"No domingo, o vigário disse missa e as índias cantaram o Tantum Ergo com harmonia não vulgar".
Alexandre Rodrigues Ferreira, enviado ao Brasil pela Coroa Portuguesa para fazer pesquisas de campo, percorreu durante oito anos (1785-1792) vastas áreas da Amazônia. Quando passou pela vila de Ega, hoje Tefé, registrou em seu diário de viagem a participação de índias de várias nações no ritual católico, entre elas mulheres do povo Juma.
Denominados também Yuma ou Arara, os Juma falam uma língua do tronco tupi-guarani da família linguística Kagwahiva. Habitavam um território no rio Purus, que segundo Euclides da Cunha, era "talvez a maior estrada por onde passavam e repassavam, há muitos séculos, as tribos mais remotas dos extremos do continente".
No século XVIII, os Juma somavam 12 a 15 mil indivíduos, conforme estimativas dos viajantes, mas a população foi reduzida drasticamente no confronto com tropas portuguesas que realizavam "guerras justas" - denominação dada ao violento e predatório processo de recrutamento. Os que escapavam à morte, eram aprisionados e levados para os "currais de índios" localizados nos rios Solimões e Negro, de onde eram "repartidos" para fornecerem trabalho compulsório aos colonos, aos missionários e à administração colonial portuguesa.
Duzentos anos depois da passagem de Alexandre Rodrigues Ferreira, as índias não cantam mais o Tantum Ergo. Desesperadas, as únicas Juma sobreviventes em 1992, duas velhas que respondem pelos nomes de "Baru" e "Inté", cumpriam todas as noites um ritual de lamentos em que combinam choro e canto dramático.
O massacre de 1964
Quem exterminou os Juma que conseguiram resistir até o século XX à escravização, à catequese e às expedições punitivas?
O processo de extermínio, iniciado pelo colonizador português no séc.XVIII, continuou nos séculos seguintes já como ação de brasileiros. Falas e mensagens dos presidentes da Província do Amazonas e relatórios da Diretoria Geral dos Índios registram seguidos massacres contra os povos do Purus, entre os quais os Juma, que resistiram corajosamente, conforme Günter Kroemer, que consultou essa documentação analisada em seu livro de 1985 "Cuxiuara - o Purus dos Indígenas: ensaio etno-histórico e etnográfico sobre os índios do médio Purus".
Kroemer conta que “de um massacre numa maloca, no Içuã, sobraram apenas duas meninas. Levadas a Canutama onde foram adotadas por Benedito dos Santos Pereira, logo morreram. Em outras malocas não se teve piedade: os assaltantes jogavam crianças ao ar para depois espetá-las na ponta do terçado; muitas foram jogadas na água, onde morreram. Várias expedições punitivas foram feitas contra os índios. Mas, mesmo com a ameaça de extermínio, não se entregaram".
Os sobreviventes se refugiaram na bacia do rio Içuã. Nos anos 1960, sobreviviam no Igarapé da Onça, próximo a Tapauá, algumas dezenas de índios Juma.
- Eu morei perto da maloca daqueles índios desde 1907 e eles nunca mexeram comigo, nem com o meu pessoal. Sempre foram mansos e pacíficos. Depois de muitos anos, conheci os índios que sempre tive vontade de conhecer e aí ficamos amigos; quando eu ia visitá-los, eles me tratavam muito bem. Várias vezes foram me deixar lá na minha barraca - diz o sr. Luiz Chagas, morador de Tapauá.
No início de 1964, o comerciante Orlando França, arrecadou dinheiro entre empresários locais e organizou uma expedição dizendo que era para extrair sorva e castanha. Armados até os dentes, ele, Antônio Craveiro, Antônio Branco, Chico Lúcio, Raimundo Guimarães, Noel, Bernardo, Valdemir, um tal de "Soldado" e alguns outros invadiram o território dos Juma.
Quando chegaram na maloca, não havia ninguém lá. Tiraram sorva à vontade. Lá pelas quatro da tarde, quando os índios voltaram, foram recebidos à bala. Chico Lúcio, um dos atiradores, falou que eles mataram "para mais de 60 índios", segundo depoimento publicado no jornal Porantim, prestado por Luís Chagas, em junho de 1979, em Manaus, à jornalista Conceição Derzi.
Os sobreviventes
Os poucos sobreviventes, entre os quais o menino Karé, com seis anos de idade, e as mulheres "Baru" e "Inté" se refugiaram no igarapé Joari, afluente do Içuã. Em 1979, alertada pela denúncia do Porantim, a Polícia Federal abriu inquérito de número 056 para apurar e identificar os responsáveis pela chacina, que adquiriu contornos de genocídio. Derzi ficou no pé da Polícia Federal, mas o inquérito acabou dando no que sempre dá nesses casos: em nada.
Anos depois, em matéria publicada no Jornal do Brasil e no jornal A Crítica (24/01/93) o repórter amazonense Orlando Faria conta que o ataque de uma onça pintada, numa noite de lua cheia, em janeiro de 1992, decretou a extinção dos Juma, ao matar o índio Karé, de 35 anos, o único homem em condição de reproduzir. Os Juma ficaram reduzidos a três meninas de oito, dez e doze anos e a dois casais de velhos.
Quase na virada do século, em 1998, a família Juma foi levada pela Funai para a aldeia Alto Jamary, dos Uru-eu-wau-wau, onde as meninas se casaram com indivíduos dessa etnia, mas manifestavam desejo de retornar ao seu território de origem. Em 2002 já estavam reduzidos a cinco indivíduos e em 2010 a apenas quatro.
Considerados por Helene Clastres como "os teólogos da floresta" por haverem construído um metadiscurso sobre sua própria religiosidade, os índios do grupo tupi-guarani viviam em constantes migrações em busca da Terra Sem Males. Os seus cantos e melodias entrecortados de frases não cantadas anunciavam a nova terra da promissão, cujo acesso era facilitado pela dança, que tornava o corpo mais leve.
As provações morais e as longas peregrinações representavam o tempo necessário para uma lenta mutação do espírito e do corpo, o que os tornava dignos e merecedores da Terra Sem Males.
Os Jumas que sobreviveram - nos conta Orlando Faria - passaram a criar pássaros de todos os tipos para reencontrar seus parentes assassinados, pois acreditam que as aves incorporaram os espíritos de seus entes queridos. Karé, o último dos Juma, pode ser hoje um gavião rei, voando para a Terra Sem Males. Enquanto isso, nós ficamos mais pobres. E impotentes. Quem acabou com os Juma não foi uma onça, mas um bicho muito mais feroz, predador e perigoso.
P.S.- Pensei publicar aqui uma versão da palestra que ministrei quinta-feira (10/04) no II Seminário sobre interculturalidade organizado pelo Instituto Federal Catarinense (IFC) em Camboriú. O tema da mesa - o diálogo das culturas ancestrais com as ciências e as tecnologias - foi discutido por Adir Casaro (UCDB), Vera Santos e Maicon Fontanive, sob coordenação de Michel Goulart (IFC). Mudei de ideia. Reproduzo aqui versão atualizada de artigo publicado em Manaus (1993) e depois em São Paulo pelo ISA - Instituto Socioambiental (1996), só para poder formular algumas questões à Comissão da Verdade, a nacional e a local:
- Cadê o processo 056 da Polícia Federal? O que foi apurado naquela ocasião? Por que foi arquivado? Por que ninguém foi punido? Os criminosos se enquadram na autoanistia que se concederam os torturadores?