CRÔNICAS

Quem matou Karé, o último dos Juma?

Em: 13 de Abril de 2014 Visualizações: 23679
Quem matou Karé, o último dos Juma?
 
"No domingo, o vigário disse missa e as índias cantaram o Tantum Ergo com harmonia não vulgar".
Alexandre Rodrigues Ferreira, enviado ao Brasil pela Coroa Portuguesa para fazer pesquisas de campo, percorreu durante oito anos (1785-1792) vastas áreas da Amazônia. Quando passou pela vila de Ega, hoje Tefé, registrou em seu diário de viagem a participação de índias de várias nações no ritual católico, entre elas mulheres do povo Juma.
Denominados também Yuma ou Arara, os Juma falam uma língua do tronco tupi-guarani da família linguística Kagwahiva. Habitavam um território no rio Purus, que segundo Euclides da Cunha, era "talvez a maior estrada por onde passavam e repassavam, há muitos séculos, as tribos mais remotas dos extremos do continente".
No século XVIII, os Juma somavam 12 a 15 mil indivíduos, conforme estimativas dos viajantes, mas a população foi reduzida drasticamente no confronto com tropas portuguesas que realizavam "guerras justas" - denominação dada ao violento e predatório processo de recrutamento. Os que escapavam à morte, eram aprisionados e levados para os "currais de índios" localizados nos rios Solimões e Negro, de onde eram "repartidos" para fornecerem trabalho compulsório aos colonos, aos missionários e à administração colonial portuguesa.
Duzentos anos depois da passagem de Alexandre Rodrigues Ferreira, as índias não cantam mais o Tantum Ergo. Desesperadas, as únicas Juma sobreviventes em 1992, duas velhas que respondem pelos nomes de "Baru" e "Inté", cumpriam todas as noites um ritual de lamentos em que combinam choro e canto dramático.
O massacre de 1964
Quem exterminou os Juma que conseguiram resistir até o século XX à escravização, à catequese e às expedições punitivas?
O processo de extermínio, iniciado pelo colonizador português no séc.XVIII, continuou nos séculos seguintes já como ação de brasileiros.  Falas e mensagens dos presidentes da Província do Amazonas e relatórios da Diretoria Geral dos Índios registram seguidos massacres contra os povos do Purus, entre os quais os Juma, que resistiram corajosamente, conforme Günter Kroemer, que consultou essa documentação analisada em seu livro de 1985 "Cuxiuara - o Purus dos Indígenas: ensaio etno-histórico e etnográfico sobre os índios do médio Purus".
Kroemer conta que “de um massacre numa maloca, no Içuã, sobraram apenas duas meninas. Levadas a Canutama onde foram adotadas por Benedito dos Santos Pereira, logo morreram. Em outras malocas não se teve piedade: os assaltantes jogavam crianças ao ar para depois espetá-las na ponta do terçado; muitas foram jogadas na água, onde morreram. Várias expedições punitivas foram feitas contra os índios. Mas, mesmo com a ameaça de extermínio, não se entregaram".
Os sobreviventes se refugiaram na bacia do rio Içuã. Nos anos 1960, sobreviviam no Igarapé da Onça, próximo a Tapauá, algumas dezenas de índios Juma.
- Eu morei perto da maloca daqueles índios desde 1907 e eles nunca mexeram comigo, nem com o meu pessoal. Sempre foram mansos e pacíficos. Depois de muitos anos, conheci os índios que sempre tive vontade de conhecer e aí ficamos amigos; quando eu ia visitá-los, eles me tratavam muito bem. Várias vezes foram me deixar lá na minha barraca - diz o sr. Luiz Chagas, morador de Tapauá.
No início de 1964, o comerciante Orlando França, arrecadou dinheiro entre empresários locais e organizou uma expedição dizendo que era para extrair sorva e castanha. Armados até os dentes, ele, Antônio Craveiro, Antônio Branco, Chico Lúcio, Raimundo Guimarães, Noel, Bernardo, Valdemir, um tal de "Soldado" e alguns outros invadiram o território dos Juma.
