. Morria, dando a vida por suas crias. Por isso, era o símbolo da Paixão de Cristo. Foi aí que Pedro Américo, desmoralizado, levou a maior vaia da paróquia e ficou com o apelido de Pelicão.
Mundo ao revés
No internato de Coari, a palavra Pelicão passou a simbolizar engano, inversão dos fatos, distorção da realidade, o mundo de revestrés. Assim, Pedro Américo, que era um grande "engolidor de frangos", fazia pose de goleiro elástico capaz de dar voos acrobáticos para pegar a bola lá no ninho da coruja. Era o Castilho do Solimões. Tudo potoca, invencionice, lorota.
Eis o que eu queria dizer: a ministra da Agricultura Kátia Abreu, afilhada de casamento da presidente Dilma, é o próprio pelicão sobrevoando o planalto. Ela não se limita apenas a negar o que existe. Vai além: afirma que a realidade é o contrário daquilo que efetivamente é.
Mal assumiu a pasta, Kátia Abreu declarou em entrevista à Mônica Bérgamo (FSP 5/01) que "não existe mais latifúndio no Brasil", o que torna desnecessária a reforma agrária, e atribuiu os conflitos fundiários com os índios ao fato de que "eles saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção", quando a realidade é justamente o contrário. Tudo o que ela diz deve ser lido ao revés.
Mas enquanto Pedro Américo enganou porque estava enganado, Kátia tenta enganar os outros, mas não se engana. A Pelicão do Planalto conhece os dados do Atlas da Terra Brasil (2015), embora ainda inédito, organizado pelo pesquisador da USP/CNPq, Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Baseado nos quatro censos agropecuários já realizados, ele mostra que 175.9 milhões de hectares são improdutivos no Brasil e que 66 mil imóveis considerados improdutivos não atendem aos critérios de uso social da terra (Tatiana Farah - O Globo 9/1/15).
Portanto, o latifúndio não apenas existe, como cresceu enormemente na última década. No primeiro governo Dilma houve um aumento de 2.5% de concentração de terras em grandes propriedades privadas. Dados do próprio INCRA indicam que entre 2010 e 2014 uma área equivalente a três Sergipes passou para as mãos de grandes proprietários. No governo Lula, o aumento foi ainda maior, pulando de 214, 8 milhões em 2003 para 318 milhões de hectares em 2010. Por isso, Kátia Abreu retribuiu o apoio à Dilma e a convidou para ser sua dinda de casamento.
Rainha da motosserra
Quanto aos índios, a Pelicão do Planalto também inverte escandalosamente a questão. Para ela, não são as terras indígenas que estão sendo invadidas pelo agronegócio e pelas fazendas. Os índios é que estão deixando a floresta para "ocupar áreas de produção". Tal afirmação que beira o cinismo deixou irritado o bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Dom Erwin Kräutler, que chamou a ministra de "rainha da motosserra" e declarou que ela é "ridícula, ao negar o direito dos povos indígenas".
Sua foto que ocupa meia página da Folha de SP exibe uma Kátia Abreu toda produzida coberta de joias espalhafatosas - relógio, colar, anel, brincos.  Ela  condena o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e diz que, além da terra, a água também deve ser privatizada, os rios devem se transformar em mercadoria, numa declaração que deixou radiante o governador do Amazonas, José Melo Merenda:
"A presidente [Dilma] inclusive enviará proposta ao Congresso mudando a legislação de hidrovias. Temos vários 'Mississipi' maravilhosos. O correto é o governo fazer as hidrovias e depois concessionar para a iniciativa privada tocar".
Dilma não desautorizou sua ministra, como o fez com o ministro do Planejamento Nelson Barbosa. Quem bancou o Xerife foi o ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, para quem  "ignorar ou negar a permanência da desigualdade e a injustiça é uma forma de perpetuá-las. Por isso não basta derrubar as cercas dos latifúndios, mas derrubar as cercas que nos limitam a uma visão individualista e excludente do processo social". Depois disso, só resta ao distinto público vaiar a Pelicão do Planalto. Com uma ministra dessas, a direita não precisa ganhar eleição.

