Segundo mister Kabokinho, a criação do mundo foi assim. No primeiro dia, Deus criou o céu, o sol, a lua e as estrelas. No segundo, a noite, o dia e a aurora. No terceiro, a terra, as águas e a cachaça. No quarto, as plantas e as frutas, incluindo o cupuaçu e a pimenta murupi, com seu cheiro, sabor e ardência. No quinto, os animais aéreos, terrestres e aquáticos, entre eles o pirarucu e o tambaqui. No sexto, o homem, a mulher – ah, a mulher! - o namoro, o carnaval e o futebol. Quando Deus já ia gozar, no sétimo dia, o merecido repouso, sentiu uma profunda sensação de incompletude. Queixou-se:
- Putisgrila, o que é que está faltando ainda para o mundo ficar perfeito?
Não, putisgrila não, que Deus não é vulgar. A frase foi outra:
- Meu Deus do céu - ele disse - o que é que está faltando ainda para o mundo ficar perfeito?.
Viu que, sem querer, tinha invocado a si próprio, esquecendo que ELE é que era Deus. Foi aí que, assumindo plenamente o milagre da criação, descobriu o que faltava para a perfeição do mundo: o professor universitário. “Faça-se o professor universitário” - disse. E o professor universitário foi feito. Só então, satisfeito, Deus descansou.
Bastou que Ele dormisse para que o Diabo, que tudo observara, entrasse em ação, disposto a anular a obra divina e a caprichar na imperfeição do mundo. Aproveitando o cochilo do supremo arquiteto do universo, Satanás fez uma diabrura e criou... o colega de departamento. Junto com ele, a inveja e a hemorroida. Desde então, ali onde há um professor universitário surge sempre o colega de departamento, com intriga, fofoca, futrica, baixaria e perseguição.
Hoje, esses filhos do Capiroto ocupam universidades no mundo inteiro. Um deles atua, com um sabor local, no Departamento de Língua e Literatura Portuguesa (DLLP) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu nome: José Enos Rodrigues. Ele é o Colega de Departamento da professora Sandra Campos, a quem denunciou, instaurando um processo de sindicância contra ela, que se doutorou recentemente pela UFF, título que ele não possui, o que gerou um sentimento exacerbado de inveja que, como todos sabem, é uma merda.
Namoro epistemológico
Foi esse sentimento que levou o Colega de Departamento a apontar suas armas também contra os alunos. O DLLP discutiu, em reunião de 16 de setembro, entre outros, dois temas de altíssimo interesse acadêmico: “o uso de notebooks e a formação de casal de namorado em sala de aula”. A ata da reunião registra que - abre aspas - “o professor Enos fez questão de se colocar contra tal comportamento, afirmou que os professores tem autonomia para banir tal atitude” - fecha aspas.
Enos quer porque quer banir uma das criações divinas: o namoro. Não está preocupado com o conhecimento, mas com a proibição da troca de afetos em sala de aula, algo que é, epistemologicamente, desastroso. Tiro por mim. Se o professor Nina não tivesse permitido o namoro no Colégio Estadual do Amazonas, jamais eu teria aprendido química inorgânica. Só estudei ácidos, hidróxidos e estado de oxidação, porque queria me exibir pra Marluce Saubinha, a calipígia, com quem trocava ardentes olhares em sala de aula. Isso foi no século passado.
Hoje, em pleno século XXI, a troca de olhares está proibida no curso de Língua e Literatura Portuguesa da UFAM. Olhar afetuoso, mãos dadas, ternura e carinho foram banidos pela cruzada moralista do Colega de Departamento, que nunca paquerou em sala de aula e não percebe que o namoro, além de favorecer o processo de aprendizagem, produz energia e entusiasmo pela vida, contribuindo para o equilíbrio emocional e a formação da personalidade.
Um professor é um educador responsável pela formação integral de seus jovens alunos e não um delegado de polícia que vigia e fiscaliza. É inacreditável que se gaste horas discutindo fofoquinhas como personagens de telenovela. Que diabo de curso é esse cujo coordenador reprime algo saudável e benéfico ao coração e ao sistema nervoso? Por que os demais cursos não têm esse problema? Além disso, por acaso, a reitora assinou alguma portaria proibindo o namoro? Ou o uso de notebook? Então deixemos de chorumelas.
