CRÔNICAS

Na resistência, com Miguel

Em: 14 de Abril de 2013 Visualizações: 30306
Na resistência, com Miguel

De passagem por São Paulo, nesta sexta-feira, eu estava com o tempo milimetricamente cronometrado e uma dúvida atroz. Hesitava no momento de escolher entre duas coisas que há muito tempo queria fazer: ou visitava o Memorial da Resistência ou matava as saudades que tinha do Miguel. Se fizesse um, sacrificava o outro. "É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!" - lamenta Cecília Meirelles no poema "Ou isto ou aquilo", que as crianças adoram.

No nosso caso, o "isto" era o Memorial da Resistência, que fica próximo à Estação da Luz, num prédio antigo que abrigou durante quase meio século o Deops - Departamento de Ordem Política e Social. No governo Vargas e na ditadura militar, foi cenário de muita dor e de intenso sofrimento de presos políticos. Foi transformado em museu, em 2009, quando abriu suas portas para o público. Fiquei com vontade de conhecê-lo pessoalmente depois da leitura da pesquisa de Carlos Beltrão sobre o tema (*). Essa era a grande oportunidade.

No meio do caminho, porém, havia alguém muito importante: o "aquilo". Miguel, 10 anos de idade, nasceu em Manaus e reside agora em São Paulo.  É um neto-sobrinho, irrequieto, inteligente, sensível, que não vejo há algum tempo. Quando tinha seis anos, teve breve convivência festiva e amigável com meu cachorro e meu gato, o que é dizer muito sobre nossa ligação e o grau de intimidade e cumplicidade que criamos.

Eu estava dividido, portanto, entre o compromisso político e a costura afetiva. Ou isto ou aquilo. Deixei a sorte decidir por mim. Recorri ao tuturubim tetê, que na infância no Amazonas nos permitia escolher quem seria a manja na brincadeira de manjalé.

- Tuturubim tetê, tique-taque, tambarola, teje dentro, teje fora.

Ou isto ou aquilo

Fiz o sorteio várias vezes e não ficava satisfeito com o que era excluído. Foi aí que, recusando o "ou isto ou aquilo", reescrevi o poema de Cecília Meireles, mudando-o para "isto e aquilo". Do hotel, telefonei na véspera para o Miguel e perguntei se ele topava ir ao Memorial da Resistência comigo. Expliquei que íamos conhecer o lugar onde Monteiro Lobato, do Sitio do Picapau Amarelo, havia sido preso. Lula e Dilma também. Ele topou na hora.

- O Miguel gosta muito de história - me disse a mãe dele.

Acontece que Miguel estuda em uma escola na Vila Mariana, está na quinta série e tinha que entrar às 12h45. A visita ao Memorial precisava ser feita no turno da manhã, com o tempo bem medido. Fui buscá-lo às 9 horas. Como ele cresceu! Está maior do que o pai, com quem cada vez mais se parece. Talvez seu cabelo moicano imitando o corte do Neymar tenha contribuído para que espichasse ou então meus olhos amorosos é que o viram assim. 

Saímos Miguel, sua avó paterna e eu num táxi dirigido por uma senhora. A taxista - vocês não vão acreditar na coincidência - era uma amazonense charmosa, falante e farofeira, chamada Ricardina, casada com um professor paulistano, que durante todo o trajeto contou mil vantagens, falou de suas viagens, esculhambou São Paulo, caiu do galho, deu dois suspiros por Manaus e, depois, nos levou ao nosso destino.

Se você for a São Paulo, te passo o telefone da Ricardina, que me deu seu cartão. A corrida é tranquila e o papo agradável no trânsito caótico da pauliceia desvairada. Vale a pena visitar o Memorial da Resistência, para renovar nossas esperanças. Ainda mais acompanhado pelo Miguel. O projeto museológico foi bem bolado, sob a coordenação de Marcelo Araújo, com consultoria em museologia de Maria Cristina Bruno e em história de Maria Luiza Tucci Carneiro.

O Miguel adorou. Percorremos juntos a exposição Insurreições - expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo. Ele fotografou alguns dos mais de cem trabalhos artísticos feitos por presos e presas na época da ditadura militar: telas, gravuras, xilogravuras, cadernos, bolsas, colares, selecionados por Alipio Freire e Rita Sipahi.