P.S. - Je suis Charlie. Solidariedade com os cartunistas assassinados do Charlie Hebdo, jornal que me alimentou semanalmente nos seis anos em que vivi em Paris. Humor, deboche, ironia, chacota, irreverência, gozação se combate com gozação, chacota, ironia, sátira, humor. Não com bombas. "As sociedades saudáveis - escreve David Brooks no New York Times - não suprimem os discursos, mas conferem diferentes graus de legitimidade para diferentes tipos de pessoas". Com a liberdade de expressão, quem vai sofrer com essa história são os próprios muçulmanos e os Islã diante da onda crescente de xenofobia na Europa. Os dois terroristas deram um tiro no próprio pé.

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20 Comentário(s)

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Anne-Marie comentou:
01/02/2015
Caro Bessa, Só li com atraso esta crônica sobre nossa nova ministra que também é, como você bem mostrou, uma exímia antropóloga, genial criadora do método da abreugrafia etnográfica (Taquiprati de 11-12-2012) Mas não resisto à tentação de lhe mandar uma pequena tradução que fiz (do francês) de um discurso político tipo. Lá, como cá, infelizmente o povo elege gato por lebre. Acho que o que segue ilustra muito bem sua reflexão: Promessas de campanha eleitoral Leia até o fim No nosso partido político, cumprimos o que prometemos Só os imbecis podem acreditar que Não lutaremos contra a corrupção Porque uma coisa é certa para nós: A honestidade e a transparência são fundamentais. Demonstraremos que é uma grande tolice acreditar que As máfias continuarão no governo como antes Asseguramos sem sombra de dúvida que A justiça social será o objetivo principal do nosso mandato Apesar disso, ainda há gente estúpida o bastante para imaginar que Seja possível continuar governando Com as artimanhas da velha política. Quando assumirmos o poder, faremos tudo para que Se acabe com as situações privilegiadas e os conchavos Não permitiremos de forma nenhuma que Nossas crianças morram de fome Cumpriremos nossos objetivos ainda que As reservas econômicas se esgotem completamente Exerceremos o poder até que Entendam que a partir de agora Somos a nova política E agora leia "de trás para frente", começando pela última linha.
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Marco comentou:
17/01/2015
Total e sentida solidariedade aos cartunistas e demais trabalhadores do Charlie Hebdo. Assino a nota do Bessa. No mais, não ajudei a eleger em nenhuma instância a Rainha da Motosserra...
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Judite Rodrigues Pucu comentou:
15/01/2015
Genial mestre! Escavando sempre casos do folclore amazonense. Pelicão=,UDR assentada no num espaço arado do Poder. A gente anda cabisbaixo com tanta pabulagem da Dilma, Decepção...
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Marcus Tejo comentou:
13/01/2015
SEMPRE ACOMPANHO SUAS CRÔNICAS MARAVILHOSAS
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Magela Ranciaro comentou:
13/01/2015
Recomenda-se muito cuidado quanto à escolha de certos PADRINHOS/AS de casamento. Nem sempre o gesto do tomar a bênção pode incorrer no fato de se estar abençoado. Neste caso específico, significa a praga do estar AMALDIÇOADO! Mas que coisa, hein Babá... Afff!!!
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12/01/2015
Caro Bessa, a figura do Pelicão está instalado em todo o governo da Dilma......tudo é ao contrário.....vejo que até o Ministro que falou combatendo as palavras doidas da Katia..... errou o alvo... quem nomeou, quem mantem é responsável sim, por sua tropa..... aquela mesma tropa que voce nominoiu em cronicas anteriores...... acreditar que a fala da Kátia não é fala do Governo... é uma atitude do Pelicão...... Um abraço.. Porfirio Carvalho Contato de JOSE PORFIRIO F,DE CARVALHO
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Renato Dias comentou:
12/01/2015
Li e estou refletindo sobre sua crônica. No momento não posso dizer que concordo com tudo que o senhor disse, inclusive sobre as charges preconceituosas do Charlie Hebdo, mas é sempre bom poder ler suas crônicas. Um abraço professor.
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veronica miranda comentou:
11/01/2015
KKK...Também estou buscando o MST que sumiu. Está todo mundo atordoado. No Brasil acontece coisas que ninguém acredita... Dizer que não há latifúndio no Brasil. A gente se assusta com a França, mas devia estar acostumado. Lamentando o ocorrido vejo que pelo menos o fato trágico serviu para mobilizar populações de todo o mundo e para os franceses reclamar mais uma vez Liberté . Aqui é que acontece mesmo coisas trágicas e pelo visto ninguém se move mais do lugar. E as ruas só esperando...