A futrica
Na ata da mesma reunião se defende a proibição também do uso de notebooks porque – abre aspas - “muitos alunos atrapalham as aulas com o uso desses aparelhos” – fecha aspas. Ora bolas, então por que o professor não incorpora logo o notebook ao processo de aprendizagem? Que tipo de aula é essa? Será que é o notebook que atrapalha a aula, ou é o tipo de aula dada que está atrapalhando o uso do notebook? Nas minhas aulas, quando esqueço o título de um livro, o aluno vai lá no Google e me ajuda na hora.
O que é, afinal, que estão tentando ensinar aos nossos alunos? Futrica. É. É isso mesmo: futrica. Olhem o que aconteceu: sem notebook e sem namoro, os alunos passaram a fazer aquilo que Enos com o exemplo lhes ensinou: brigar entre si. A futrica se generalizou tanto pelo corpo discente, que se instaurou um clima assustador de “intrigas na sala”. A ata da reunião informa que “alunos querem assistir aulas nas outras turmas por estarem em conflitos com os colegas das turmas de origem”.
O pau está comendo entre os alunos do curso, a brigalhada corre solta, prejudicando as aulas. Enfim, os enos se reproduziram em senos e cosenos. Inventaram aquilo que nem o diabo ousou criar: o Coleguinha Discente, que vem a ser filho do Colega de Departamento e, portanto, neto do Encardido. Isso tudo prova que quem namora, não agride colegas.
Vejam o mau exemplo. O ponto central da reunião foi a “instauração de processo de sindicância contra a professora Sandra Campos”, para saber se o doutorado dela foi em Letras ou em Linguística. A ata registra o disse-me-disse: Enos disse que a Sandra disse que sua orientadora disse que o doutorado dela era em Linguística, quando o coordenador do curso da UFF disse que o doutorado é em Letras, “o que para o professor José Enos configura-se como falsidade ideológica, já que são áreas diferentes”.
Valei-me minha Santa Etelvina! Ele sequer sabe distinguir os níveis das áreas do conhecimento e ignora que uma mesma especialidade pode ser enquadrada em diferentes grandes áreas, áreas e subáreas. Considera a simples menção delas como irregularidade e desenha o seu grandioso programa de luta acadêmica, planejando o que fará nos próximos três anos, quando, então, se aposenta:
“Diante dos fatos – diz a ata - o professor Enos enfatizou que enquanto for decano e coordenador do curso não vai deixar passar o que tanto o incomoda”. Ele jurou que vai dedicar “os dois anos e três meses que lhe restam na coordenação na luta para apurar tais irregularidades, pois não há como admitir esse desvio de comportamento”.
O bulhufismo
O que fazer diante do furor bélico, policialesco e ensandecido de um colega de departamento? Sandra fugiu desse inferno doentio e pediu transferência para o Departamento de Comunicação que a aceitou de braços abertos. Seu ex-Colega de Departamento passou a dedicar suas energias e sua – digamos assim – inteligência para apurar as “irregularidades”. Aí, né, sobrou pra mim. O gostosão aqui, que fez parte da banca de doutorado da Sandra, entrou nessa história como Pilatos entrou no Credo: de gaiato. Diz a ata:
“O professor José Enos afirmou que irá também questionar junto a CAPES a participação do professor Ribamar Bessa na banca examinadora de doutoramento da referida professora uma vez que Bessa confessou publicamente que não entende “bulhufas” de fonética e fonologia”.
Por que “questionar junto a CAPES”, quando o fórum mais apropriado para assunto tão grave e transcendental – o bulhufismo em fonética - é uma CPI no Congresso Nacional ou quiçá a Assembleia Geral da ONU?
