CRÔNICAS

A Bermuda do Rafa e a colonialidade

Em: 30 de Novembro de 2014 Visualizações: 21206
A Bermuda do Rafa e a colonialidade

Supunhetemos que em 1914, no Amazonas, um aluno de Direito da Universidade Livre de Manáos tenha sido congelado vivo para ser reanimado cem anos depois. Raphael - esse é o seu nome - desperta agora, em 2014, vestindo o paletó e a gravata com o qual foi criogenizado. Constata, estupefato, que em um século muita coisa mudou: o mundo, o Brasil, Manaus, as leis e até o curso, inclusive a farmácia que perdeu o "ph". No entanto, uma coisa permaneceu congelada: a farda, digo a pharda. Seus colegas hoje estão vestidos como há cem anos: de paletó e gravata.

Nesses cem anos inventaram rádio, televisão, internet, celular. Duas guerras mundiais abalaram o planeta. Criaram a ONU, a UNESCO e a minissaia. Terremotos, furacões, ciclones, vulcões, maremotos e tsunamis abalaram o mundo. Calamidades atingiram o Amazonas que sofreu enchentes, amazoninos e dudus. Nesse período, o Brasil teve cinco constituições, a Universidade de Manáos foi extinta e a Faculdade de Direito, incorporada pela Universidade Federal do Amazonas, mudou da Praça dos Remédios para o Campus Universitário. Tudo mudou?

Tudo mudou, menos o traje. Desde 1910 os alunos de Direito do Amazonas são obrigados a usar paletó como uniforme de escola primária, isso num sol de fritar ovo na calçada, com uma umidade relativa do ar beirando os 90% e uma sensação térmica infernal de forno de micro-ondas. O terno, usado na Europa, onde o clima é outro, acabou sendo uma imposição absurda num país como o nosso. O paletó, que é antiecológico e a gravata, que nos enforca, só servem para diferenciar "você sabe com quem está falando"?

Decote acentuado

Depois de muita luta estudantil contra tamanho absurdo, em 1970 a obrigatoriedade do paletó foi abolida, mas a Resolução da Faculdade de Direito 001/2012, embora nada fale do terno, acabou referendando por exclusão o seu uso, quando em seu artigos 3° e 6° inciso I, proíbe o aluno de "comparecer às aulas trajando vestimentas inadequadas ao ambiente escolar (bermuda, camiseta, sandália estilo havaiana, shorts, decote acentuado)". Ou seja, não precisa mais se enforcar com gravata, mas bermuda nem pensar.

"Decote acentuado" é ótimo! Realmente é não ter o que fazer. A Resolução, guardiã da moralidade, não explicita o grau de "acentuamento". Quem determina o tamanho aceitável do decote? Alunas de antropologia, ciências sociais, jornalismo, letras, história e até de química e de farmácia são livres para mostrar ou esconder o que é bonito. As estudantes de direito não. Estão proibidas de mostrar. A Resolução não teve peito para estabelecer, como no Sudão, quantas chibatadas devem ser aplicadas nas alunas que transgredirem a norma.

A Faculdade de Direito ainda acha que o hábito faz o monge, que a toga, a beca e a capa, como num passe de mágica, conferem autoridade e saber a quem as usa. Por isso, em 2001, em pleno mês de julho, quando o sol cozinha os miolos amazônicos, o diretor proibiu a entrada na Faculdade de um estudante de direito, Rafael Cyrino (sem o ph de pharmácia), que estava vestido corretamente para o calor amazônico: tênis, camisa de meia e bermuda. Ele protestou e endossamos seu protesto (ver Taquiprati, A Bermuda do Rafa, 15/07/2001).

Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio, nos ensina Heráclito, para ilustrar a lei da dialética que anuncia que o movimento é universal, que tudo muda. Tudo muda? Será? Agora, outro Rafael (também sem "ph") - Rafael Frank Benzecry - presidente do Centro Acadêmico de Direito da UFAM, decidiu se opor à norma que proíbe os alunos de direito de se vestirem de forma cultural e ecologicamente correta. No último 6 de novembro organizou um plebiscito para consultar seus colegas. Continua a luta do Rafa a favor da bermuda.

