Encontrei um dia, na sala de embarque do aeroporto de Brasília, o antropólogo Gustavo Pacheco. Os voos estavam atrasados, a conversa fluiu sobre o trabalho dele, focado em antropologia das populações afro-brasileiras, antropologia da religião e etnomusicologia. Filho de Xangô, diplomata e professor do Instituto Rio Branco, Gustavo vem trabalhando na área ambiental, em particular no campo da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. Na ocasião, mencionei o colombiano Alonso Takahashi, que ao receber o Premio Nacional de Matemáticas, em 1991, discursou, criticando o desvirtuamento da produção intelectual. Takahashi propôs que no início da carreira docente, na universidade, os jovens fossem nomeados professores titulares com o salário máximo e que, dali em diante, sofressem cortes salariais por artigo redigido. Cada artigo publicado significaria um rebaixamento no salário.
- Assim, só publicariam quando tivessem algo importante a dizer que justificasse o sacrifício - ironizou o matemático colombiano, preocupado com os autoplágios e com publicações feitas apenas para cumprir tabela, destituídas de qualquer originalidade.
Na semana passada, encontrei Gustavo Pacheco no Rio, na Mostra de Cinema do Vídeo Nas Aldeias. Foi aí que ele me falou que havia acabado de escrever o texto que você agora vai ler. Gustavo escreve muito bem, como é possível constatar. Suas publicações podem não tê-lo jogado na miséria, mas já foram suficientes para empobrecê-lo (vide Lattes). Estou postando o artigo aqui, mas quem vai perder a grana é ele, o autor.
PUBLICAR, PERECER
Gustavo Pacheco
Para o Bessa, de quem roubei a ideia.
Nara esperou as crianças dormirem para conversar com Nestor. Ela sabia o que a esperava, por isso escolheu um dia em que ele estivesse de bom humor, descansado.
- Preciso falar uma coisa com você, ela disse.
Pelo tom de voz dela, ele entendeu que o assunto era sério. Inconscientemente, ele se retesou no sofá. Um momento depois, levantou-se e desligou a televisão. Ela se sentou ao seu lado.
Ela já tinha tomado a decisão há mais de um mês. Tinha repassado mais de dez vezes, mentalmente, a conversa que inevitavelmente teria com ele. E, no entanto, não conseguia dizer o que tinha para dizer.
O silêncio constrangedor durou apenas alguns segundos, mas nesse intervalo a cabeça de Nestor avaliou rapidamente algumas possibilidades, e chegou à conclusão de que o mais provável é que ela estivesse saindo com outro cara. A filha da puta está pulando a cerca, provavelmente com um aluno, um daqueles garotos que fazem pesquisa, pensou Nestor. O que mais poderia ser? A vida sexual não era ruim.
Lembrou-se da última vez em que haviam transado, quatro dias antes. Nestor olhou-se em um espelho imaginário e examinou a si mesmo de alto a baixo. Depois comparou-se com os maridos das colegas de Nara, e achou que se saía bem; todos eram meio barrigudos, exceto ele, que corria na praia duas vezes por semana. Estava cheio de cabelos brancos, mas pelo menos tinha cabelo, ao contrário de vários de seus amigos. Ela não tinha do que reclamar. Ele a desejava e a admirava, e tinha certeza que ela também o queria. Mas se não é outro homem, o que mais pode ser, pensou Nestor. Dinheiro não é, há três meses haviam finalmente saído do vermelho, desde então os cartões de crédito estavam zerados e Nara havia cumprido sua palavra e não comprara nada, nadinha mesmo.
Bom, outro dia apareceu com uma saia nova, mas jurou que tinha sido um presente da irmã. Há meses não brigavam por causa das contas, e poucas coisas davam mais orgulho a Nestor do que o fato de o casal ter finalmente conseguido sair da roda-viva de dívidas e empréstimos em que viviam há anos. Não, dinheiro não é. As crianças estavam ótimas, não davam trabalho nenhum. O Gabriel podia estudar mais, mas não era mal aluno a ponto de ficar em recuperação. E de qualquer forma Nestor ligava mais pra isso do que ela, ela mal olhava o boletim. Caralho, ela tá me corneando, pensou Nestor.
- Você tá saindo com outro cara, né? Um aluno, né?
Nara sorriu, depois soltou uma gargalhada. Nestor continuou sério, irritado e indeciso. Agora a bola estava com ela.
- Estava com saudade do teu ciúme. Não, não arrumei outro homem não.
- Então o que é? Diz logo.
- É que... Eu publiquei um artigo.
Meu deus, como eu sou burro, pensou Nestor. Claro, há semanas que ela não falava de trabalho. Como é que ele não havia percebido isso antes? Estava demorando.
- Porra, Nara! Você não disse quero publicar, gostaria de publicar, tô pensando em publicar. Você disse publiquei. A gente não tinha combinado que tomaríamos a decisão juntos?