Quando chegaram na maloca, não havia ninguém lá. Tiraram sorva à vontade. Lá pelas quatro da tarde, quando os índios voltaram, foram recebidos à bala. Chico Lúcio, um dos atiradores, falou que eles mataram "para mais de 60 índios", segundo depoimento publicado no jornal Porantim, prestado por Luís Chagas, em junho de 1979, em Manaus, à jornalista Conceição Derzi.
Os sobreviventes
Os poucos sobreviventes, entre os quais o menino Karé, com seis anos de idade, e as mulheres "Baru" e "Inté" se refugiaram no igarapé Joari, afluente do Içuã. Em 1979, alertada pela denúncia do Porantim, a Polícia Federal abriu inquérito de número 056 para apurar e identificar os responsáveis pela chacina, que adquiriu contornos de genocídio. Derzi ficou no pé da Polícia Federal, mas o inquérito acabou dando no que sempre dá nesses casos: em nada.
Anos depois, em matéria publicada no Jornal do Brasil e no jornal A Crítica (24/01/93) o repórter amazonense Orlando Faria conta que o ataque de uma onça pintada, numa noite de lua cheia, em janeiro de 1992, decretou a extinção dos Juma, ao matar o índio Karé, de 35 anos, o único homem em condição de reproduzir. Os Juma ficaram reduzidos a três meninas de oito, dez e doze anos e a dois casais de velhos.
Quase na virada do século, em 1998, a família Juma foi levada pela Funai para a aldeia Alto Jamary, dos Uru-eu-wau-wau, onde as meninas se casaram com indivíduos dessa etnia, mas manifestavam desejo de retornar ao seu território de origem. Em 2002 já estavam reduzidos a cinco indivíduos e em 2010 a apenas quatro.
Considerados por Helene Clastres como "os teólogos da floresta" por haverem construído um metadiscurso sobre sua própria religiosidade, os índios do grupo tupi-guarani viviam em constantes migrações em busca da Terra Sem Males. Os seus cantos e melodias entrecortados de frases não cantadas anunciavam a nova terra da promissão, cujo acesso era facilitado pela dança, que tornava o corpo mais leve.
As provações morais e as longas peregrinações representavam o tempo necessário para uma lenta mutação do espírito e do corpo, o que os tornava dignos e merecedores da Terra Sem Males.
Os Jumas que sobreviveram - nos conta Orlando Faria - passaram a criar pássaros de todos os tipos para reencontrar seus parentes assassinados, pois acreditam que as aves incorporaram os espíritos de seus entes queridos. Karé, o último dos Juma, pode ser hoje um gavião rei, voando para a Terra Sem Males. Enquanto isso, nós ficamos mais pobres. E impotentes. Quem acabou com os Juma não foi uma onça, mas um bicho muito mais feroz, predador e perigoso.
P.S.- Pensei publicar aqui uma versão da palestra que ministrei quinta-feira (10/04) no II Seminário sobre interculturalidade organizado pelo Instituto Federal Catarinense (IFC) em Camboriú. O tema da mesa - o diálogo das culturas ancestrais com as ciências e as tecnologias -  foi discutido por Adir Casaro (UCDB), Vera Santos e Maicon Fontanive, sob coordenação de Michel Goulart (IFC). Mudei de ideia. Reproduzo aqui versão atualizada de artigo publicado em Manaus (1993) e depois em São Paulo pelo ISA - Instituto Socioambiental (1996), só para poder formular algumas questões à Comissão da Verdade, a nacional e a local:
- Cadê o processo 056 da Polícia Federal? O que foi apurado naquela ocasião? Por que foi arquivado? Por que ninguém foi punido? Os criminosos se enquadram na autoanistia que se concederam os torturadores?

