No litoral brasileiro, uma parte expressiva da população falava tupi, tupinambá, além da língua portuguesa que chegou com os colonizadores e foi se impondo gradualmente; essas línguas conviveram em situação de bilingüismo até meados do séc. XVIII. Na Amazônia, até meados do séc. XIX, grande parte da população não falava o português, mas a Língua Geral, de base tupi, que ficou conhecida como Nheengatu. Metade da população de Manaus, em 1850, não era usuária da língua portuguesa.
O contato permanente dessas línguas durante vários séculos acabou mudando tanto o português regional como a chamada língua geral. Essa e outras informações são discutidas no livro “O Português e o Tupi no Brasil”, organizado por dois lingüistas alemães, Volker Noll e Wolf Dietrich, com artigos de dez pesquisadores especialistas vinculados a universidades européias e brasileiras, que têm publicações sobre o tema.
O livro, que começou a circular no Brasil numa edição da Editora Contexto, de São Paulo, formula questões esclarecedoras para o recente debate promovido pela mídia sobre o português falado aqui. Qual a contribuição do tupi no falar dos brasileiros? Quais as influências que o tupi exerceu tanto na forma de pronunciar como na morfologia e, especialmente, no vocabulário da língua portuguesa? Como é que uma língua européia conseguiu se firmar como língua nacional nos trópicos?
“O Brasil é um país de muitas cores. A formação do seu povo e da sua língua, variante da portuguesa, no solo americano, está estreitamente ligada à população autóctone, sobretudo nos primeiros séculos da colonização. Portanto, o português brasileiro, comparado com a variedade européia, caracteriza-se não só pelos seus arcaísmos lexicais e a fonética, mas também pela tradição tupi, que se manifesta em inúmeros nomes de lugares... na flora, na fauna e nas cozinhas regionais” – escrevem os organizadores.
A variedade do português
Os dois lingüistas alemães, professores titulares da Universidade de Münster, na Alemanha, já publicaram diversos livros na área de Lingüística Hispano-Americana. Aos artigos deles dois, se somaram outros de seus colegas, também alemães, Martina Schrader-Kniffki, professora da Universidade de Bremen, que escreveu sobre “O Nheengatu atual falado na Amazônia Brasileira” e Roland Schmidt-Riese, professor da Universidade Católica de Eichstätt-Ingolstadt, autor de um artigo sobre as gramáticas dos jesuítas Anchieta (1595) e Figueira (1621).
Outro co-autor é o renomado lingüista brasileiro Aryon Dall´Igna Rodrigues, professor emérito da Universidade de Brasília, que aborda o “Tupi, Tupinambá, Línguas Gerais e Português do Brasil”. Ele afirma que “o português do Brasil é um mosaico de variedades fonético-fonológicas, morfossintáticas, estilísticas e lexicais, ainda carente de documentação”. Além do grande enriquecimento do léxico, Aryon destaca, no âmbito gramatical, entre outras, as diferenças na flexão de número nos nomes, obrigatória no português e inexistente no tupi e no tupinambá.
“No português falado do Brasil, ou em grande número de suas variedades, houve mudança nesse processo: a flexão de plural não se aplica aos nomes, nem a seus qualificadores, mas só aos especificadores (Aqueles gato amarelo são mansos)”. Para Aryon, “é possível que a ausência de flexão nas línguas tupi e tupinambá tenha contribuído para a alteração da regra de concordância portuguesa” em sua variedade popular.
Outra diferença morfológica apontada por Aryon está na flexão de pessoa nos verbos. Para a distinção da pessoa de seus sujeitos, a flexão do português é sufixal, enquanto nas línguas tupi e tupinambá é prefixal. Em português, por exemplo, na norma padrão, se conjuga: eu fico, tu ficas, ele fica, nós ficamos... No tupi, “a parte final do verbo não varia para concordar com o sujeito”. O verbo que corresponde a ‘ficar’ permanece invariável, mudando o prefixo correspondente à pessoa: apytá, erepytá, opytá, japytá ou oropytá...
O lingüista da UnB pensa que essa diferença pode ter “contribuído para a redução da flexão sufixal de pessoa nos verbos em grande número de variedades do português do Brasil: eu fico, tu fica ou você fica, ele fica, nós fica, vocês fica, eles fica”.
Segue-se um artigo da pesquisadora do Museu Goeldi, de Belém, Cândida Barros, que discorre sobre “O uso do tupi na Capitania de São Paulo no século XVII” e outro, de dois professores da USP – Silvio de Almeida Toledo Neto e Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida – especialistas em dialetologia, que tratam da “Variedade do Português brasileiro na trilha das bandeiras paulistas”.