A presença de estudantes uniformizados, alunos da rede pública de ensino, acabaram me inspirando. Miguel fez algumas perguntas muito pertinentes. Nunca me senti tão professor e tão didático nas explicações que ia dando a um menino de dez anos, que precisa conhecer a história recente de seu país como um recurso necessário para evitar que a truculência e a barbárie se repitam.

Tudo é possível

O interesse manifestado por Miguel me permite suspeitar de que ele vai ser historiador. Tiramos uma foto debaixo da frase, que deixei sem explicação, porque ela fala por si mesma, especialmente se carregada de sombra e de luz: "Enquanto lembramos, tudo é possível".

A visita ao Memorial da Resistência contribui para que tudo seja possível. Visitamos cela por cela. Na primeira, Miguel, eu e sua avó vimos como é que foi criado o Memorial da Resistência. Na segunda, há uma homenagem aos milhares de presos políticos, aos que foram assassinados pela ditadura, como o amazonense Thomás Meirelles. Tiramos fotos na terceira cela, com as lembranças de ex-presos políticos como Monteiro Lobato e Caio Prado Junior na ditadura Vargas, além de Lula, Dilma e até José Serra na ditadura militar. Na última cela, relatos e depoimentos de quem sofreu a prisão.

Carlos Beltrão, que analisou o processo de luta para transformar o Deops em museu, afirma que os ex-presos são sujeitos do Memorial da Resistência. Lembra que a participação deles se deu em todas as fases e permanece. O Forum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo é o responsável, em última análise, pela musealização desse lugar de memória.  "Reivindicaram o espaço, orientaram o discurso expográfico e estão de corpo presente" afirma Beltrão.

Depois de visitar as celas, Miguel ficou curioso em conhecer o corredor onde os presos tomavam banho de sol e que "testemunhou muitas atrocidades, desencanto, humilhação e desespero, mas com a mesma ênfase acolheu diferentes atitudes de coragem, fraternidade e sábia resistência". Ele me perguntou e eu expliquei que aquele espelho ao fundo do corredor, não existia na época das prisões, mas que a presença dele ali permitia que víssemos nossas imagens refletidas, como se nós estivéssemos presos.

No final da visita, fiquei pensando que Alípio Freire tinha razão quando na discussão sobre qual museu construir, defendeu o projeto de "um lugar para mostrar que, apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade", que naquele lugar, apesar de tudo, se exercitou a solidariedade e, com ela, a esperança.    

- Essa foto tem no meu livro de História - me apontou Miguel, diante da capa do livro O Escravismo Colonial, de Jacob Gorender, exposto numa vitrine do Memorial. Aos dez anos, Miguel tomou a iniciativa de me dizer que está escrevendo, que escreve diariamente, que prefere redigir com caneta no caderno do que digitar no computador. Ficou de me mostrar no próximo encontro alguns textos de sua autoria.

Na volta, dentro do táxi de Ricardina que veio nos buscar, "fiscalizei" os livros e os cadernos adotados na escola do Miguel. Sabendo do meu interesse, ele me mostrou a parte relativa à história colonial e à resistência indígena. O livro trata os índios e os escravos de origem africana com muito respeito, valorizando o papel deles como protagonistas da história. Lá estava escrito, com sua letra irregular, mas limpa e clara, a interpretação que ele, Miguel, deu aos textos lidos.

Crianças como o Miguel deviam visitar este Museu num exercício permanente de memória. A visita ao Memorial e os cadernos de Miguel me tonificaram, me deram alguma esperança, consciente de que "enquanto lembramos, o melhor é possível". Efetivamente, "lembrar é resistir".

(*) Carlos Beltrão do Valle: A patrimonialização e a musealização de lugares de memória da ditadura de 1964 - o Memorial da Resistência de SP. 371 pp. Dissertação de Mestrado. Agosto de 2012. Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Marília Xavier Cury (orientadora).

http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=994

P.S. - Miguel já enfrentou Lucas Lobo, um inimigo tão violento como a ditadura. Veja: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=232

 

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26 Comentário(s)

