- Dona Miloca não tem culpa neste crime! Nem os moradores de Novo Hamburgo! A culpa é exclusivamente do réu!
Essa frase solene, com três pontos de exclamação, caiu como uma bomba, quando foi proferida pela testemunha identificada como TAQUIPRATI, amazonense, colunista do Diário do Amazonas, nascido em Manaus num dia qualquer de 1947, filho de João Taquiprati e de Elisa Taquiprati. Foi na Ação Penal movida pelo Ministério Público Federal, cujo réu é Ivar Paulo Hartmann, brasileiro, casado, colunista do Jornal Novo Hamburgo e promotor de justiça aposentado, nascido em 15.12.1940, filho de Pedro Hartmann e de Miloca Hartmann, residente em Novo Hamburgo/RS.
Do local do crime
O crime do qual é acusado o jornalista Hartmann ocorreu a 40 km. de Porto Alegre, na pacata cidade de Novo Hamburgo (RS), banhada pelo Rio dos Sinos, numa região que já foi densamente habitada por índios Charrua, Minuano, Guarani, Carijó e Kaingang. A história desses povos poderá ser contada pelo Museu Arqueológico do Vale do Rio dos Sinos, cuja criação é reivindicada, entre outros, por Agnaldo Charoy, autor de "A Pré-História de Novo Hamburgo: A História dos Vencidos".
Os vitoriosos foram os colonizadores. Primeiro, vieram os portugueses de Açores, no século XVIII e, a partir do início do século XIX chegaram os alemães, seguidos dos italianos, que com seu trabalho e suor ajudaram a construir Novo Hamburgo, a "capital nacional do calçado". Todo mundo entende que o melhor agora é criar relações amistosas e pacíficas, como forma de reparar a violência histórica contra os índios e a usurpação de suas terras. Para isso, é preciso reconhecer a participação de todos na formação gaúcha e aprender a conviver com a diversidade.
Em Novo Hamburgo, a diferença é, quase sempre, respeitada. A cidade possui hoje um bairro chamado Guarani e sedia o Museu Tukuna, com um rico acervo dos índios do Alto Solimões, no Amazonas, ampliado com doação de peças artesanais da pesquisa de campo realizada por Angela Brock na aldeia Belém, em Benjamin Constant (AM), incluindo esculturas, máscaras, vestes, cerâmica e instrumentos musicais. Conserva ainda um pouco mais de 100 peças arqueológicas do Rio Grande do Sul. As crianças que visitam o Museu aprendem a conhecer e a respeitar os índios.
Mas a presença dos índios não se limita aos museus, como se fossem apenas figuras de um passado distante. Não! Eles continuam vivinhos da silva, inseridos no presente da região, como atestam a comunidade indígena Kaingang de São Leopoldo, da qual se emancipou Novo Hamburgo, e os guarani com suas duas aldeias fixadas em Riozinho.
Os índios convivem hoje muito bem com os descendentes dos europeus, que ergueram um Monumento ao Imigrante em homenagem aos alemães e, o que é mais importante ainda, edificaram na Praça do Imigrante um Monumento da Paz, construído com armas de fogo derretidas. A paz é uma meta que só pode ser atingida se, além das armas, forem derretidos também os preconceitos, com respeito às diferenças culturais. Na região, além do português, sobrevivem idiomas minoritários de origem europeia - o hunsrückisch e o talian, e de origem ameríndia - o guarani e o kaingang.
Essa diversidade é a base da busca do diálogo respeitoso, embora às vezes tenso e, por essa razão, o crime cometido por Hartmann repercutiu dentro e fora da região, porque deixou inseguros não apenas os que estão vivos, mas até mesmo os mortos. Como diz Walter Benjamin, "também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer", conforme constatamos no crime cometido.
Do crime
O fato delituoso descrito na peça acusatória aconteceu em outubro de 2008, algumas semanas após o ministro Carlos Ayres Britto ter dado parecer, no Supremo Tribunal Federal, favorável aos índios de Roraima que reivindicavam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O filho da dona Miloca, Ivar Paulo Hartmann, promotor aposentado, não gostou. Manifestou opinião contrária em sua coluna do Jornal NH no artigo "Raposa do Sol e outras raposas". Até aí tudo bem: liberdade de imprensa. Mas ele apelou para a ignorância e tratou os índios com ofensas como:
- "No Brasil de hoje, as tribos remanescentes são compostas por indivíduos semicivilizados, sujos, ignorantes e vagabundos, vivendo das benesses do poder branco".
