CRÔNICAS

Mulheres do Rio Negro: a avó do mundo

Em: 27 de Outubro de 2013 Visualizações: 21761
Mulheres do Rio Negro: a avó do mundo

Durante uma semana, de 16 a 22 de outubro, convivi com três índias em Canafé, no município de Santa Isabel (AM). Adelina Sampaio, Larissa  Duarte e Adilma Lima participaram com mais 50 índios do II Curso de História Indígena no Médio e Alto Rio Negro. Elas são netas legítimas da Ye´pá-Bahuári-Mahsõ, a Avó do Mundo que criou o universo, tarefa realizada em outras mitologias por um Deus masculino, descartado no mito Tukano porque, sem útero, não pode fazer gentes. Aqui quem cria o mundo e gera os primeiros seres é uma entidade feminina. Faz sentido.

Como isso aconteceu? Foi assim. No princípio, o mundo não existia, só havia escuridão e o espaço vazio e triste, o espaço frio e sem ideias. Surge, então, a Ye´pá, dentro de uma nuvem branca, de brilho intenso, embalada por cantos sagrados. Ela vem dançando, abraçada pela música que, em forma de redemoinho de vento, acaricia-lhe o corpo, penetra sua carne, seus ossos e até seus pensamentos. Grávida de música, a Avó do Mundo cria a Casa da Terra, parindo as gentes e os primeiros seres, como conta Gabriel Gentil em Mito Tukano: Histórias proibidas do Começo do Mundo.

Podemos cantar porque todos nós, leitores - você, eu e até aqueles que ignoram isso - somos filhos da Música que fecundou a Avó do Mundo. Com muito mais razão, podem cantar as três índias, falantes de língua Tukano: Adelina, Dessana, 22 anos, da Comunidade Balaio; Larissa, Tukana, 19, de Taracuá; Adilma, Tariana, 33, de Iauareté. Neste curso organizado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), elas cantaram, fazendo intervenções oportunas sobre o papel da mulher nas lutas indígenas.

O curso do rio

O território indígena do Rio Negro abriga 30 mil olhos d'água e lá correm cerca de 100 rios e 1.000 igarapés. Lá vivem 50 mil netos da Avó do Mundo, distribuídos em 873 comunidades e sítios indígenas, segundo o Censo do IBGE de 2010. Uma dessas comunidades é Canafé, com 96 moradores. Foi lá, na Escola Yandé Putira - Nossa Flor -  que aconteceu o curso de formação de liderança, cujos participantes, falando diferentes línguas e provenientes de diversos rios, foram selecionados por uma comissão. Eles se deslocaram à Canafé para seguir as duas etapas sequenciadas do curso.

Na primeira etapa, com o doutor Geraldo Pinheiro, ex-professor da Universidade Federal do Amazonas e pesquisador da Universidade do Porto (Portugal), abordamos a história da ocupação do Rio Negro desde tempos imemoriais, recorrendo à arqueologia e às narrativas míticas. Depois, apoiados em documentos de arquivos de Portugal e do Brasil e nos relatos de viajantes e missionários, discutimos a catástrofe demográfica do período colonial, a escravização de índios, a catequese e a resistência dos Manáos, Baré, Baniwa, Tukano e demais povos. 

Destacamos ainda a história das línguas, a repressão aos idiomas indígenas, a expansão do Nheengatu, a introdução do português na região e a situação das línguas em contato. Na segunda etapa, a história do movimento indígena foi abordada por dois dirigentes: o líder histórico baré Braz França, ex-presidente da FOIRN (1990-1997) e o tukano Maximiliano Menezes, presidente da COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, ambos acompanhados por Marivelton Barroso, jovem liderança baré, atual diretor da FOIRN.

Foi um momento singular renovador de esperanças: os mais velhos transmitiram aos jovens as experiências de luta pela demarcação de terras e pela construção das organizações indígenas. Além disso, avaliaram os erros cometidos, analisaram as vitórias e as lições aprendidas, num curso que vai durar mais de um ano, com módulos temáticos realizados em São Gabriel e nas comunidades. A luta continua.