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Antonio cordeiro Sobrinho comentou:
20/04/2013
Também estive no museu em 2011, pena que ele está meio desfigurado com algumas modificações do prédio original. Ainda assim cheio de relevância. Nosso passado recente que a grande massa conhece mal e porcamente, mas que prova que o nosso país tem filhos que não fogem a luta. "um dia, página infeliz da nossa história passagem desbotada na memória das nossas novas gerações."
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Sebastião Vital de Mendonça comentou:
19/04/2013
Valeu Bessa! "Brasil mostra a tua cara", é o que fazes convidando-nos a visitar o Memorial da Resistência. Não perde o telefone da taxista. Parabéns pela crônica e pela sensibilidade dessa relação adulto x criança, valorizada na bonita amizade com o Miguel, certamente um futuro grande homem.
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Conceição Campos comentou:
19/04/2013
Bessa querido, adorei a crônica, especialmente o Tuturubim-tetê, tique-taque tambarola. Voltei aos meus 6 anos de idade no interior do Pará. Beijos!
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Andrea Moraes comentou:
18/04/2013
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Carlos Beltrão do Valle comentou:
16/04/2013
As vezes é possível ter isso e aquilo! Adorei a escolha e o relato, parabéns a você e ao jovem-escritor Miguel, que certamente compartilhará a experiência da visita ao Museu com os amiguinhos. Grande abraço
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Ana comentou:
16/04/2013
O arquivo do est. de SP disponibilizou documentos do DEOPS de SP. Acho que pode ser interessante divulgar essa informação no site do taquiprati, já que a crônica dessa semana tem haver com o tema. O projeto é Memória digital: os Arquivos do DEOPS... http://www.arquivoestado.sp.gov.br/imprensa/img/58-1abr_informativo-novo.pdf Ana http://www.arquivoestado.sp.gov.br/imprensa/img/58-1abr_informativo-novo.pdf
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gerusa pontes de moura comentou:
15/04/2013
Professor é muito bom conhecer pessoas como o senhor e como o pequeno grande Miguel, me fez lembrar de meu neto Hareom, ele adora visitar museus, é uma boa forma de estar perto da História de nosso país, parabéns Miguel !!!!!!!!!!!
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Luiza Soares comentou:
14/04/2013
Miguel, você é um privilegiado\0/com meio tio-avô destes eu já me dava por satisfeita...e você tem um inteirinho...êta guri de sorte\0/aproveeeeeeeeeeite\o/Professor Bessa, muito boa crônica!
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Anne-Marie comentou:
14/04/2013
É da história que é feita nossa vida! Lembro de minha infância: todas as vezes que se reuniam pessoas da geração dos meus pais ou avós, era para falar sobre "a ocupação alemã". Nasci logo ao final da guerra, mas a ocupação alemã faz parte, sem a menor dúvida, da minha história de vida. Parabéns pelo que você deu ao Miguel, graças a você a resistência dos que lutaram contra a ditadura pertence, agora, à vida dele.
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Ligia Maria Oliveira comentou:
14/04/2013
Professor bessa, sem palavras para comentar a crônica, apenas não posso deixar de concordar com o a observação sobre a sensibilidade comovente e inspiradora, percebida em suas palavras. Uma maravilha de crônica.
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william porto (Blog Lima Coelho) comentou:
14/04/2013
Mestre Bessa, você uniu o agradável ao útil, este o memorial, aquele Miguel. Olha, eu sei que visitar o memorial é util, mas não iria, prefiro saber por escritos, me comovo demais, melhor curtir um passeio e um papo com pessoas como Miguel, Desculpe, Mestre Bessa, mas no que cocerne a locais que lembfram a ditadura fico com os escritos, como os seus. Aquele Abraço.
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Viviane Lucena (Blog Lima Coelho) comentou:
14/04/2013
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Soraia Zanzine comentou:
14/04/2013
Amei o texto, as escolhas, os poemas, as poesias e a homenagem àqueles que sofreram por nós a delícia que e desfrutarmos dá liberdade que nem sempre sabemos valorizar! Fiquei com vergonha de ser professora, paulista e desconhecer este espaço que deveria ser nossa obrigação conhecer! Obrigada pela inspiração...
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Urda comentou:
14/04/2013