Além disso, escreveu no jornal com todas as letras, sem exibir qualquer prova, um enorme besteirol: que "os Estados Unidos, a primeira potência da terra, querem apropriar-se dos recursos minerais de Roraima" e para isso contam com "os índios atrasados do Brasil-Norte". Só que, diante de acusação tão grave, em vez de se revoltar contra os gringos potencialmente expropriadores, Ivar falou fininho com eles, quase pedindo desculpas, e atacou os índios expropriados, com quem engrossou a voz.
O texto racista de Hartmann contraria as relações amistosas com os índios e reforça preconceitos ainda existentes. Por isso, o Conselho de Missão entre Índios - COMIN, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) não deixou por menos e protocolou uma representação na Procuradoria da República em Novo Hamburgo. O juiz recebeu a denúncia e foi aberto uma ação penal, na qual o acusado teve amplo direito de defesa. Testemunhas foram ouvidas. Uma delas foi justamente o Cacique da Comunidade Kaingang de São Leopoldo, Alécio Garfej de Oliveira.
- "Perguntado, sr. Alécio respondeu que tomou conhecimento do texto publicado e, ainda que tenha sido escrito acerca de todas as comunidades do Brasil, atinge de forma direta os indígenas daqui. Disse não ser "vagabundo", nem "sujo", pois trabalha e sustenta sua família e que ficou muito triste com o que estava escrito e que não concorda com nada. Disse sentir-se 'com uma discriminação total' e que ficou chocado ao tomar conhecimento das palavras escritas".
O Cacique, em cuja aldeia moram vinte e cinco famílias, declarou que "recebe lá qualquer pessoa sem discriminar cor ou raça". Disse que o terreno de 2,5 hectares em São Leopoldo foi reconquistado após muita luta e que sobrevivem basicamente do artesanato que vendem. "Que não é verdade que vivem 'às custas do poder branco', pois muitos vivem ali, na aldeia, embaixo de lonas, com muitas dificuldades. Disse que ficou sabendo do segundo texto publicado pelo acusado, mas que isso de nada adiantou, pois atingiu todo o povo".
O segundo texto foi uma tentativa de corrigir o primeiro. Nele, o autor alega que "não há de fato, nenhum cunho racista" naquilo que escreveu, onde "o povo indígena apenas é apresentado como frágil, pouco culto e consequentemente facilmente ludibriado por grupos que tem algum interesse subjacente". O cara ainda acha que existe povo muito culto e povo pouco culto. A emenda saiu pior do que o soneto.
Da sentença
Depois de tramitar quase três anos, a juíza federal Jacqueline Michels Bilhalva, no dia 28 de março de 2011 proferiu, enfim, a sentença. Deu um creu em Hartmann condenando-o, por incitar a discriminação contra índios, a prestar dois anos de serviços comunitários e a pagar 24 salários mínimos de multa, que será destinada à Comunidade Kaingang de São Leopoldo. A sentença é lúcida, oportuna e clara, apesar do latinorum que contém.
Os advogados de Hartmann recorreram. Na última quarta-feira, dia 14 de maio, após examinar o recurso, outra juíza federal Salise Monteiro Sanchotene, convocada para atuar na 7a. Turma do Tribunal Regional Federal - essa é a nossa tchurma - deu outro creu e confirmou a condenação, mantendo integralmente a sentença da colega. Bem feito! Se o Ivar tivesse escutado os conselhos e as palavras amorosas de dona Miloca, não passaria por esse vexame. Se ele ao menos tivesse visitado o Museu, poderia ter outra visão.
Tem gente que xingou dona Miloca, esquecendo que mãe é mãe. Ivar agiu como uma besta, mas dona Miloca não tem culpa pelas ofensas racistas de seu filho. Nem ela, nem os moradores de Novo Hamburgo que dessa forma ficaram expostos a todo o Brasil. Não foi isso que dona Miloca e Nova Hamburgo ensinaram para ele. Não é essa a narrativa sobre os índios do Museu do Vale do Rio dos Sinos.