Repito aqui o que escrevi: “Não entendo bulhufas de fonética”, o que traduzido do discurso jornalístico para a linguagem acadêmica significa: “Esse não é meu campo de especialização”. Mas não foi “confissão”, foi uma declaração que está lá pra quem quiser ler, no texto intitulado “Uma reitora para a UFAM”, seguido de outra frase esclarecedora, omitida por Enos, que indica qual é o meu campo e qual foi minha função na banca como autor de um livro sobre a história das linguas na Amazônia. http://www.taquiprati.com.br/cronica/24-uma-reitora-para-a-ufam
Se Enos disser de mim o que eu digo de mim, eu o processo por calúnia, por ser um leitor raso, que acredita piamente, ao pé da letra, naquilo que está impresso. Ele prefere pensar que alguém é capaz de caluniar a si mesmo do que entender que o processo de leitura é a produção de significados, que são múltiplos, sobretudo se o texto contém ironia, sarcasmo, humor, duplo sentido.
Entender a acidez dos comentários requer um gesto inteligente do leitor. Quem não desenvolve a prática da leitura – parece ser o caso de Enos - lê apenas o que está escrito, só a linha e olhe lá! Bom leitor é quem consegue ler o não escrito, a entrelinha, exercitando a capacidade de uma leitura crítica, meditada, descobrindo os vários sentidos de interpretação como propõe o linguista Oswald Ducrot. Ler ironia requer sagacidade para ponderar sobre o exagero proposital do autor. Mas isso é pedir demais para um colega de departamento.
Um professor de verdade, que não é “colega de departamento”, Mateus Coimbra, presente na reunião, bem informado, explicou na hora e foi registrado em ata que o papaizinho aqui “hoje é professor da UERJ, fez pós-graduação em Letras e Literatura, sua tese de doutorado transformou-se em livro chamado Rio Babel, na realidade, é um tratado social da Língua Geral, do Nheengatu”. O que seria um esclarecimento suficiente para um professor universitário não satisfaz um “colega de departamento”, que é insaciável e blindado contra qualquer tipo de argumento.
O "colega de departamento" é um néscio, tipo de gente estúpida que mereceu crítica de Oscar Wilde em De Profundis (1897), carta escrita na prisão ao seu amante Alfred Douglas: "Como todos os poetas, amava os ignorantes, pois sabia que na alma de um ignorante há sempre espaço para uma grande ideia. Mas não tolerava os néscios, em particular aqueles embrutecidos pela educação escolar, ou seja, essas pessoas arrogantes capazes de emitir juízos sobre todas as coisas sobre as quais nada compreendem".
PS. - Dois recados: 1) Enos, meu bom Enos, não seja tão amargo assim. Arrepende-te de teus pecados, renuncia a Satanás, a suas pompas e a suas obras. Apaga as velas que acendeste para Santa Etelvina e te ocupa com questões mais criativas. Vai estudar, Enos! Ah, e deixa os meninos e as meninas namorarem! 2) Recado para os alunos e alunas de Letras (ou será Linguística?): em vez de brigar, namorem, que é muito bom. Na Universidade de Brasília, quando era reitor, Darcy Ribeiro criou o "Beijódromo", que existe até hoje. Escolham o lugar apropriado para namorar. E se possível, longe dos olhos dos enos, usem o notebook para enviar mensagens ao amado e à amada.
Um longo comentário de autora que preferiu não revelar o nome foi incorporado aqui, na íntegra, pelas valiosas informações e reflexões que traz. Vai abaixo:
De: Vila Vudu
Caro professor Bessa Freire,
Lembro-lhe que há um livro INTERESSANTÍSSIMO, obsessivamente ocultado e sonegado aos alunos, em todo o Brasil, tanto nas "Letras" quanto nas "Linguisticas" acadêmicas cujo título já diz tudo: The Linguistics Wars [As Guerras da Linguística], 1993, de Randy Allen Harris (veem-se o índice e algumas páginas em http://www.amazon.com/Linguistics-Wars-Randy-Allen-Harris/dp/019509834X)
De fato, esse livro narra apenas uma (pequena) parte das guerras e dos muitos mortos e feridos que delas resultaram, na academia norte-americana, nos anos 60 e 70, depois de Chomsky, um belo dia, aparecer com sua bela ideiazinha e propor que se inaugurasse um novo campo de pesquisa na academia pressuposta 'linguística' que, então, era dona de toda a linguística acadêmica mundial.
