CRÔNICAS

Ana e os ladrões de água

Em: 23 de Março de 2014 Visualizações: 31413
Ana e os ladrões de água
Eu sou a água / que mata a sede /
onde eu não estiver / você se lembra de mim.
Aturi Kaiabi
 
O mundo inteiro, hoje, está lembrando dela pela falta que faz, até mesmo no Brasil que é dono de 16% dos rios do planeta. Os rios estão morrendo. Poluição, esgotos,  desmatamento e a seca em dois verões consecutivos no Sul e Sudeste provocam escassez de água, já desaparecida de muitas torneiras de São Paulo. É grave a crise de abastecimento que há dias motivou o maior arranca-rabo entre dois governadores, porque um deles quer bombear o rio Paraíba do Sul, levando água do Rio de Janeiro para os reservatórios paulistas. Parece que chegou a hora da onça beber água.
A viabilidade do plano paulista está aguardando parecer técnico da Agência Nacional de Águas (ANA), já que o Paraíba do Sul, que banha três estados, é rio federal. Enquanto isso, a guerra verbal já fez sua primeira vítima: o governador Alckmin foi agraciado pelos cariocas com o título de "ladrão de água", neste sábado, 22 de março, quando se celebra o Dia Mundial da Água, criado pela ONU por decisão da Conferência Rio 92 para conscientizar sobre a necessidade de proteger rios, fontes e suprimentos de água potável. De lá para cá, muita água rolou embaixo da ponte.
A destruição dos recursos hídricos fez com que se começasse a buscar quem sempre manteve relação sadia com a natureza. O conhecimento dos índios, dos povos da floresta, dos ribeirinhos, dos quilombolas, dos caiçaras começou a ser olhado com interesse e respeito, sem preconceito epistemocêntrico. O legado deles mostra que águas passadas podem mover moinhos sim senhor. Um exemplo está no  'Livro das Águas', organizado por Maria Cristina Troncarelli, editado pelo Instituto Sociambiental (ISA)  e escrito por professores indígenas do Parque do Xingu.
Livro das águas
Um desses professores é Aturi, da aldeia Tuiararé, onde vivem  250 índios Kaiabi, falantes de Kawaiwete, língua da família Tupi-Guarani. Ele alfabetiza as crianças na língua materna e ensina o português como segunda língua, além de realizar pesquisas com seu colega Pikuruk Kaiabi no Projeto Documentação de Línguas Indígenas (PRODOCLIN) do Museu do Índio/RJ, desenvolvido com apoio da UNESCO. Essa língua, cuja descrição fonética e fonológica está sendo feita, guarda saberes úteis à humanidade.
- Nos meses de setembro e outubro, as cigarras cantam e os primeiros trovões anunciam a chegada das chuvas aos índios do Xingu, que se preparam para receber a água que cai do céu. Nos últimos anos, porém, esses sinais não são mais confiáveis. Os insetos não têm mais força para chamar a chuva. As cigarras cantam e cantam, o dia inteirinho, mas a chuva não vem.
Aturi está preocupado com os rios moribundos, cuja agonia já está provocando mudanças climáticas no Xingu, com repercussões sobre a fauna e a flora que levam à reelaboração dos conhecimentos sobre elas. Ele conta que o mutum, pássaro que era abundante no Parque Indígena, está desaparecendo: "Antes a gente ouvia o mutum cantar todas as noites. Agora ninguém mais ouve o canto deles. A jacutinga também era uma ave muito comum aqui, mas hoje ela sumiu". O desmatamento do entorno por fazendeiros e a construção de hidrelétricas mexe também com os peixes:
 - Nós moramos na beira do rio. Nossa rua é o Rio Xingu, que é nossa vida Na piracema, os peixes sobem o rio para desovar em pequenos lagos. Os peixinhos ficam ali esperando o nível da água subir para voltar ao rio e crescer lá. Hoje, o rio demora tanto a subir que o lago seca e peixinhos acabam morrendo antes. É muito triste - lamenta Aturi.  
A classificação das águas feita pelos Kaiabi já não é mais aquela que parece com a que foi  cantada pela poeta amazonense Astrid Cabral:
Tem água cor de café,
 tem água cor de cajá,
tem água cor de garapa,
tem água que nem guaraná.
Rios moribundos
A cor da água e sua qualidade estão se alterando. Levantamento feito pela Fundação SOS Mata Atlântica em 96 rios, lagos e igarapés de sete estados do Sul/Sudeste registra que a água de 40% deles apresenta qualidade péssima ou ruim, 49% estão em situação regular e apenas 11% podem ser consideradas de boa qualidade. No Rio, a situação é mais dramática. Coletas realizadas entre março de 2013 e fevereiro de 2014 revelam que 100% das águas estão em condições ruins ou regulares.
O Rio Guandu recebe um bilhão de litros de esgoto doméstico. É cocô que não acaba mais. O esgoto doméstico não tratado, as atividades industriais à beira de rios, o uso de agrotóxicos, os produtos químicos lançados nas redes públicas de coleta de água, o lixo, o desmatamento, a erosão e a redução da faixa de preservação da mata ciliar prevista no Código Florestal - tudo isso mostra, como quer a poeta Astrid, que
A água doce
não é tão doce
antes fosse.
O professor guarani Marcos Moreira entrevistou o velho Alexandre Acosta, na aldeia de Jataity (RS) que definiu sua relação com a terra e com o rio:
- Esta terra que pisamos é o nosso irmão. É por isso que o Guarani respeita a terra, porque ela é também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois a água é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, é uma pessoa, tem almaA mata, por exemplo, quando um Guarani precisa cortar uma árvore pede licença, pois sabe que a árvore é uma pessoa que se transformou neste mundo. Esta terra aqui é nosso parente, mas é mais importante que nós. Por isso, nós falamos para as crianças respeitarem a terra, porque ela já foi um Karai e até hoje ela se movimenta, só que nós não percebemos.
O engenheiro Gilberto Menezes Moraes, um baiano arretado que é professor da UERJ e dá nó em pingo da dita cuja, conta que quando era professor da PUC, seu colega José Carlos Sussekind, ex-Secretário Extraordinário do governo Brizola, advertia que no futuro as guerras por água seriam uma constante. Agora, os kaiabi juram que as cigarras e os trovões já não anunciam as chuvas, que o mutum parou de cantar e que os peixes estão morrendo. O futuro chegou.
- Você já construiu o seu reservatório extra, no banheiro e na área de serviços? Faça. E cuidado com os ladrões de água - ironiza Gilberto, que nessas alturas faz a mesma pergunta de Yanin, outro poeta Kaiabi:
Quem vai segurar?
A água namora com a pedra / A pedra sempre feliz vai ficar /
A água corre no rio / e esse rio cai no mar / O ar segura o mundo
E o mundo segura o mar de novo / Os dois seguram os homens /
E os homens, será que vão segurar?