P.S. - A açao penal de número 2009.71.08.004943-2/RS ouviu as testemunhas citadas, menos evidentemente o Taquiprati, cujo depoimento não consta no processo e foi dado a posteriori, aqui no Diário do Amazonas, depois de proferida a sentença por duas juízas maravilhosas que conseguiram identificar o "fumus comissi delicti", assim mesmo, porque tudo que é dito em latim soa profundo: "quid latine dictum sit, altum sonatur".
Aproveitando a deixa, lembramos o que Cícero dizia no Senado Romano: "Hic culum cotiae sibilare", isto é, aqui é que o fiofó da cotia começa a assoviar. Que a sentença sirva de lição às bestas, antas e cotias que circulam por ai. O referido é verdade e dou fé.
P.S. - Celebremos a noticia relacionada ao tema, divulgada em 21 de setembro de 2016 pelo CIMI-SUL.
Condenado por discriminação, jornal de Chapecó (SC) deverá pagar cursos e ceder espaço de publicação para indígenas por cinco anos 21/09/2016
Após ser condenado por danos morais coletivos contra a comunidade Kaingang da Terra Indígena (TI) Toldo Chimbangue, em Chapecó (SC), pela veiculação de materiais racistas e de incitação ao crime, o jornal O Diário do Iguaçu deverá pagar cursos de graduação e pós-graduação aos indígenas e deverá ceder, pelo período de cinco anos, espaço quinzenal para a comunidade indígena na publicação.
A importante e incomum decisão é, na verdade, fruto de um acordo firmado entre o jornal e os Kaingang, com o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF), após a condenação do veículo de imprensa, de um chargista e de um vereador pela Justiça Federal. O processo teve origem numa ação civil pública ingressada pelo MPF em 2002, em função de uma reportagem e de uma charge discriminatórias publicadas pelo diário contra os indígenas.
Julgado improcedente na primeira instância, o processo teve a decisão reformada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que condenou os réus ao pagamento de R$ 100 mil para a comunidade indígena como compensação pelos danos morais. Transcorridos doze anos desde a sentença, nenhum dos recursos interpostos pelos réus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao longo deste período foi admitido e o caso transitou em julgado.
Em abril de 2016, com a condenação definitiva, o MPF ajuizou uma ação para que os condenados pagassem a indenização – que, em valores atualizados, incluindo juros, honorários e multas legais, chegou a mais de R$ 850 mil.
Como o jornal alegou falta de recursos financeiros para o pagamento do total da dívida, os indígenas fizeram uma proposta alternativa para quitar a obrigação, que acabou sendo aceita pela empresa.
“Eles disseram que se fossem pagar em dinheiro, teriam que fechar o jornal. Eu disse que nós não queremos dinheiro. ‘Queremos que vocês contribuam com a comunidade, quero informar as pessoas para que elas saibam os absurdos que vocês falaram’. Também precisamos de pessoas formadas em áreas como Direito e de formação melhor para nossos professores. Isso é mais importante que dinheiro”, relatou o cacique da TI Toldo Chimbangue, Idalino Fernandes.
Pelo acordo firmado, o jornal irá custear vagas para estudantes indígenas nos cursos de Agronomia, Direito, e Enfermagem da UnoChapecó, além de um curso de pós-graduação – uma especialização lato sensu em Educação Intercultural: Metodologias de Ensino na Educação Básica – para uma turma de 20 a 30 professores indígenas na mesma instituição de ensino.
O pagamento do jornal à UnoChapecó será realizado por meio de permuta, com a cessão de espaço no diário para as veiculações da universidade. Em todas as vagas, a preferência é para os Kaingang de Toldo Chimbangue.
Os cerca de R$ 390 mil restantes da dívida serão pagos por meio da cessão de espaço no jornal, pelo período de cinco anos, para a veiculação de informativos, artigos, notas e quaisquer outras publicações de interesse dos indígenas, conforme a solicitação encaminhada pelo cacique Idalino. O MPF ressalta que não poderão ser veiculadas no jornal publicações que configurem crime ou ofensa a pessoas ou grupos, ou que incitem a prática de violência, de crimes ou de quaisquer outros atos ilícitos – exatamente os pontos pelos quais o jornal foi condenado.