"Novo campo de pesquisa", nas academias e nos campos de pesquisa existentes, significa "E se nos demitirem?!. Então, é alguém falar em "novo campo de pesquisa", todos os velhos campos de pesquisa (sempre maioria, em relação ao novo campo, que, coitado, além de ser só um, é novo e cheio de pique) piram total. É sempre assim, em todas as academias.
Se Chomsky não fosse Chomsky, teriam acabaaaaaaaaaaaaaado com a raça do cara. (Há quem diga que teriam acabado com Chomsky e TAMBÉM com a linguística de Chomsky, se Chomsky não fosse judeu e se sua linguística não fosse tão potente (e tão cartesiana). A maldade dessa gente é uma arte!
Eu sou formada em Linguística e em Língua Portuguesa, pela USP. Aprendi lá (na USP) o suficiente para decidir que NUNCA MAIS, depois de concluir o curso, voltaria a por meus pés no charco do Butantã, nem nas Letras nem nas Linguísticas e, em nenhum caso, em alguma pós-graduação, fosse de língua portuguesa fosse de linguística. Foi quando minha vida intelectual começou a ficar divertida (além de produtiva).
Por tudo isso, entendo perfeitamente o Prof. Bessa Freire, quando disse que não entende bulhufas de fonética e fonologia: no Brasil, NINGUÉM entende de fonética e fonologia, mas os professores de linguística pensam que entendem.
Por isso, TODOS os professores de linguística ficam furiosos quando alguém diz que não entende bulhufas de fonética e fonologia: eles têm medo que, depois de um 'confessar', muitos disparem a confessar, porque confissões tendem a gerar ondas de confissões, autoflagelação, culpas, tentativas de purgação e outras dessas emoções tristes (além de ruins pros negócios acadêmicos).
O perigo que os professores de linguística MAIS temem é que, se houver uma crise de confissões e honestas declarações de ignorâncias, com confissões amplas, gerais e irrestritas, chegue algum dia o dia de alguém resolver VERIFICAR quem sabe e quem não sabe (seja o que for) de fonética e fonologia. Aí, os professores de linguística estarão fritos.
Por isso, precisamente, esses caras VIVEM ocupados com "questões do Departamento de Linguística" e com questões como "namoro sim" versus "namoro não" e assemelhadas, e nunca, em tempo algum, com alguma questão propriamente linguística.
Sugiro ao professor Bessa Freire algum desapego budista. Saia dessa (academia), professor! "Professor não é quem ensina, mas quem, de repente, aprende", na sábia lição de Guimarães Rosa. E o amor não é garantia nem de saber relevante, nem de felicidade.
Venha para a calçada internética, Professor, socrático e libertário, ensinar e aprender nas/das ruas. Esqueça essas brigas acadêmicas, que são escrever na água (grande Padre Vieira!) e venha pregar aos peixes (maior ainda, o Padre Vieira!). Pregar aos peixes não educa nem os peixes, mas é ótimo pra aprender a pregar.
Nenhuma reitora, reitor ou reitoria dará jeito (nem) na academia. O melhor lugar pra estar, em matéria de academia, é fora da academia.
Se a USP tivesse sido extinta, por exemplo, na grande enchente de 1941 em São Paulo, nos teríamos livrado de toooooooooodos os tucanos uspeanos udenistas e não haveria Demétrio Magnoli. (Se a Unicamp não existisse, não haveria Prof. Romano, livre-docente de ética [só rindo!]). O Prof. Antônio Cândido e o Prof. Bosi (tive aulas com os dois) e o Prof. Florestan Fernandes teriam achado outro jeito de ensinar o que ensinaram e ensinam até hoje (Antônio Cândido e Bosi são Dilma! Florestan também seria, é claro!).
Sem a USP, todos hoje seríamos mais éticos, mais democráticos e, com certeza absoluta, menos pobres e mais felizes (além de mais sábios).
Fiquei TOTALMENTE LOUCA para ganhar um exemplar do livro do professor Bessa Freire sobre o Nhengatu, do qual já ouvi falar, mas nunca tive em mãos. Sou aberta a todas as corrupções, trocas, negociatas e seduções.
Toda a minha solidariedade e toda a minha compreensão ao professor Bessa Freire. Só a luta ensina.