Direitos da mulher

Posto que uma mulher criou o mundo, as perguntas de Larissa, Adelina e Adilma giraram em torno do papel atual das mulheres na luta indígena. Maximiliano, Braz e Marivelton listaram nomes que se destacaram: Almerinda Lima, atual presidente da FOIRN, Joaquina Sarmento dos Santos, fundadora da entidade e outras diretoras da Foirn e de associações locais: Edina Trindade, Rosilene Pereira, Madalena Paiva, Cecília Albuquerque, Bibiana, Regina Duarte, Edinair Torres, Olimpia Melgueiro, Jacinta Sampaio, Carmen Figueiredo e tantas outras.

Todas elas enfrentaram desafios políticos e familiares para conciliar a militância com a criação dos filhos, os cuidados da roça, a confecção de artesanato de palha, tucum, cuias, cerâmica, os estudos, além de viagens para participar em reuniões, oficinas, encontros, assembleias.

Há um mês, em setembro, a Foirn, através do Departamento das Mulheres Indígenas do Rio Negro (DIMIRN), realizou em Santa Isabel uma oficina sobre os direitos da mulher indígena, quando 50 mulheres discutiram os problemas enfrentados nos três municípios e comunidades do Rio Negro. Na ocasião, a Coordenadora do DIMIRN Rosane Cruz, 23, Piratapuya, apresentou algumas estratégias de comunicação para que aquelas que vivem  nas comunidades mais distantes conheçam seus direitos.

"Traduzir as leis, como a da Maria da Penha nas línguas indígenas, pode ser uma forma de fazê-las conhecidas por todas as mulheres" - disse Rosane. Uma carta foi aprovada pelas participantes, endereçada aos prefeitos e Câmaras Municipais, exigindo a criação de estruturas de atendimento à mulher.

Essas foram algumas das respostas que encontraram no Curso as três jovens indígenas: Larissa Duarte, filha do líder Sebastião Duarte; Adelina Sampaio, sobrinha de Álvaro Tukano e Adilma Sodré, conselheira da Associação da Mulher Indígena de Iauareté.

É uma pena que Manaus, que comemora nesta semana 344 anos, não acompanhe de perto tais eventos. De costas para o Rio Negro, em cuja foz está localizada, com os olhos voltados para fora, Manaus, coitada, não sabe a quinhapira que está perdendo.

P.S. 1 - No curso, organizado por Marivelton (Foirn), Lirian Monteiro e Renato Martelli (ISA), estiveram presentes cursistas que não haviam sido selecionados: as mutucas. Segundo o filósofo Iñaki Gomeza, único uruguaio a participar do curso em Canafé, "la mutuca es una mosca con alma de mosquito". Ela parece, morfologicamente, com a mosca, mas se comporta agressivamente como se fosse carapanã ou muriçoca.

Os ataques do exército de mutucas, que mais pareciam voos não tripulados de drones assassinos enviados por Obama à Amazônia, foram compensados pelo carinho dos alunos, pela hospitalidade da Comunidade de Canafé, pelos banquetes de quinhapira preparados sob a coordenação de dona Suliete e pela peça teatral - O Casamento da Filha do Mapinguari - encenada sob a direção do Fidelis Baniwa, o ator que interpretou o índio Joe Caripuna na minisérie Mad Maria. Mutucas do Rio Negro! Eu voltarei cantando com Cidade Negra: "Se querem meu sangue, terão o meu sangue". Mas aviso que sairei no tapa.

Obs. Fotos de Geraldo Pinheiro.

 

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17 Comentário(s)