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28 Comentário(s)

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Maria Cristina Cabral Troncarelli comentou:
16/04/2014
Que bom saber que as águas mexem com a nossa alma e que a arte, a poesia, a literatura podem contribuir pra fazer história! Viva os meus parentes xinguanos, é nós!
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Alenilson alves da Silva comentou:
04/04/2014
Hoje ainda não sentimos aqui essa falta de água, se torna visível que o mundo ainda vai entrar em guerra por ela. Somos agraciados pelo Rio Negro que nos alimenta e mata nossa sede...
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Susana Grillo comentou:
29/03/2014
Linda crônica... fortes as observações dos Kayabi sobre as mudanças climáticas... abraços
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Maria Joana comentou:
25/03/2014
Parabéns, Professor, pela sua bela e oportuna crônica. Apesar de amar a água por ter nascido às margens de um dos rios amazônicos e possuir plena consciente da sua importância, não sabia que o Dia da Água já existia. Informo que acabo de encaminhar essa crônica aos amigos do Projeto AMA.
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Daniele Lopes comentou:
24/03/2014
Eu não tiro a razão dos índios, infelizmente pela ganância dos homens" brancos" padecemos esse resultado trágico que estão fazendo com a natureza.
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Daniele Lopes comentou:
24/03/2014
Eu não tiro a razão dos índios, infelizmente pela ganância dos homens" brancos" padecemos esse resultado trágico que estão fazendo com a natureza.
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Daniele Lopes comentou:
24/03/2014
Eu não tiro a razão dos índios, infelizmente pela ganância dos homens" brancos" padecemos esse resultado trágico que estão fazendo com a natureza.
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Sinvaldo O. Wahuka comentou:
24/03/2014
Muito bom professor! É sempre assim, aos poucos os animais e insetos estão desaparecendo. Em várias região, principalmente, nas reservas indígenas muitos dos animais já não existem mais! Na reserva indígena Karajá Área I,II, e III em Aruanã-GO os meninos não sabem o que é mutum, jacu e nem jaó, por isso eles não sabem o nome dessas aves na língua. Quer dizer, acaba os animais norre a língua indígena. Abraços
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Sinvaldo O. Wahuka comentou:
24/03/2014
Muito bom professor! É sempre assim, aos poucos os animais e insetos estão desaparecendo. Em várias região, principalmente, nas reservas indígenas muitos dos animais já não existem mais! Na reserva indígena Karajá Área I,II, e III em Aruanã-GO os meninos não sabem o que é mutum, jacu e nem jaó, por isso eles não sabem o nome dessas aves na língua. Quer dizer, acaba os animais norre a língua indígena. Abraços
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23/03/2014
Caramba! Parece que falamos com as paredes! Eu uso uma garrafinha de água pelo menos uns 2 anos e meio, ela passa o dia comigo, vou enchendo ao longo do dia, e quando ela não mais tiver condição de uso aí sim me despeço dela, se Deus me conceder a alegria de passar momentos com meus irmãos indígenas para aprender tenho certeza que serei de fato uma pessoa bem melhor. Contato de gerusa pontes de moura
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
Muito boa! Ficou ótima essa associação do texto com as poesias indígenas. Confesso que ao ler apenas o título pensei que fosse sobre as brincadeiras da Ana Pereira.
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
Muito boa! Ficou ótima essa associação do texto com as poesias indígenas. Confesso que ao ler apenas o título pensei que fosse sobre as brincadeiras da Ana Pereira.
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
Muito boa! Ficou ótima essa associação do texto com as poesias indígenas. Confesso que ao ler apenas o título pensei que fosse sobre as brincadeiras da Ana Pereira.
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
Muito boa! Ficou ótima essa associação do texto com as poesias indígenas. Confesso que ao ler apenas o título pensei que fosse sobre as brincadeiras da Ana Pereira.
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
Muito boa! Ficou ótima essa associação do texto com as poesias indígenas. Confesso que ao ler apenas o título pensei que fosse sobre as brincadeiras da Ana Pereira.
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vania novoa tadros comentou:
23/03/2014
Muito boa! Ficou ótima essa associação do texto com as poesias indígenas. Confesso que ao ler apenas o título pensei que fosse sobre as brincadeiras da Ana Pereira.
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Vania Novoa Tadros comentou:
23/03/2014
Lindo artigo encaixando as poesias indígenas ficou muito bom. Confesso que ao ler apenas o título pensei que ias contar alguma peripécia da Ana Pereira.
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Vania Novoa Tadros comentou:
23/03/2014
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23/03/2014
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23/03/2014
Lindo artigo encaixando as poesias indígenas ficou muito bom. Confesso que ao ler apenas o título pensei que ias contar alguma peripécia da Ana Pereira.
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23/03/2014
Lindo artigo encaixando as poesias indígenas ficou muito bom. Confesso que ao ler apenas o título pensei que ias contar alguma peripécia da Ana Pereira.
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Ana Silva comentou:
22/03/2014
Maraaavilhooosa! Pois é, os homens, suspeito, não vão segurar; principalmente se forem como os políticos do Rio, de Seropédica - lamesntável - que autorizaram a criação de um aterro sanitário sobre o aquífero Piranema, projeto nefasto, condenado por muitos especialistas, entre eles pelo pesquisador Cícero Pimenteira (Coppe). Isso sim é vergonhoso e inadmissível. Infelizmente, ouvimos a voz desses políticos sórdidos que defendem o tal "desenvolvimento/crescimento econômico" do país. Mas, qual é o preço do desse desenvolvimento? Por que não ouvirmos e aprendermos com os indígenas? Belo texto Bessa. Você sempre afiado. Viva,bravo!
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Ana Silva comentou:
22/03/2014
Maraaavilhooosa! Pois é, os homens, suspeito, não vão segurar; principalmente se forem como os políticos do Rio, de Seropédica - lamesntável - que autorizaram a criação de um aterro sanitário sobre o aquífero Piranema, projeto nefasto, condenado por muitos especialistas, entre eles pelo pesquisador Cícero Pimenteira (Coppe). Isso sim é vergonhoso e inadmissível. Infelizmente, ouvimos a voz desses políticos sórdidos que defendem o tal "desenvolvimento/crescimento econômico" do país. Mas, qual é o preço do desse desenvolvimento? Por que não ouvirmos e aprendermos com os indígenas? Belo texto Bessa. Você sempre afiado. Viva,bravo!
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22/03/2014
Como sempre arrebatador, muito bom mesmo, socializando... :-) ! Contato de Juarez Silva (Manaus)
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Mauro Souza(primo do Pão Molhado) comentou:
22/03/2014
Leitura informativa, esclarecedora e reflexiva. Recomendo. "E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos não por ser exótico Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio" Um Indio, Caetano Veloso
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