De passagem por São Paulo, nesta sexta-feira, eu estava com o tempo milimetricamente cronometrado e uma dúvida atroz. Hesitava no momento de escolher entre duas coisas que há muito tempo queria fazer: ou visitava o Memorial da Resistência ou matava as saudades que tinha do Miguel. Se fizesse um, sacrificava o outro. "É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!" - lamenta Cecília Meirelles no poema "Ou isto ou aquilo", que as crianças adoram.
No nosso caso, o "isto" era o Memorial da Resistência, que fica próximo à Estação da Luz, num prédio antigo que abrigou durante quase meio século o Deops - Departamento de Ordem Política e Social. No governo Vargas e na ditadura militar, foi cenário de muita dor e de intenso sofrimento de presos políticos. Foi transformado em museu, em 2009, quando abriu suas portas para o público. Fiquei com vontade de conhecê-lo pessoalmente depois da leitura da pesquisa de Carlos Beltrão sobre o tema (*). Essa era a grande oportunidade.
No meio do caminho, porém, havia alguém muito importante: o "aquilo". Miguel, 10 anos de idade, nasceu em Manaus e reside agora em São Paulo. É um neto-sobrinho, irrequieto, inteligente, sensível, que não vejo há algum tempo. Quando tinha seis anos, teve breve convivência festiva e amigável com meu cachorro e meu gato, o que é dizer muito sobre nossa ligação e o grau de intimidade e cumplicidade que criamos.
Eu estava dividido, portanto, entre o compromisso político e a costura afetiva. Ou isto ou aquilo. Deixei a sorte decidir por mim. Recorri ao tuturubim tetê, que na infância no Amazonas nos permitia escolher quem seria a manja na brincadeira de manjalé.
- Tuturubim tetê, tique-taque, tambarola, teje dentro, teje fora.
Ou isto ou aquilo
Fiz o sorteio várias vezes e não ficava satisfeito com o que era excluído. Foi aí que, recusando o "ou isto ou aquilo", reescrevi o poema de Cecília Meireles, mudando-o para "isto e aquilo". Do hotel, telefonei na véspera para o Miguel e perguntei se ele topava ir ao Memorial da Resistência comigo. Expliquei que íamos conhecer o lugar onde Monteiro Lobato, do Sitio do Picapau Amarelo, havia sido preso. Lula e Dilma também. Ele topou na hora.
- O Miguel gosta muito de história - me disse a mãe dele.
Acontece que Miguel estuda em uma escola na Vila Mariana, está na quinta série e tinha que entrar às 12h45. A visita ao Memorial precisava ser feita no turno da manhã, com o tempo bem medido. Fui buscá-lo às 9 horas. Como ele cresceu! Está maior do que o pai, com quem cada vez mais se parece. Talvez seu cabelo moicano imitando o corte do Neymar tenha contribuído para que espichasse ou então meus olhos amorosos é que o viram assim.
Saímos Miguel, sua avó paterna e eu num táxi dirigido por uma senhora. A taxista - vocês não vão acreditar na coincidência - era uma amazonense charmosa, falante e farofeira, chamada Ricardina, casada com um professor paulistano, que durante todo o trajeto contou mil vantagens, falou de suas viagens, esculhambou São Paulo, caiu do galho, deu dois suspiros por Manaus e, depois, nos levou ao nosso destino.
Se você for a São Paulo, te passo o telefone da Ricardina, que me deu seu cartão. A corrida é tranquila e o papo agradável no trânsito caótico da pauliceia desvairada. Vale a pena visitar o Memorial da Resistência, para renovar nossas esperanças. Ainda mais acompanhado pelo Miguel. O projeto museológico foi bem bolado, sob a coordenação de Marcelo Araújo, com consultoria em museologia de Maria Cristina Bruno e em história de Maria Luiza Tucci Carneiro.
O Miguel adorou. Percorremos juntos a exposição Insurreições - expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo. Ele fotografou alguns dos mais de cem trabalhos artísticos feitos por presos e presas na época da ditadura militar: telas, gravuras, xilogravuras, cadernos, bolsas, colares, selecionados por Alipio Freire e Rita Sipahi.