 

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18 Comentário(s)

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Miguel Aparicio comentou:
08/05/2014
Caro José Ribamar, ótimo texto sobre a trajetória terrível dos Juma do Purus. Como contribuição, além do citado livro de Gunter Kroemer, existe um livro publicado em 2003, de autoria do Pe. Ricardo Cornwall, pároco de Tapauá na época do massacre: "Os Jumas: a continuação da violenta redução dos Tupi". Trata-se de uma edição livre, feita em Madalena (Ceará), cidade onde o Pe. Ricardo foi transferido anos depois. Vale a pena conferir, pelos testemunhos locais que a obra contém. Um abraço, Miguel Aparicio
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Miguel Aparicio comentou:
08/05/2014
Caro José Ribamar, ótimo texto sobre a trajetória terrível dos Juma do Purus. Como contribuição, além do citado livro de Gunter Kroemer, existe um livro publicado em 2003, de autoria do Pe. Ricardo Cornwall, pároco de Tapauá na época do massacre: "Os Jumas: a continuação da violenta redução dos Tupi". Trata-se de uma edição livre, feita em Madalena (Ceará), cidade onde o Pe. Ricardo foi transferido anos depois. Vale a pena conferir, pelos testemunhos locais que a obra contém. Um abraço, Miguel Aparicio
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Adriana Athayde comentou:
19/04/2014
Pergunta certa na semana certa: a semana em que se "comemora" o "Dia do Índio"! Isso não significa que não tenhamos que repeti-la todos os dias, pois sabemos o que há por trás dessas datas, e, ademais, todo dia é dia de índio! Mas também é dia de branco, dia de negro, e de todos os outros... O meu desejo é que esses "todos os outros" se conscientizem do quanto cada um deles é apenas parte de um todo que, obviamente, inclui os índios, aqui, tão exemplarmente representados. Obrigada, Mestre, por não perder uma oportunidade que seja de perguntar, e de nos ensinar com suas perguntas...
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cecilia londres comentou:
18/04/2014
Bessa, essa belíssima crônica é um verdadeiro libelo contra aqueles que, infelizmente ainda nos dias de hoje, "justificam" crimes bárbaros como o que você menciona com base na iníqua distinção dos grupos humanos entre "bárbaros" e "civilizados". E como conhecemos pouco de nossa história, passada e recente. Parabéns! Abraço Cecilia
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Peter Schröder comentou:
15/04/2014
Parabéns pela matéria, Bessa. É importante que essas histórias nunca fiquem esquecidas, e particularmente os nomes dos assassinos e de seus mandantes. Tragicamente, o que sobrará dos Juma serão as memórias. Até hoje não consigo entender por que seres humanos são capazes de cometer tantas atrocidades.
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ana paula comentou:
14/04/2014
O TOTAL DESRESPEITO AOS POVOS INDÍGENAS E O DESCASO COM AS MORTES MENCIONADAS NO TEXTOS MOSTRA O QUANTO PREDADOR É O HOMEM BRANCO COM SUA GANÂNCIA E FALSA IDEIA DE CIVILIZAÇÃO, INDA VEMOS ALGUNS PREOCUPADOS COM S CAUSAS INDÍGENAS E SUA PRESERVAÇÃO, MAS SÃO POUCOS, AQUELES QUE NÃO MORRERAM ASSASSINADOS, AS DOENÇAS , ESCASSEZ E A INDIFERENÇA ESTÁ MATANDO.
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Ivã Bocchini comentou:
14/04/2014
Infelizmente, Bessa, mais um capítulo deve ser acrescentado a essa horrível história: o ataque aos índios, FUNAI e SESAI ocorridos em dezembro de 2013 em Humaitá. A FUNAI de Humaitá vinha fazendo lindo trabalho do qual muito me orgulho promovendo o retorno dos quatro Juma remanescentes ao seu território tradicional após a indevida remoção à área Uru-eu. Trabalho esse amplamente divulgado em nosso blog que mais tarde seria toscamente apontado como causador de um conflito que tem suas origens justamente no tempo da ditadura e na mortífera aventura Transamazônica. Com os carros e prédios destruídos pelo ódio anti-indígena, os Juma estão mais uma vez desamparados. Cinco homens Tenharim seguem presos, mesmo sem julgamento. Os que atacaram índios indistintamente em 25 de dezembro de 2013, assim como os responsa´veis pelo massacre de 64, estão livres.
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caio quintela fortes comentou:
14/04/2014
E ainda falta o Tapajós! Aliás o genocidio ja começou. Pelos Caiabis
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Fábio comentou:
14/04/2014
Não quero contar quando o último "brasileiro" for eliminado, daqui uns tempos, seguindo a lógica capital.