O livro contém ainda mais dois artigos. Um sobre “A Língua Guarani e o Português no Brasil”, escrito por Valéria Faria Cardoso, doutora em Lingüística pela UNICAMP e professora da Universidade do Estado do Mato Grosso. O outro – “As relações históricas entre o português e o Nheengatu nos universos urbano e rural da Amazônia”, de autoria desse locutor que vos fala, ex-professor da Universidade Federal do Amazonas e atualmente Professor da UERJ e do Programa de Pós Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
O Nheengatu na Amazônia
Na abordagem da trajetória histórica da Língua Geral, o artigo por mim escrito recupera dados proporcionados pelo Comandante Militar do Alto Amazonas, Lourenço Amazonas, que registrou em 1850 os usos e funções do Nheengatu. Da mesma forma que um falante de português encontra dificuldades na flexão prefixal em Tupinambá, falantes dessa última língua estranham a flexão sufixal em português. Lourenço Amazonas chama a atenção para o fato no caso dos falantes de Nheengatu:
“A Língua Geral é a universal intérprete em toda a Província do Pará. Fala-a toda a nação indígena, que se relaciona nas Povoações. Nas Cidades, fala-se da porta da sala para dentro; e nas Vilas e demais Povoações, excetuada Pauxis no Baixo-Amazonas, é a única, não por se ignorar a portuguesa, mas porque, constrangidos os indígenas e os Mamelucos em falá-la, pela dificuldade de formarem os tempos dos verbos, do que os dispensa a Geral, respondem por esta se lhes pergunta por aquela”.
Com o apoio de documentos históricos do século XIX, desenhamos o mapa da distribuição geográfica dos falantes de Língua Geral em toda a Amazônia brasileira, mostrando como foi desacelerando o seu processo de expansão, que ocorria desde o período colonial. Analisamos ainda como as fronteiras do Nheengatu, extremamente flutuantes, começaram a se retrair progressivamente até o início do século XX, quando ficou confinado à região do Rio Negro, onde originariamente não existiam falantes de qualquer língua da família Tupi.
Essa transformação não ocorreu de forma súbita, mas ao contrário foi um longo processo envolvendo muitas gerações que foram abandonando gradualmente o uso de suas línguas indígenas, incluindo o Nheengatu, em troca do português, e assim transformaram suas próprias referências identitárias.
Não era comum no século XIX, mas existem registros de alguns casos em que filhos dos próprios portugueses, que viviam em pequenos povoados, acabaram monolíngües em Nheengatu, segundo o testemunho, em 1850, de Wallace, um naturalista inglês que viajou pelo Amazonas: “Encontrei também diversos colonos portugueses, cujos filhos não sabiam expressar-se senão em língua geral”.
Há também noticias da atitude dos falantes dessas línguas, seja de lealdade ou de deslealdade lingüística, registrada como vergonha ou identificação com elas. Viajantes e naturalistas que percorreram a região permaneceram por algum tempo em alguns desses povoados, tomando notas do que viram e ouviram. Eles registraram informações sobre o quadro lingüístico local. A seleção desses dados depende do interesse de cada viajante pelo tema, do acesso que tiveram às comunidades lingüísticas e da concepção que tinham sobre a importância social da língua.
Todas as línguas faladas na Amazônia atravessaram diversos espaços, mas cada uma tinha um lugar preferencial onde predominava revitalizada e fortalecida; a mudança para outros espaços significava o seu enfraquecimento. As línguas vernáculas se conservavam hegemônicas dentro das aldeias indígenas; o português crescia nos núcleos urbanos e no contacto com o resto do país; o Nheengatu articulava esses dois universos nas vilas e povoados.
O livro citado, sempre apoiado em documentos históricos, destaca a função das cidades no processo de hegemonia da língua portuguesa e de declínio do Nheengatu, assim como das línguas indígenas. No caso específico da cidade de Manaus, o quadro mudou a partir da segunda metade do século XIX, com a escola, a navegação a vapor e a inserção da Amazônia na divisão internacional do trabalho como produtora de borracha. É somente a partir daí que a língua portuguesa se torna majoritária na região. Entre 1870 a 1914, cerca de 500 mil nordestinos, portadores de lingua portuguesa, entraram na Amazonia para trabalhar nos seringais.
O Nheengatu, que se tornou língua materna dos índios Baré, está se revitalizando, agora. Contribuiu para isso a declaração, em dezembro de 2002, do Nheengatu como língua co-oficial no município de São Gabriel da Cachoeira (SGC), o que implica, em tese, ensiná-lo nas escolas regionais, usá-lo nos tribunais e na produção de textos escritos da documentação municipal, além de uso na mídia.
O livro organizado pelos dois lingüistas alemães, com a contribuição de estudiosos brasileiros, representa uma contribuição no sentido de ativar a memória e de alimentar o debate de forma mais racional e objetiva num campo de batalha como é esse da língua.
Gilvan Muller de Oliveira e Mauricio Adu Schwade (muyãsaraita): Yegatu Resewa. EDUA. Manaus. 2012
I. José Ribamar Bessa Freire - Marãta Bebeusa Yega Rese? (pg. 9 a 30) Rupi, yumuyukuawa yepesa supire yã Revista Amerindia, Université de Paris. nº 8 1983
II. Brasilino Piloto (Baniwa) et alii - Maita Tayumee Yega Resewara. (pg. 31- 47)
III. ___________________: Marãta Kua Yupinima Rupiaita Yega Yegatu Kuiriwara? (pg. 49-57)
IV. Rosemira H. Elpidio et alii. Mayeta Yubuesa Yega Rupi-Asui Mayeta Yumuyã Arã PPI? (pgs. 59-88)
V. Jurandir Barreto dos Santos et alii: Marãta Kua Kutaisa Pisasuwaita (pg. 89 a 101)