A presença de estudantes uniformizados, alunos da rede pública de ensino, acabaram me inspirando. Miguel fez algumas perguntas muito pertinentes. Nunca me senti tão professor e tão didático nas explicações que ia dando a um menino de dez anos, que precisa conhecer a história recente de seu país como um recurso necessário para evitar que a truculência e a barbárie se repitam.
Tudo é possível
O interesse manifestado por Miguel me permite suspeitar de que ele vai ser historiador. Tiramos uma foto debaixo da frase, que deixei sem explicação, porque ela fala por si mesma, especialmente se carregada de sombra e de luz: "Enquanto lembramos, tudo é possível".
A visita ao Memorial da Resistência contribui para que tudo seja possível. Visitamos cela por cela. Na primeira, Miguel, eu e sua avó vimos como é que foi criado o Memorial da Resistência. Na segunda, há uma homenagem aos milhares de presos políticos, aos que foram assassinados pela ditadura, como o amazonense Thomás Meirelles. Tiramos fotos na terceira cela, com as lembranças de ex-presos políticos como Monteiro Lobato e Caio Prado Junior na ditadura Vargas, além de Lula, Dilma e até José Serra na ditadura militar. Na última cela, relatos e depoimentos de quem sofreu a prisão.
Carlos Beltrão, que analisou o processo de luta para transformar o Deops em museu, afirma que os ex-presos são sujeitos do Memorial da Resistência. Lembra que a participação deles se deu em todas as fases e permanece. O Forum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo é o responsável, em última análise, pela musealização desse lugar de memória. "Reivindicaram o espaço, orientaram o discurso expográfico e estão de corpo presente" afirma Beltrão.
Depois de visitar as celas, Miguel ficou curioso em conhecer o corredor onde os presos tomavam banho de sol e que "testemunhou muitas atrocidades, desencanto, humilhação e desespero, mas com a mesma ênfase acolheu diferentes atitudes de coragem, fraternidade e sábia resistência". Ele me perguntou e eu expliquei que aquele espelho ao fundo do corredor, não existia na época das prisões, mas que a presença dele ali permitia que víssemos nossas imagens refletidas, como se nós estivéssemos presos.
No final da visita, fiquei pensando que Alípio Freire tinha razão quando na discussão sobre qual museu construir, defendeu o projeto de "um lugar para mostrar que, apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade", que naquele lugar, apesar de tudo, se exercitou a solidariedade e, com ela, a esperança.
- Essa foto tem no meu livro de História - me apontou Miguel, diante da capa do livro O Escravismo Colonial, de Jacob Gorender, exposto numa vitrine do Memorial. Aos dez anos, Miguel tomou a iniciativa de me dizer que está escrevendo, que escreve diariamente, que prefere redigir com caneta no caderno do que digitar no computador. Ficou de me mostrar no próximo encontro alguns textos de sua autoria.
Na volta, dentro do táxi de Ricardina que veio nos buscar, "fiscalizei" os livros e os cadernos adotados na escola do Miguel. Sabendo do meu interesse, ele me mostrou a parte relativa à história colonial e à resistência indígena. O livro trata os índios e os escravos de origem africana com muito respeito, valorizando o papel deles como protagonistas da história. Lá estava escrito, com sua letra irregular, mas limpa e clara, a interpretação que ele, Miguel, deu aos textos lidos.
Crianças como o Miguel deviam visitar este Museu num exercício permanente de memória. A visita ao Memorial e os cadernos de Miguel me tonificaram, me deram alguma esperança, consciente de que "enquanto lembramos, o melhor é possível". Efetivamente, "lembrar é resistir".
(*) Carlos Beltrão do Valle: A patrimonialização e a musealização de lugares de memória da ditadura de 1964 - o Memorial da Resistência de SP. 371 pp. Dissertação de Mestrado. Agosto de 2012. Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Marília Xavier Cury (orientadora).
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=994
P.S. - Miguel já enfrentou Lucas Lobo, um inimigo tão violento como a ditadura. Veja: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=232