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Astrid Lima comentou:
13/04/2014
I Juma erano considerati i teologi della foresta, ora non esistono più. E' morto Karé, l'ultima vittima di una strage. "Quem matou Karé, o último dos Juma?"
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Clovis Brighenti comentou:
13/04/2014
Parabéns Bessa pela escolha e relato do tema e por denunciar violências omitidos pela grande imprensa. Levar ao conhecimento da sociedade o quanto se violentou e exterminou povos indígenas nesse pais, e que não ocorreram apenas em 1500, mas continuam a correr, em 1964, em 2014... O momento é isso,. Se o país está de fato querendo fazer reparos das ações dos governos militares, os indígenas não podem ser ignorados.
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Susana Grillo comentou:
13/04/2014
Além da tristeza, essa história é pavorosa por ser muito recente ... séculos e séculos de genocídio fazem parte da nossa história. Que a Comissão da Verdade ajude a evidenciar tantos crimes para um mudança ampla de comportamentos e mentalidades.
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Ana Stanislaw comentou:
12/04/2014
Boa Bessa, você sempre com teu olhar crítico, sensível e único. Infelizmente, os indígenas, em toda a América, sofrem os infortúnios da dita sociedade civilizada do século XV aos dias atuais. Falta sensibilidade, respeito, compromisso com os indígenas no Brasil; sobra impunidade, violências, extermínio. Até quando os indígenas serão punidos por serem indígenas? Obrigada por tuas linhas de sensatez e sentimento de justiça!
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José Varella comentou:
12/04/2014
vergonha! Depois da "civilização" acidental (sic) ter exterminado povos originais do Brasil, a colonialidade reinante em nossas universidades massacrantes mata-lhes a memória dos infinitos males na busca da Terra sem Males.
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Vânia Novoa Tadros comentou:
12/04/2014
Com todo respeito aos Jumas ,mas no meu entender, neste momento, existem problemas seríssimos criados pelo PT que muito prejudicam o povo brasileiro merecedores de uma abordagem tua, Bessa, com essa habilidade didática que tão bem desenvolves tipo: _ Quem destruiu a Petrobrás ? _ Por que comprar Passadena super faturada ?_ Por que os mensaleiros detidos gozam de inúmeras regalias? _ Quem paga as negociatas do Senador Petista André Vargas com o doleiro Yussef? Por que a Dilma vai construir uma universidade na África? Com que dinheiro a Dilma construiu a sua mansão no Rio Grande do Sul? Por que a Dilma construiu o Porto de Cuba enquanto os brasileiros encontram-se no chão dos hospitais? Por que o Renan Calheiros está blindando a Dilma impedindo a instalação da CPI da Petrobrás? Por que este governo desmoralizou o STF? São assuntos sérios demais para ser colocados de lado. Já entendi. A ordem agora é desmoralizar a Policia Federal para que possam acontecer mais falcatruas.
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Anne comentou:
14/04/2014
Você não lê a Veja, o Globo, a Isto é, Vânia? Eles respondem exaustivamente, todos os dias, como bem (mal) entendem a todas suas perguntas. Deixe o Bessa cuidar dos índios, pois esses ilibados órgãos de imprensa não têm perguntas a fazer em assuntos como este que o Bessa acabou de nos contar
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Marcelo Sant'ana Lemos comentou:
12/04/2014
Mais uma tenebrosa história não apurada, ressurgida das poeiras de inquéritos nunca concluídos e escondidos nas burocracias estatais. Valeu Bessa.
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12/04/2014
O pior em tudo isto é a indiferença com que estas pessoas matam os índios. Não possuem nenhuma consciência nem quando inquiridos. Não querem saber se mataram inocentes. Acham-se impermeabilizados de qualquer culpa ou julgamento.Ensinam esta maneira de ser aos descendentes e geram pessoas amaldiçoadas que nunca vão entender o porquê de seu sofrimento genético. Mas não pedem perdão a Deus e nem sabem que Deus existe. É isto! Contato de claudia dias tavares
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