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Ada Bessa da Veiga comentou:
02/11/2013
Prezado primo José, que não conheço.... Um outro primo Bessa (Márcio) que também não conheço está organizando uma confraternização da Família Bessa aqui em Florianópolis (SC). Este primo é neto do Adalberto Bessa, e mora no RJ. Em 2011 foi realizada em SP a primeira confraternização onde compareceram 53 pessoas e foi um sucesso onde todos querem repetir. Seu nome me foi passado por uma outra prima (escritora), a Ines, que também não conheço. É por isto que queremos nos reunir. Para que aqueles que não se conhecem passem a se conhecer e aqueles que já se conhecem relembrem fatos ocorridos em outras épocas. Que tal entrar em contato conosco? Um abraço, Ada
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Roberto Abtibol comentou:
29/10/2013
Gostei muito do texto. Me fez despertar a vontade de ler mais sobre o assunto. um forte abraço, querido mestre. Contato de Roberto Abtibol
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Julia Bernstein (via Fb) comentou:
29/10/2013
José Bessa e seus textos deliciosos.... ai que saudade do Rio Negro!
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gerusa pontes de moura comentou:
28/10/2013
Nossa é de tirar o chapéu sempre! Tenho muito orgulho de meus irmãos, esta semana uma professora deu um exercício para a turma fazer, era para decodificar um texto e eu me aproximei muito do significado, então ela me perguntou como eu havia feito, é simples professora me reconheço indígena, e sou feliz me sentindo assim, um grande abraço no povo bravo de nossa terra BRASIL.
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Daniele Lopes comentou:
28/10/2013
Essa fibra da mulher indígena é digna de ser valorizada e reconhecida.
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Ana Silva comentou:
28/10/2013
Maravilhosa cronica, Bessa! Aqui em Oaxaca, México, estou tendo a oportunidade de conhecer parte da cultura, música, saberes indígenas desse lugar e de outras regioes da América Latina.
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Lirian Monteiro (via FB) comentou:
28/10/2013
Fizemos história no curso de história do rio negro. Saudades daqueles momentos de alegria que Canafé nos proporcionou.
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Leda Beck (via FB) comentou:
28/10/2013
José Bessa esteve no Alto Rio Negro, dando um curso de história indígena na região. Entre os alunos, todos índios, estavam essas três "netas legítimas da Ye´pá-Bahuári-Mahsõ, a Avó do Mundo, que criou o universo, tarefa realizada em outras mitologias por um Deus masculino". No mito Tukano, esta hipótese foi descartada porque, sem útero, um deus masculino não pode fazer gentes. "Aqui, quem cria o mundo e gera os primeiros seres é uma entidade feminina", diz ele. "Faz sentido."
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Alice Barbosa Rodrigues (via FB) comentou:
28/10/2013
Eu vi o blog ! Êh muito legal ! tenho que ler mais pra conhecer a proposta de trabalho dele , e pude perceber em poucas linhas o que a Leda disse , não tem mesmo nada a ver com catequese ! João , seremos sempre da paz né ...
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João Garcez Ghirardi (via FB) comentou:
28/10/2013
E o artigo é realmente bom, como disse a Alice. É o que dá falar só pela orelha do livro ou só pelo primeiro parágrafo. O trabalho desenvolvido é fabuloso e mesmo a transformação do mito foi espontânea e também mitológica. Bem legal mesmo. Valeu, ó pacífica Alice, obrigado...
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Leda Beck (via FB) comentou:
28/10/2013
Não conheço o Bessa pessoalmente, mas os artigos dele que tenho lido são indício seguro de que suas atividades não têm NADA a ver com catequese, podem apostar... O blog dele chama-se taquiprati, procurem. É muito legal.
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Alice Barbosa Rodrigues (via FB) comentou:
28/10/2013
João , vale a pena ler o link ! Também achei estranho ... Não entendi muito bem isso . Uma coisa eu te digo , o trabalho dele em si , êh bem legal .
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João Garcez Ghirardi (via FB) comentou:
28/10/2013
Legal . Mas um pouco complicado isso de se contrapor a um mito indígena, arraigado (mito!), não sendo um deles. Meio catequista, não é? Talvez não seja, estou falando de ver seu post. Seria interessante conhecer melhor este trabalho.
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Alice Barbosa Rodrigues(via FB) comentou:
28/10/2013
Que bacana Leda ! Seu amigo Jose mandou bem hein !
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Larry Shicks (Via FB) comentou:
28/10/2013
gostei todos seus fotos...traz muitos lembrancas da vida interior e saudades pra a vida boa
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Maximiliano Correa Menezes comentou:
27/10/2013
Muito bem professor Bessa! Gostei dotexto
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Suely Campos comentou:
27/10/2013
Professor, gostaria muito de ter feito esse curso? Estou fazendo minha dissertação sobre o Rio Negro. Como fazer pra me inscrever?
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