Abaixo o paletó

O resultado do plebiscito foi a favor da liberdade individual de sevestir como se achar mais conveniente. Quem quiser sofrer com paletó e gravata, que o faça, mas os que não concordam, que possam usar outros trajes. Dos votantes, 165 se pronunciaram pela revogação da famigerada Resolução. O surpreendente é que 82 alunos, cujas almas estão vestidas de paletó e gravata, votaram a favor da norma. O sociólogo Anibal Quijano chama isso de colonialidade, que é a matriz da dominação colonial. O colonialismo acabou, mas a colonialidade continua impregnada nas entranhas dos colonizados mentais.  

O outro Rafa, presidente do Centro Acadêmico de Direito que foi fundado em 1934, encaminhou ofício ao Conselho Departamental sugerindo que acate o resultado do plebiscito. Ele escreveu para a coluna, lembrando que a publicidade dos fatos pode influenciar, ainda que indiretamente, os membros do Conselho a atenderem o anseio dos alunos. Já foi escolhido até um relator para a questão, mas ela só entra na pauta no próximo ano.

"Enquanto não se julga o caso, alunos são postos para fora de sala porque estavam usando bermudas e a norma, absurdamente, permite que se abra um processo disciplinar contra o aluno de bermuda e o professor que o deixar assistir aula. Grande absurdo!" - escreve Rafael Frank Benzecry.

Com ele parece concordar o eminente e preclaro jurista Orozimbo Nonato, que em sua última aula de Direito Civil na Faculdade de Direito de Minas Gerais, em 1940, foi confrontado por um aluno sem paletó que queria assistir aula. O momento era tão difícil que Orozimbo Nonato, que só falava em latinorum, declarou: "Hic culum cotiae sibilare", ou em português popular, "aqui é que o fiofó da cutia assovia". Foi aí que depois de escrever o projeto do Código Civil, ele considerou nula a norma do paletó em sua conhecida tese "Da coação como defeito do ato jurídico".  Toda a solidariedade aos Rafas de todos os tempos e aos alunos de Direito contra o FELASAM - o Festival da Leseira que Assola o Amazonas. Abaixo o paletó, abaixo a colonialidade, viva o decote, viva a bermuda!

P.S. A Bermuda do Rafa -  http://www.taquiprati.com.br/cronica/311-a-bermuda-do-rafa
Desembargador furunfado -   http://www.taquiprati.com.br/cronica/182-desembargador-furunfado-no-amazonas-comprase-juizes-

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16 Comentário(s)