Você é o máximo: como ser humano, como escritor e como historiador! "Eu me dei conta de que cada vez que um dos meus cachorros parte, ele leva um pedaço do meu coração com ele. Cada vez que um cachorro novo entra na minha vida, ele me abençoa com um pedaço de seu coração. Se eu viver uma vida bem longa, com sorte, todas as partes do meu coração serão de cachorro, então eu me tornarei tão generoso e cheio de amor como eles." (Autor desconhecido)
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Ana Stanislaw comentou:
14/04/2013
Muito boa! Bacana ver uma criança tão entusiasmada com a história, com o conhecimento, memórias. Renova esperanças, energias. Obrigada Bessa! Você, sempre muito delicado e sensível.
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Jane Paiva comentou:
14/04/2013
Querido Bessa Adorei sua crônica e a sensibilidade de sempre como escreve sobre coisas “aparentemente” banais. Eu conheci o Museu com meus alunos de PPP e do grupo de pesquisa. Realmente tocante, e eles, que não eram nem nascido quando nós vivemos essa barbárie, ficaram muito mobilizados. Foi emocionante! Miguel será, se depender de nós, professores, um historiador! Parabéns a vc, como sempre, e ao Miguel, este jovencito maravilhoso capaz de lhe inspirar um momento de escrita tão sensível!
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Patricia Regina comentou:
15/04/2013
Professora Jane, Fui uma de suas alunas do grupo de pesquisa que teve o privilégio dessa visita tão marcante. Foi tão boa a leitura desta crônica... me fez voltar àquele dia especial, que você proporcionou a seus alunos. Muito obrigada sempre! Contato de Patricia Regina
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iedalva comentou:
13/04/2013
José Freire , gosto muito do que você escreve, é cultura para todos , obrigada Iedalva Contato de iedalva
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Vânia Novoa Tadros comentou:
13/04/2013
Bessa, este é o tipo de artigo teu que eu gosto muito. Quando vi o Miguel atráz da porta da cela senti um frio na espinha. Também conto para meus netos a História do Militarismo no Brasil e eles tem grande curiosidade por ela. Todos que viveram esse período deveriam fazer o mesmo para que ninguém,no futuro, venha suavizar as atrocidades. A Beatriz minha neta de 10 anos já diz: "Coisa de Milico, né vó"
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José Varella Dulce (do Pará) comentou:
13/04/2013
Este trecho da crônica: "... lembranças de ex-presos políticos como Monteiro Lobato e Caio Prado Junior na ditadura Vargas..."; nos faz lembrar que o famigerado Presídio de São José teve também seus presos políticos além criminosos de alta periculosidade. Mas, se o risonho Polo Joalheiro São Liberto conservou a cela do "monstro" Ninja liquidado num motim lá mesmo; não guardou lembranças de "subversivos" tais como Dalcídio Jurandir e outros comunistas, por exemplo.
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José Varella (Facebook) comentou:
13/04/2013
Prof José Bessa com o brilho de sempre, distribuindo banana aos patetas desunidos do vasto mundo. Eh camarada, aqui o ajuricabano na cidade das mangueiras e do pato no tucupi. Como diz o Barão de Itararé: entre sem bater...
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Marcia Fernandes comentou:
13/04/2013
Que belo texto e que bela experiência . Obrigada por repartir conosco esse momento.
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Rogerio Teles comentou:
13/04/2013
Bacana a crônica Mestre, processo de revolução social, não tem soluções imediatas, ela depede de nossas crianças e jovens, esse trabalho so dará frutos no futuro, e depende muito da Escola, pincipalmente a pública, o dever de mostrar as crianças, o motivo de nossas mazelas sociais, como a fome, a violência e a corrupção. É em alunos como o Miguel, que reside a esperança de um mundo melhor, longe de preconceitos e fundamentalismos babacas, que surgem a cada momento em nosso país.
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Ligia Maria Oliveira comentou:
14/04/2013
Concordo plenamente com você, Rogerio. Este processo realmente depende do envolvimento de todos nós, mas, a participação da educação escolar e principalmente a pública é importantíssima. Vamos nos empenhar, a exemplo do professor Bessa, na disseminação deste conhecimento aos nossos jovens, para no futuro quem sabe vivenciarmos ou não, um mundo melhor e igualitário para todos.
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Mauro Souza comentou:
13/04/2013
Bessa, obrigado por conseguir ir lá e cá ao mesmo tempo. Levar o Miguel para um passeio na História e, ao mesmo tempo, dar a ele a certeza do carinho da família que ele tem. Muito obrigado.
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