- É, eu sei, amor. Desculpe. Mas você sabe como isso é importante pra mim. E faz mais de três anos que eu não publico nada.
- Três anos! Nara, você conhece mais alguém da tua idade que tenha quatro artigos publicados? Não é o bastante por enquanto? Três anos, sim, foi o tempo que levou pra conseguirmos pagar todas as dívidas. E agora que saímos do vermelho, você tá querendo arrumar problema de novo? Porra, dinheiro não dá em árvore, Nara!
- Eu sei, amor. Mas eu não faria isso se eu não achasse que era importante. Na verdade, é mais do que importante. Tô sentindo que esse artigo é a melhor coisa que eu já escrevi. Todo mundo pra quem eu mostrei achou também. O Diretor do Departamento disse que...
- Puta que o pariu, Nara, os seus colegas ficam dizendo pra você publicar, mas eles mesmos não publicam, né? Assim fica fácil! Claro, todo mundo é devoto do conhecimento, mas na hora de fazer o sacrifício, só tem uma idealista pra dar o exemplo. Qual foi a última vez que o Diretor do Departamento publicou alguma coisa? Ninguém quer levar uma vida de monge, e eu muito menos, Nara! E você tem filhos, caralho. Você perguntou pros seus filhos se eles topam receber menos presentes no Natal?
- Calma, amor. Não exagera. Outro dia mesmo a gente estava falando sobre ter uma vida mais simples, com menos luxo. Isso não chega a ser um sacrifício, vai.
- Nããão, claro que não! Pra começar, vamos ter que vender o carro.
Nestor se levantou com um salto e foi até a cozinha. Nara ouviu a porta da geladeira se abrindo e depois fechando com um estrondo. Nara respirou fundo, sabendo que os primeiros momentos seriam os piores. Ele vai se acalmar, pensou Nara. Vai ser que nem da última vez, primeiro ele surta, depois acaba entendendo. Quando ele perguntar sobre o que é o artigo, o problema está resolvido.
Nestor voltou com um copo cheio de cubos de gelo. Foi até o armário da sala, agarrou uma garrafa de uísque e voltou a se sentar no sofá. Encheu o copo até a metade e bebeu sem oferecer a Nara. Cada um ficou olhando para o chão por alguns instantes, até que Nestor quebrou o silêncio:
- Você acha que eu não tenho vontade de publicar também? A última vez - aliás, a única vez - em que eu publiquei foi antes da gente se casar, lembra?
- Lembro, claro que lembro.
Nara sempre achou que Nestor tinha publicado muito mais para impressioná-la do que pela vontade de publicar, mas nunca disse isso a ele. E funcionou, ela ficou impressionada com ele, tão jovem e já publicando. O artigo não era grande coisa, mas ela adorou a ousadia, e se estava procurando um pretexto para se apaixonar por ele, encontrou.
O artigo de Nestor foi um dos primeiros publicados depois que as universidades e centros de pesquisa adotaram o controverso sistema de pontuação reversa. O sistema foi uma medida radical para assegurar a relevância da produção científica. Depois de décadas em que os pesquisadores eram premiados em razão da quantidade e frequência de publicação, o resultado foi o crescimento exponencial de publicações irrelevantes. Todas as tentativas de melhorar a qualidade não funcionaram. Finalmente, foi adotada a saída extrema: para cada artigo publicado, um pesquisador teria seu salário reduzido em 10%.
No começo houve muitas reações dentro da comunidade acadêmica. Muita gente reclamou dizendo que o novo sistema era absurdo, ia na contramão das experiências bem-sucedidas nos países desenvolvidos e que, afinal de contas, quantidade gera qualidade. Mas surpreendentemente houve também muito apoio da população, que questionava a quantidade de dinheiro público utilizada para financiar publicações inexpressivas. Os pesquisadores mais jovens também defenderam a adoção do novo sistema. Não devemos ter medo de propostas inovadoras, diziam. Vamos tentar e ver no que vai dar.
Doze anos depois, o sistema era um sucesso. Inúmeras publicações fecharam, mas as poucas que sobreviveram transformaram-se em leitura obrigatória. Livres da obrigação de publicar a qualquer custo, os professores podiam se dedicar mais ao ensino e à pesquisa. Por fim, a drástica diminuição da demanda por papel permitiu ao Brasil cumprir com folga suas metas de redução de desmatamento.
E, no entanto, continuava havendo gente como Nara, que sentia um desejo irrefreável de publicar. E sentia também saudade do Nestor com quem ela se casara, um pesquisador ousado, desapegado, nada conservador. Onde ele tinha ido parar?
Seus devaneios foram interrompidos pela voz que queria ser raivosa, mas não conseguia disfarçar a curiosidade.
- Tá bom, sobre o que é o artigo?