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Rui Martins comentou:
01/12/2014
Caro Bessa, nem na ONU de Genebra se precisa paletó e gravata. E honra seja feita, foi o correspondente do sério Estadão quem lançou entre os jornalistas chegar de calça lee e camisa esporte ou mesmo polo. A maioria já aboliu a gravata, mesmo agora no inverno.
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Pedro Jorge Honorío (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
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Valdemar Rosa (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
QUE ISSO SUPUNHETEMOS KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
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Patricia Carvalho (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
kkkkkkkkkkkkkkkkkkk...SuPUNHETEMOS?????
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F.N.C (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
Os doutos pacorvos e atolemados que deploraram o emprego de supunhetemos não estão familiarizados com a semântica empregada no Brasil, em tom jocoso
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Benedito Oliveira Santos (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
supunhentemos é uma forma irônica de se referir ao fato. Popularmente se usa como se fosse uma gíria. Não seria o caso de ter usado aspas
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Renato Faria (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
supunhentemos...Se foi erro ou não, quem nunca errou uma frase, que atire a primeira pedra. Pessoas com baixo nível intelectual tem e sempre terá a tendência de se ater mais em procurar erros em um texto, para logo fazer uma observação jocosa, do que se inteirar do real assunto do conteúdo que o supracitado texto nos quis informar. Essa tendência é amplamente observada em qualquer exame, onde é pedido que o candidato interprete um texto ou elabore uma redação, muitos fracassam, pois aprenderam somente se aterem à procura de erros e a executar ao oque foi pedido na prova.
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Alice Brule (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
E só pensaram em criticar o modo antigo de falar??? O que realmente importa é que apesar de toda evolução científica e médica, ainda não conseguem se adaptar usando roupas mais adequadas p/ o clima. e portanto p/ a saúde!!!!
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Zachary Lieu (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
Banca meu terno e minha gravata 7 dias por semana? Se sim, pode reclamar, se não, cuide dos próprios trapinhos que chama de roupas.
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Josy Faria Maia (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
O que se vê no Rio de Janeiro, são estudantes, relaxados, desleixados e porcos, em sala de aula, imagino o profissionais que serão no futuro, sem regras, sem limites.
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Benedito Oliveira Santos (Blog Amazonia) comentou:
30/11/2014
Acredito que voc~e não tenha entendido o tom da discussão. Mesmo no Rio, o uso de roupas adequadas no Rio pode justificar certas roupas. Não o relaxo. Relaxo é diferente de se usar adequadamente roupas pensando-se no clima. Se não me engano, recentemente foi abolido o uso obrigatório de paletó no Fórum do rio de Janeiro. Nada mais lógico numa cidade como Rio de Janeiro. Em países como Índia, Paquistão e em outro de influência inglesa até policiais usam bermudas e roupas claras. É ou não é mais lógico?
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30/11/2014
É atorduante ver como nos afastamos de nossa cultura e reverenciamos outras que nos foram impostas por séculos.A lesera é gritante ! Contato de lilian Rodrigues aguiar
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Juarez Silva (Manaus) comentou:
30/11/2014
:-) Acho que o ponto nevrálgico não é o uso do Paletó/Terno mesmo em nossas elevadas e úmidas temperaturas, mas a falta da liberalidade em seu uso ou não, o terno tem um efeito psicológico importante aonde aparentar sisudez e respeitabilidade se faz interessante (e isso é tão culturalmente arraigado que atinge Magistrados, Executivos, Servidores públicos, Juristas das mais variadas carreiras, Apresentadores de Telejornal e Seguranças (públicos, privados e até de shopping...), agora tem um fato novo a se levar em consideração... eu por exemplo costumo trabalhar de paletó mesmo sem obrigatoriedade, mas o motivo é tentar amenizar os efeitos dos potentes aparelhos de ar condicionado das instalações judiciárias... algumas com a famigerada Central de Ar que não permite nem aos pobres servidores expostos a horas de ar "congelante" ao menos regular a temperatura, e no casos em que é possível tem sempre a briga entre o "calorentos" e os "friorentos", quando os "calorentos" vencem o bom e velho paletó está lá para nos salvar... ;)
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VANIA TADROS comentou:
29/11/2014
HÁ,HÁ,HÁ. AMEI. SE EU TIVESSE NASCIDO HOMEM EU NUNCA IRIA A UM EVENTO QUE FOSSE OBRIGADO A USAR TERNO E GRAVATA EM MANAUS! É MEDONHO MANINHO! E AINDA TEM UNS ADVOGADOS QUE USAM PRETO EM MANAUS COM 46 GRAUS. AINDA ONTEM OBSERVEI NO FORUM VÁRIOS RAPAZES, ADVOGADOS, ANDANDO PARA LÁ E PARA CÁ, MUITO À VONTADE, USANDO TERNOS NEGROS E ENGRAVATADOS. SENTI CALOR POR ELES.
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Ana Stanislaw comentou:
29/11/2014
É, você tem razão! Usar termo aqui no Brasil, com esse calor, não tem sentido. Ê, Brasiiil. Adorei.
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Claudia Presotto (via FB) comentou:
29/11/2014
Já gostei da primeira palavra........hahahahhahah
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