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Francisco Carlos comentou:
11/01/2015
Grato pela atenção a este humilde leitor. Petista discreto de primeira hora, votei no Lula em todas as eleições em que ele foi candidato, inclusive na ultima após o mensalão. Mas agora minha convicção é que o PT, o Lula e outros não teem mais sentido. Um partido que lutou ferrenhamente contra a CPMF quando oposição, no poder quis mantê-la. Um partido que lutou contra o fator previdenciário quando oposição, no poder não fez nada para elimina-lo. E agora quer até controlar a mídia. Leio seu blog todos os domingos. mas devo confessar que ultimamente ando lendo também o Olavo de Carvalho. Contato de Francisco Carlos
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Laercio Miranda comentou:
12/01/2015
Francisco, acho que nós temos informações diferentes sobre o controle da midia. Atualmente, a midia ja é controlada pelo poder economico, atraves da concentração de jornais e emissoras de radio e tv nas mãos de poucos. Isso inclusive é contra a nossa constituiçnao, que preve uma maior distribuição dos meios de comunicação. A regulação da midia faz parte do processo democrático, para impedir os desvios como os que acontecem em nosso pais. Certa vez, a um ano atras, li no jornal britanico Guardian, que no Brasil, so não havia mais liberdade de imprensa por causa da excessiva concentração da midia pelo poder econômico, que controla quase todo o fluxo de informaçnoes.
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thiago de mello comentou:
11/01/2015
E da maior importância para a conscientização de brasileiro que lê jornal a reprodução do taquiprati em outros órgãos de imprensa do país. Principalmente os que tratam, como os mais recentes, da feia e desavergonhada política dominante no Brasil. São fachos de luz verdadeira, não as de artifício de brilho enganoso. Vou te chamar. Não é possível que não exista no Governo uma pessoa corajosa que sacuda esta brasileira Kátia pelos ombros. Pedindo que não favoreça a cobiça dos ricaços do agro que, eles sim há séculos, invadem e matam os descendentes dos habitantes primordiais e fundadores da cultura do nosso país, sim, este país indígena. Te abraço, comovido. Thiago
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Francisco Carlos comentou:
11/01/2015
Sem querer sacanear, o Sr. votou na Dilma.
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Ribamar Bessa comentou:
11/01/2015
Não Francisco, fiz campanha, escrevi artigos e votei na Marina. Assumi publicamente o voto na Marina, No segundo turno, com Marina fora do páreo, votei contra o Aecio, que teria nomes como os de Levy e Katia Abreu no seu ministério, mas jamais um Patrus Ananias. Só isso.
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11/01/2015
Não consigo entender como gente do tipo Katia Abreu ainda circula e fala o que quer como se estivesse falando verdades, sinceramente eu peço ao astral providências porque pela Terra já vi que nãp dá. Contato de gerusa pontes de moura
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Ana comentou:
11/01/2015
Como levar a sério este grande Circo????????????????? Sim, porque é melhor rir do que chorar...
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Ana Stanislaw comentou:
10/01/2015
Adorei Bessa! Não tem reforma agrária e não tem seriedade num governo com essa ministra. Estou cada vez mais descrente! E pensar que estamos apenas em janeiro...
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Nelson Peixoto (via FB) comentou:
10/01/2015
Tudo isso é fantástico, porque não tem outra qualificação que nada tem a equiparar-se com a Globo ou o Charlie Hebdo. Nossa memória de vivências da sementeira cssr nos clareiam para o entendimento crítico do mundo! Vc é nota 1000 para essa aufklarung kantiana!
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Renata Otto (via FB) comentou:
10/01/2015
José Bessa, não é pra acusar contradição, mas não dava pra esperar outra coisa do governo dilma. Estava tudo posto desde a campalha. Mas vc deu seu apoio, mesmo assim, pra eleição dela, e tbm da Breu etcetcetc....não posso entender p q diabos...
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Hagá Romeu Pinto comentou:
15/01/2015
Acredito que o Bessa, como outros poucos petistas racionais, sofre pelo amor incondicional que o pai sente pelo filho. Por ter sido um dos fundadores do PT e ter o visto crescer, é capaz de perdoar as macaquices da Dilma e acreditar até em histórias pelicanesas vindo do planalto. Contato de Hagá Romeu Pinto
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Jandir Ipiranga Jr comentou:
10/01/2015
Pelicona, pelicada, pelicosa.
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