“Sete palmos embaixo da terra”
Além do Diário do Iguaçu, foram réus na ação do MPF o ex-vereador de Chapecó pelo PFL e atual candidato pelo PSB, Amarildo Sperandio de Bairro, e o chargista Alex Carlos Tiburski dos Santos. Com a terra demarcada pela metade em 1985, os Kaingang reivindicavam, à época da publicação do jornal, a demarcação da totalidade de seu território – concluída somente em 2006 – e vivenciavam uma situação conflituosa com os não-indígenas que viviam em propriedades sobrepostas à área.
Em entrevista veiculada em janeiro de 2001 no Diário do Iguaçu, o então vereador Amarildo Sperandio afirmou: “é um absurdo os índios quererem ainda mais terra, se não produzem [...] muitos que estão hoje na reserva de Toldo Chimbangue não são indígenas autênticos. Todos nós sabemos disso, quando vemos índios louros, olhos claros”.
A charge de Alex Carlos (acima), veiculada na mesma edição, mostrava um homem com um machado, pronto para agredir um indígena e exclamando: “Já que índio quer terra, vô dá sete palmos de terra pro índio”. Em fuga, o indígena retratado deixa cair um celular – elemento que atestaria a “falsa identidade” dos Kaingang da região.
Na avaliação do MPF, a negação da identidade dos indígenas de Toldo Chimbangue servia para, assim, deslegitimar a demanda do povo pela demarcação de suas terras. Além disso, a discriminação e a incitação à prática de homicídio “foram publicadas em jornal de grande circulação no Oeste de Santa Catarina, propalando as matérias tendenciosas a um grande número de leitores, fomentando o repúdio às comunidades indígenas”.
Em sua defesa, o jornal e o chargista alegaram estar exercendo seus direitos à livre expressão, à crítica artística e à liberdade de imprensa, e o vereador ainda invocou sua imunidade parlamentar. Em contrapartida, o MPF afirmou que a liberdade expressão não é um direito absoluto e nem assegura a impunidade da imprensa. “O direito do indivíduo de dizer o que pensa não o exime de ser responsabilizado pelas ofensas irrogadas a outrem de forma desarrazoada”, afirma o MPF na peça que resultou na condenação.
Acordo positivo em um cenário desfavorável
O acordo judicial oferece uma oportunidade de combater o preconceito contra os indígenas na região Sul do Brasil, marcada pela segregação e pelo racismo contra os povos originários, conforme apontou recente relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Segundo o estudo, a imprensa local e os políticos que lucram votos com os conflitos são os principais responsáveis pela disseminação do preconceito contra os indígenas. Uma das motivações para o estudo foi o assassinato de Vitor Pinto, criança Kaingang de apenas dois anos natural da Aldeia Kondá, outra comunidade indígena de Chapecó, morto no colo de sua mãe quando ela vendia artesanato no litoral catarinense.
Para o Procurador da República de Chapecó (SC), Carlos Humberto Prola Júnior, o acordo é importante, especialmente pela autonomia que os indígenas terão na gestão do espaço no jornal. “A empresa não reconhece o equívoco, mas buscou uma forma de cumprir aquela obrigação, que é pesada para uma publicação pequena. Também foi bom para os indígenas, que saem satisfeitos com essa reparação”, afirma Prola.
Na avaliação do Procurador, houve um recrudescimento em relação às demandas dos povos indígenas no Poder Judiciário. “Infelizmente, houve um retrocesso nessa área. O Judiciário está pouco sensível a essa temática, em relação às demarcações e a todas as demandas indígenas. Essa decisão pode trazer isso à tona novamente”, complementa.
Para o cacique Idalino, a decisão e o acordo são importantes para o contexto da região. “Naquela época o preconceito era muito forte, a maioria da população de Chapecó era contra a gente, sem falar nos vereadores, que sempre faziam discursos contrários”, avalia a liderança Kaingang. Segundo ele, depois da decisão do TRF, as manifestações racistas dos vereadores de Chapecó, ao menos publicamente, cessaram.
O cacique Kaingang explica que a comunidade pretende utilizar o espaço no jornal – cedido até 2021 – para furar o bloqueio do racismo e da invisibilidade e para divulgar no oeste de Santa Catarina as reivindicações e a realidade vivenciada pelos indígenas de Toldo Chimbangue e de todo o país.
Fotos: arquivo Cimi Sul